Criada em 2018, a primeira e única associação de parteiras tradicionais do Amazonas busca valorizar a profissão frente à crítica dos médicos e à falta de reconhecimento do poder público.
Em áreas rurais da Amazônia, onde o acesso às comunidades é difícil, notadamente no período da seca, são elas que atuam na linha de frente, ajudando grávidas desassistidas em lugares aonde os médicos não vão.
O Amazonas é um dos líderes em mortalidade materna no Brasil, com 108,4 mães morrendo no parto a cada 100 mil nascidos vidos; é três vezes mais que a média de Santa Catarina.
Comunidade Deus é Pai, Rio Tefé, Amazonas. Em meio à atmosfera de crianças brincando em um ensolarado fim de tarde no remanso do igarapé, uma corajosa moradora pede passagem em nome das parteiras tradicionais da Floresta Amazônica e deixa uma pergunta no ar do distante povoado ribeirinho.
“Eu lanço um desafio para qualquer médico especialista. Será que ele faria um parto dentro de um roçado, uma canoa, um banheiro ou cozinha de farinha? Doutor, já pensou em ajudar uma mulher a dar à luz no quarto escuro sem energia elétrica, só você com uma lanterna na cabeça, suas mãos e a parturiente?”, indaga Tabita dos Santos Moraes, que parteja desde os 15 anos e acaba de deixar a presidência da Associação de Parteiras Tradicionais do Estado do Amazonas (Aptam) Algodão Roxo, a primeira e única do tipo no estado.
O questionamento se justifica. Desqualificadas pela retórica das ciências biomédicas e da medicalização do parto que imperam no Sistema Único de Saúde, as parteiras sequer recebem ajuda de custo e muitas vezes são impedidas de acompanhar a gestante no parto hospitalar, apesar da Lei Estadual nº 5.312, autorizando-as sempre que solicitadas pela parturiente.
Ciente da miopia do SUS e da capacidade de sua classe, a altiva parteira da Comunidade Deus é Pai coloca em cheque o cientificismo que as inviabiliza. Em áreas rurais da Amazônia, onde o acesso às comunidades é difícil, notadamente no período da seca — em que rios quase secam e as embarcações se mostram lentas e precárias —, são elas que atuam na linha de frente, ajudando grávidas desassistidas.
“Não vejo uma parteira tradicional menor do que um doutor que estudou na faculdade. Ele tem a ciência e ela tem a sabedoria”, argumenta Tabita. “Considero nossa categoria como uma peça de quebra-cabeça, assim como o agente de saúde, técnico de enfermagem, enfermeiro e médico obstetra. Nós somos diferentes, mas nos encaixamos para formar o parto humanizado. Estamos fazendo nosso dever, então eu peço aos que têm o poder: olhem com carinho para a nossa parte”.
A fala de Tabita, cuja experiência é fruto de um saber oral iniciado junto à sua mãe, Joana Garcia, que ainda está na ativa e já “puxou mais de cem barrigas” (como elas se referem ao parto), reflete um cenário de luta pela sobrevivência desta importante prática ancestral, sistematicamente apagada como conhecimento pelo saber acadêmico e como categoria de trabalho pelo poder público.
A despeito da implementação de políticas públicas que buscam seu reconhecimento e inclusão nos serviços de saúde, as parteiras seguem desvalorizadas e por vezes são ameaçadas de processos na Justiça, tornando o seu cadastro na associação uma árdua missão. Estima-se que existam no estado do Amazonas cerca de 1.400 parteiras, das quais apenas 500 foram identificadas.
Maria das Dores, membro da diretoria da Aptam e técnica do programa Qualidade de Vida, do Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá, que desde o ano 2000 promove encontros com as parteiras do Médio Rio Solimões, virou uma incentivadora árdua da associação depois que viu sua mãe abandonar o ofício por medo de retaliação se algo desse errado no momento do parto.
“Grande parte delas está no anonimato”, diz Maria. “Mas muitas continuam a atender mesmo sendo ameaçadas. Na hora em que são chamadas, elas deixam seus afazeres e vão socorrer as mulheres onde não tem equipe de saúde. É na necessidade que uma mulher descobre seu dom de parteira.”
Peça-chave num governo ausente
Resilientes ao modelo hegemônico, as parteiras são peça-chave onde o Estado é ausente e dominam um repertório de técnicas corporais fundamentais para realizar um parto seguro em regiões de difícil acesso. Sem suas práticas de cuidados, como ajeitar a posição da criança na barriga da gestante, a utilização de remédios feitos à base de plantas medicinais e as orientações de posições, as taxas de mortalidade maternas no país seriam ainda maiores.
Embora o índice de mortalidade materna no Brasil tenha reduzido de 143 para 63 óbitos de mães por cada 100 mil nascidos vivos entre 1990 e 2015, segundo dados da Organização Mundial de Saúde, este número ainda é alto se comparado aos países desenvolvidos (onde a média é de 12 óbitos). O desempenho pífio dos indicadores mostra uma nação desigual, puxado para baixo por estados da região norte como o Amazonas, com uma taxa de 108,4 óbitos maternos — em contraste com Santa Catarina, o de menor taxa, com 35,1 mortes.
Considerado como um pai pelos membros da associação Algodão Roxo devido ao apoio dado a entidade, criada oficialmente em 2018, o sociólogo Júlio Schweickardt, pesquisador da Fiocruz Amazônia é figura central no engajamento politico das parteiras e na articulação de espaços de diálogo entre elas e equipes de saúde da atenção básica dos municípios, que, em muitos casos, se mostram reticentes.
A resistência à atuação das parteiras é tanta que algumas cidades exigem a assinatura de um termo de responsabilidade, criando uma atmosfera de medo e de partos feitos às escondidas.
“Esta cobrança é uma violência”, diz Júlio. “Ao invés de perguntar o que precisam, jogam sobre elas toda a responsabilidade. Existe uma lógica que o parto feito pelas parteiras é de risco. Isso revela uma herança ruim desta hierarquização do saber, que coloca o conhecimento biomédico acima dos outros. É preciso desmistificar isso. O parto de cesárea é que é de risco”.
Por outro lado, o professor da Fiocruz vê as parteiras ganhando corpo e autonomia de fala, a exemplo do que acontece no povoado de Iauaretê, no Distrito Sanitário Especial (DSEI) Alto Rio Solimões, uma comunidade indígena com várias etnias onde parteiras jovens são atraídas por um ambiente favorável de revalorização.
“Nesta região, elas estão participando do pré-natal e recebendo ajuda de custo. Cerca de 53% dos partos são feitos por parteiras indígenas, então não podemos simplesmente ignorá-las”, diz Júlio.
O problema do não reconhecimento enquanto profissão, como afirma o professor da Fiocruz, é o fato de os municípios usarem a regra da formação acadêmica, amarrando a regulamentação ao aspecto normativo. Como exemplo, ele cita a parteira tradicional que só pode atuar dentro de um hospital se tiver diploma de técnica de enfermagem.
“O que a gente tem falado para os municípios é que eles podem contratar parteiras como agentes comunitárias de saúde ou doulas, auxiliando nos partos. O que nao pode é elas ficarem sem remuneração enquanto não tiver uma legislação federal ou estadual que as permita receber”.
Visão de saúde integral
Cadastrada na Aptam e trabalhando sem salário dentro do Terra Dominial Indígena Barreira da Missão, próximo à cidade de Tefé, Dona Sebastiana Pinto da Silva, da etnia Ticuna, tem orgulho de ser parteira, apesar do descaso de ter sido barrada no hospital local. Ela compara a atenção dada à gestante no parto domiciliar e no hospitalar.
“Aqui é muito melhor. A gente prepara um chá, faz uma massagem nas pernas, nas costas. Tudo com o maior carinho. No hospital não é assim. Eles te jogam lá e as vezes não vão nem olhar. Uma das minhas filhas teve o bebê sozinha no banheiro do hospital”, diz Sebastiana.
Diretora de Manejo e Desenvolvimento do Instituto Mamirauá, a socióloga Dávila Corrêa, que acompanha a organização das parteiras há anos, enxerga nos encontros delas com as secretarias de saúde o espaço a ser trabalhado para a reconfiguração de seu papel mediante as exigências protocolares do SUS, além de uma maior aceitação de diferentes concepções de saúde.
“É interessante quando há esta troca porque as parteiras trazem o lado holístico, que é uma visão de saúde integral, incluindo o cuidado com o ambiente, como o cultivo de uma planta, o acolhimento da família”, afirma Dávila. “Por outro lado, o agente público traz para a discussão a importância dos aspectos biológicos, como a questão do parto limpo, a higienização.”
De acordo com a socióloga, a ressignificação da atuação das parteiras já acontece como agentes de mediação quando elas se recusam a acompanhar gestantes que não fazem o pré-natal adequadamente, encaminhando-as ao hospital. “A parteira, de forma sutil e sensível, assume este papel. É uma função importante na rede de apoio”.
Quanto ao futuro, Dávila entende que a transmissão oral de saberes empíricos entre mães, filhas, netas e avós nunca irá acabar. “Estudos apontam a continuidade entre gerações. Posto isso, a atuação das parteiras junto à associação legitima a existência destas mulheres. Mesmo que não estejam fazendo partos na comunidade, elas estão cuidando da saúde como um todo, principalmente na parte mental.”
Ao longo da construção de pontes de interconexão e canais de diálogo, uma fala do sociólogo Júlio Schweickardt resume o legado de ensinamento deixado pelas parteiras tradicionais: “O parto hospitalar é reduzido ao biológico. Isto é uma involução. A concepção de nascimento simbólico das parteiras vai além e abrange a ideia do nascimento cultural. Tem haver com a criança sendo inserida num corpo social e seus valores. E as parteiras fazem isso como ninguém”.
https://brasil-mongabay-com.mongabay.com/2020/03/kumua-os-pajes-indigenas-que-atendem-no-centro-de-manaus/
Imagem do banner: Sebastiana Pinto da Silva, parteira na Terra Dominial Indígena Barreira da Missão, em Tefé (AM). Foto: Luís Patriani.