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Trilhos da maior mina de ferro do mundo impactam a vida de comunidades pobres no Maranhão

comunidades atingidas pelos impactos da estrada de ferro da Vale S.A

  • No Maranhão, estado com a menor renda domiciliar do Brasil, comunidades convivem 24 horas por dia com os impactos dos trens da mineradora Vale.

  • Com 330 vagões e mais de 3 quilômetros de extensão, o trem que circula pelos quase 1.000 km da Estrada de Ferro Carajás do Pará até o Maranhão leva centenas de milhões de toneladas de carga que garantiram à Vale um lucro de R$ 121 bilhões em 2021.

  • Moradores às margens da ferrovia relatam um longo histórico de problemas de saúde, danos à estrutura de suas casas, atropelamentos, mortes e falta de diálogo por parte da empresa.

  • Com solicitações ignoradas e o cerceamento do direito de ir e vir, as comunidades pobres não veem o dinheiro da mineração se transformar em benefícios de desenvolvimento humano.

“Nessa linha férrea já morreu muita gente matada pelo trem”, diz Deusimar de Oliveira Santos, moradora de Auzilândia, na linguagem e na sabedoria popular comum aos moradores ouvidos pela reportagem.

“Eu tenho uma dor de cabeça profunda, é difícil no mundo ter um dia pra eu não sentir dor de cabeça. Já tem mais de cinco anos que eu vivo com essa dor de cabeça. A zoada do trem incomoda. E quando tem um subindo e outro descendo, a dor de cabeça é forte, forte demais, tem vez que penso que eu não vou nem resistir”, relata Deusimar, sobre os efeitos diários dos trens da Vale no Maranhão.

A “zoada” ininterrupta garante o lucro da gigante mineradora brasileira.

A Vale fechou 2021 com lucro líquido superior a R$ 121 bilhões. É o maior lucro da história da mineradora e o maior em todos os tempos de uma empresa de capital aberto no Brasil.

O lucro da Vale em 2021 ultrapassou com folga o PIB do estado inteiro do Maranhão em 2019, que foi de R$ 97 bilhões, último ano disponível de acordo com os dados oficiais.

Boa parte do minério de ferro responsável por esse resultado assombroso da Vale é extraído da mina de S11D, no Pará, escoada pela Estrada de Ferro Carajás (EFC). A Vale se orgulha de a EFC ser, segundo a mineradora, a “ferrovia mais eficiente” do Brasil.

Os moradores das cidades cortadas por seus trilhos duplicados, porém, contam uma história bem diferente.

As principais reclamações das comunidades incluem a falta de acessos viáveis para atravessar a ferrovia de lado a lado como viadutos e passarelas, atropelamentos de pessoas e animais causados pelos trens, incluindo a morte e mutilação de moradores, o comprometimento da estrutura das casas, rachadas com o impacto constante da passagem dos trens, a poluição sonora, da água e do ar, além da perseguição a lideranças e a falta de diálogo da Vale com as comunidades.

Deusimar de Oliveira Santos, moradora de Auzilândia. Foto: Ingrid Barros

900 quilômetros de violações socioambientais

A ferrovia, inaugurada em 1985, tem hoje 892 quilômetros de extensão, ligando a maior mina de minério de ferro a céu aberto do mundo, em Carajás, no sudeste do Pará, ao Porto de Ponta da Madeira, em São Luís (MA).

Por seus trilhos, são transportados centenas de milhões de toneladas de carga e 350 mil passageiros por ano. Circulam cerca de 35 composições simultaneamente, entre os quais um dos maiores trens de carga em operação regular do mundo, com 330 vagões e 3,3 quilômetros de extensão.

De 2013 a 2017, foram duplicados 575 quilômetros da EFC no Pará e Maranhão, aumentando a capacidade para 230 milhões de toneladas de minério de ferro transportadas por ano. No total, para fazer o transporte de produtos, a EFC conta com 10.756 vagões e 217 locomotivas.

Os números impressionantes da Vale, no entanto, não se transformam em desenvolvimento humano e bem-estar social. O Maranhão tem o segundo pior IDH do Brasil, perdendo somente para Alagoas entre os 27 estados da federação. O rendimento mensal domiciliar per capita do Maranhão é de R$ 635, segundo o IBGE, o mais baixo do país, cerca de metade do salário-mínimo brasileiro.

Toda essa logística com transporte incessante 24 horas acaba por concentrar as consequências que a explosão da venda de commodities no mercado internacional causa a comunidades tradicionais do Maranhão.

São pelo menos 130 comunidades e povoados atravessados pelo corredor Carajás. Entre as principais cidades do trajeto estão Açailândia, Buriticupu, Alto Alegre do Pindaré, Itapecuru Mirim e, claro, a capital São Luís.

Trilhos da Vale em Auzilândia. Foto: Ingrid Barros

Compensação insuficiente

Para explorar os recursos minerais, que são bens da União, as mineradoras pagam ao Estado uma compensação financeira chamada de CFEM: literalmente Compensação Financeira pela Exploração Mineral.

Ela é paga pelas mineradoras para o órgão regulador federal que é a Agência Nacional de Mineração (ANM). No caso do minério de ferro, a alíquota é de 3,5%.

Depois de paga, esta compensação é dividida entre União, estados e municípios. Os municípios mineradores recebem 60% desta compensação.

A partir da Lei 13.540 de 2017, os municípios impactados pela mineração que possuem no seu território uma ferrovia – caso das cidades maranhenses visitadas pela reportagem –, um mineroduto, uma barragem ou outra infraestrutura associada à mineração passaram a receber uma parcela, pequena, da CFEM, de cerca de 15%.

O dinheiro repassado pelas mineradoras às cidades impactadas, porém, não é revertido em qualidade de vida e desenvolvimento humano, mas se perde na má gestão das prefeituras, em desvios e denúncias de corrupção.

Além desses problemas com a CFEM, um novo estudo do Instituto Justiça Fiscal mostrou que as mineradoras que atuam no Brasil deixam de pagar, em média, US$ 1,26 bilhão de dólares por ano em função da possível evasão fiscal envolvida na cadeia da exportação do minério de ferro.

Sem transparência e ignorados por empresas como a Vale e pelos gestores públicos, os moradores ficam somente com o impacto negativo e não recebem qualquer retorno.

Trecho da ferrovia da Vale em Francisco Romão. Foto: Ingrid Barros

“A gente não vê os benefícios”

“A gente não vê o recurso da Vale ser aplicado como deveria ser aplicado. A gente vê o povo passando necessidade. A linha corta o município de ponta a ponta, mas a gente não vê o benefício da Vale, não temos saneamento básico, não temos segurança. Aqui era pra gerar emprego, mas a maioria das empresas que vem pra cá hoje é mão de obra de fora, sendo que aqui dentro tem pessoas qualificadas para serem empregadas”, avalia Leandro Pereira, vereador de Alto Alegre do Pindaré que vive em Auzilândia.

A prefeitura recebe de R$ 1 a R$ 2 milhões por mês em repasses da Vale. Mas o retorno é mínimo. “O que tem hoje no nosso município? Dentro de Auzilândia? A gente não vê as coisas acontecerem. O que eu sinto mais falta é de segurança. Não temos uma expectativa de vida, por conta da empresa que passa aqui. A empresa é rica, mas a gente não vê os benefícios”, diz Pereira.

O prefeito eleito em 2020 em Alto Alegre é uma figura relativamente conhecida no cenário político nacional. Francisco Dantas Ribeiro Filho, o Fufuca, é pai do deputado federal André Fufuca, que chegou a comandar a Câmara dos Deputados em 2017 como 2º vice-presidente da casa, após as ausências dos titulares.

Fufuca Dantas, o pai, é pecuarista e político com longo histórico de cargos ocupados no Maranhão, incluindo dois mandatos anteriores como prefeito de Alto Alegre, deputado estadual e secretário de Minas e Energia de 2009 a 2010. Atualmente também é o presidente do consórcio dos municípios Consórcio Intermunicipal Multimodal (CIM).

Muitos povoados não têm passarelas. Os que têm precisaram lutar para que a mineradora instalasse meios de passagem, e até hoje as estruturas existentes são insuficientes. “Já vi muitas crianças e adultos passar por debaixo do trem. Já teve muitas mortes em Auzilândia e outras comunidades. Acho que para uma empresa como a Vale não era pra esse tipo de coisa acontecer”, cobra Pereira.

Passarela sobre a ferrovia da Vale em Alto Alegre. Foto: Ingrid Barros

Para Jerônimo Alves, outro morador de Alto Alegre, a Vale deveria se reunir com as comunidades, ver a necessidade de cada uma, já que as realidades não são todas iguais e atender aos pedidos.

“A ausência de iluminação nas passarelas gera acidente, furto, as pessoas aproveitam os locais escuros para assaltar. O acesso em algumas comunidades não é feito. Questão da lama, poeira, necessidade de uma ambulância entrar numa comunidade e não tem como, fica isolado”, relata.

Alves diz que a prefeitura faz o que quer com os recursos recebidos e não o que as comunidades necessitam. Comunidades às margens da ferrovia foram divididas, impedindo o acesso dos moradores ao gado de criação, ao plantio da lavoura de subsistência, impedindo de escoar os produtos em tempo hábil em função dos problemas causados pelos trens. Alguns chegam a interromper o acesso por dias. Atividades tradicionais como a pesca também são afetadas.

“A gente pescava nos igarapés, mas por conta da duplicação da ferrovia teve muitos igarapés que foram aterrados, aí não tem mais como pescar, acabou”, diz Alves. Para ele, o que as comunidades necessitam é de infraestrutura de qualidade, de um posto de saúde e quadras poliesportivas, locais para os jovens se divertirem.

Jerônimo Alves, morador de Alto Alegre. Foto: Ingrid Barros

Os problemas se repetem na cidade vizinha de Buriticupu, de 71 mil habitantes, que ocupa o 145º lugar no Índice de Desenvolvimento Humano entre as 217 cidades do Maranhão.

José Orlando mora em Vila União, distrito de Buriticupu, desde 1991. Ele e a sua família sempre viveram da lavoura e da pesca. Ele conta que a duplicação da ferrovia causou ainda mais transtornos, que várias pessoas já perderam a vida tentando atravessar a linha férrea e que o aterramento do rio tem influência direta das obras da Vale.

“A gente sofre a precariedade da falta de um saneamento básico, coleta de lixo, um melhoramento nas ruas, escola de qualidade, não tem. Mas se você for olhar, tem casa rachada pela trepidação do trem, tem família que passa necessidade, que mora muito próximo da linha férrea e não tem como produzir”, conta.

A comunidade não tem ambulância, não tem hospital e sofre com a má condição das estradas, outra manutenção que a Vale deixou de fazer com o tempo, relata José Orlando. Os atropelamentos são comuns e a passagem constante do trem impede o livre ir e vir da população.

“Quando a gente começou reivindicar pela passagem segura, a estratégia da Vale foi mandar dois fiscais virem no sábado e domingo para fiscalizar quantas pessoas passavam por cima da linha. O pessoal trabalha no interior a semana inteira; sábado e domingo é dia de descanso. Essa foi uma estratégia para dizer que não precisava colocar o viaduto porque poucas pessoas passavam por cima da linha, então não tinha direito de colocar um viaduto aqui na comunidade”, relata.

A estrada de ferro Carajás simboliza também a união da mineração com o agronegócio. Os trens carregam granéis sólidos (soja e outros grãos) e líquidos (combustíveis e fertilizantes, entre outros), além do minério de ferro.

A EFC está ainda interligada com outras duas ferrovias: a Companhia Ferroviária do Nordeste (CFN) e a Ferrovia Norte-Sul. A primeira atravessa, principalmente, sete estados da região Nordeste e a segunda corta os estados de Goiás, Tocantins e Maranhão, facilitando a exportação de grãos produzidos no norte do estado do Tocantins pelo Porto de Ponta da Madeira.

Povoado de Vila União, município de Buruticupu. Foto: Ingrid Barros

Denúncias de corrupção e desvios

O dinheiro da mineração está diretamente envolvido em fortes denúncias contra prefeitos e empresários de cidades cortadas pela ferrovia da Vale no Maranhão.

O Ministério Público do Maranhão (MP-MA) ingressou, em 2019, com seis denúncias contra envolvidos em fraudes em licitações realizadas no período de 2013 a 2016 na Prefeitura de Itapecuru Mirim (MA), a 108 km de São Luís. Segundo o MP, a organização criminosa era chefiada pelo ex-prefeito Magno Amorim, que teria desviado R$ 27 milhões de recursos públicos. As denúncias são divididas entre os núcleos político, administrativo, jurídico e empresarial.

um dossiê do Tribunal de Contas do Maranhão revelado em 2021 mostra evidências da participação de Karla Batista, ex-prefeita de Vila Nova dos Martírios, no Consórcio Intermunicipal Multimodal (CIM). Para o TCE, o consórcio pode ser a fonte da corrupção em licitações fraudulentas em cidades às margens da Estrada de Ferro Carajás.

Em fevereiro de 2021, medidas cautelares do TCE suspenderam licitações do CIM. As representações têm como fundamento a detecção, pelas equipes de auditores do TCE, de múltiplas irregularidades em processos licitatórios realizados pelo CIM na modalidade Pregão Eletrônico.

Isso inclui o fornecimento de merenda escolar, material de expediente, material de limpeza, prestação de serviços terceirizados, serviços de manutenção de rede de iluminação pública, serviços gráficos e outros.

Com base nos fatos apurados, o TCE determinou a suspensão das licitações na fase em que se encontram e, no caso de já terem sido formalizados os contratos, a suspensão dos pagamentos deles provenientes, bem como a proibição de realizar quaisquer medidas administrativas decorrentes da licitação até que uma nova decisão seja tomada.

O presidente do CIM, Francisco Dantas Ribeiro, o Fufuca pai, respondeu à reportagem afirmando que a atual gestão colabora com as investigações, acatou a decisão do TCE e instaurou novos procedimentos e mais transparência no consórcio, incluindo a contratação de auditoria externa que detectou irregularidades que estão sendo resolvidas. Leia a resposta na íntegra no fim do texto.

Viaduto por onde passa o trem da Vale em Piquiá de Baixo. Foto: Ingrid Barros

Mesmo após lutar por melhorias, Vale entrega equipamentos incompletos

Alzeneide Moraes, de apelido Gabi, mora no assentamento Francisco Romão, na zona rural de Açailândia. A comunidade precisou interditar os trilhos da Vale para conseguir ser ouvida e atendida pela mineradora. Mesmo assim, o viaduto instalado tem problemas e leva a acidentes.

“Ao invés de nos proporcionar alívio, nos trouxe grandes preocupações. Ficaram algumas coisas pendentes no viaduto, como as grades, a iluminação, entre outros detalhes. E leva à preocupação dos moradores que precisam passar por esse viaduto à noite. Inclusive já até aconteceu um grave acidente levando a óbito um jovem. O outro ficou de cadeiras de rodas”, conta Gabi.

Alzeneide Moraes, de apelido Gabi, moradora do assentamento Francisco Romão. Foto: Ingrid Barros

Francisco Romão é uma comunidade formada por aproximadamente 102 famílias que vivem da agricultura.

A comunidade possui escola de nível Fundamental e Médio, embora com turnos e ofertas limitados. O Ensino Médio funciona no mesmo prédio do Fundamental, mas somente no turno da noite, atendendo alunos das outras comunidades da região de Novo Oriente. Para estudar, os moradores se deslocam até a comunidade mais próxima, o povoado Novo Oriente, que fica a 6 quilômetros de distância.

A base econômica é a atividade agrícola restrita à subsistência das famílias. Algumas complementam a renda com o Bolsa Família, benefício concedido pelo Governo Federal. Os moradores não dispõem de saneamento básico, o abastecimento de água é feito através de um dos dois poços artesianos, que fica a 3 km da comunidade, e a água é distribuída sem tratamento para o consumo.

Não há posto de saúde. Há uma unidade apenas no assentamento Planalto I, construído em 2017, porém não atende as necessidades das comunidades que compõem a região de Novo Oriente, por não ter atendimento regular. Faltam medicamentos e equipamentos, além de ser distante das demais comunidades.

“Com as reivindicações, nós conseguimos uma ambulância, mas que não é equipada. Estamos cobrando as autoridades para equipar a ambulância, porque de fato ela só é um carro”, diz Gabi. Sem estrutura, a comunidade precisa lutar para que um serviço seja entregue e, depois, para que seja entregue completo.

Lindalva Souza é técnica de enfermagem e formada em Serviço Social. Ela conta que faz o acompanhamento da equipe itinerante que cobre a região de Planalto 1, Novo Oriente, Francisco Romão, Agroplanalto, um acampamento que está em processo de regularização no Incra e João do Vale.

A equipe trabalha três vezes por semana, sempre em um assentamento diferente, e duas vezes por mês em cada assentamento. No total são três técnicas, uma enfermeira, uma médica e o motorista. O trabalho é de atenção básica, como pré-natal, consultas médicas, exames e curativos.

Lindalva Souza, técnica de enfermagem no posto de saúde de Planalto I. Foto: Ingrid Barros.

“Aquela ambulância é capaz de transportar, não de salvar. Porque a gente sabe que se tiver um passando mal, com falta de oxigênio, ou outra coisa, a gente não pode salvar a vida dele num carro só com a maca pra deitar”, conta a técnica de enfermagem.

Para ela, o posto de saúde deveria ser em Francisco Romão, que fica no centro dos cinco assentamentos. Em contrapartida, a ambulância usada pela Vale é completa, com tudo. Já o equipamento oferecido para as comunidades é bem diferente.

A situação se repete no posto que fica em Planalto I, longe de sua casa. “Nosso posto não é equipado. No dia da inauguração eles levaram tudo o que iam precisar lá. Quando terminou, levaram tudo de volta. O nosso posto só tem uma sala que tem duas camas e uma cadeira pra sentar. No consultório, tem um armário e uma cadeira, o resto mais nada. E tem as balanças, mas nem uma mesa pra fazer a triagem e aferir a pressão tem. Se a Vale quisesse equipar nosso posto de saúde era bom, botar mesa, cadeira, era bom. Mas ela disse que não é responsabilidade dela fazer posto de saúde, isso era coisa do município”, relata.

Nesse jogo de empurrar a responsabilidade, quem perde são as pessoas. Em contrapartida, o barulho do trem é diário e nunca falha. “O que mais me incomoda aqui é essa “zoada” do trem, porque tenho problema de saúde, labirintite, parece que tem uma coisa balançando na minha cabeça. A poluição sonora é uma coisa que prejudica muito”, relata Lindalva.

Piquiá de Baixo: histórico de abandono

O caso de Piquiá de Baixo é um dos mais simbólicos sobre como o setor de mineração e siderurgia trata as comunidades impactadas por seus empreendimentos.

Quem concorda com esta análise é o Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas.

Uma comitiva da ONU visitou comunidades afetadas pela mineração no Maranhão em dezembro de 2019. Para os relatores, “a luta de mais de 300 famílias em Piquiá de Baixo é emblemática”. A visita deu origem a um relatório em que a ONU cobra medidas.

Na década de 1970, uma indústria siderúrgica “invadiu uma comunidade pacífica sem seu consentimento, um exemplo flagrante de indústria operando por décadas sem o devido respeito pelos direitos humanos e intervenção limitada do Estado”, afirma o texto.

A Vale fornece minério de ferro e transporta produtos processados ​​aos portos para exportação, em meio à expansão do sistema de transporte mina-ferrovia-porto ao longo do corredor de exportação de Carajás. “De forma alarmante, as siderúrgicas de Açailândia operam sem licença há pelo menos oito anos, por não atenderem às exigências ambientais”, diz a ONU.

Embora não seja proprietária das empresas siderúrgicas, é o minério de ferro da Vale que abastece a produção de ligas essenciais para a produção de aço. Toda a cadeia produtiva, portanto, está repleta de violações de direitos humanos, como comprovam os relatos e as investigações feitas em campo.

Viaduto por onde passa o trem da Vale em Piquiá de Baixo. Foto: Ingrid Barros

Estudos revelam vários casos de problemas de saúde, incluindo tosse, falta de ar, respiração ofegante e dores de cabeça. 65% dos membros da comunidade relataram problemas respiratórios, com outros sofrendo de doenças oftalmológicas e vários problemas de pele, agravados pela poluição, afirma o texto.

“Membros da comunidade foram queimados com a escória e resíduos do ferro-gusa, onde a área de resíduos não foi devidamente vedada e sem sinalização adequada de perigo e riscos associados ao contato com o ferro-gusa. Apesar da poluição inconfundivelmente perigosa, os dados fornecidos ao Governo pelas empresas não sugerem que esteja acima dos níveis aceitáveis. O Governo não investigou ou sancionou as empresas”, cobra a ONU.

Para o relator Baskut Tunkat, “a Vale tem a responsabilidade de remediar os danos infligidos à comunidade, embora não seja proprietária das instalações de produção de aço. A situação das comunidades de Piquiá de Baixo é uma clara violação dos direitos à vida, saúde e informação”.

Maria José da Silva mora há quase 50 anos em Piquiá. Diz ela que antigamente a água era boa, limpa e a comunidade não enfrentava os riscos que passou a enfrentar depois da chegada das usinas. O pó preto que invade as casas e a “munha”, resíduos incandescentes de material perigoso, se tornaram rotina, segundo ela.

“As pessoas entravam e teve muito acidente, gente que foi queimado, gente que morreu. Porque fica aquele negócio, aquele pó vermelho no chão, você não diz que é fogo, e se você chegar e pisar dentro, pronto, cobre seu pé e já lhe derrubou lá dentro”, conta.

Boa parte dos moradores não aguentou os efeitos do “desenvolvimento” trazido pelas empresas – risco de morte iminente, doenças respiratórias, risco de acidentes a qualquer momento, pó intermitente 24 horas por dia – e deixou Piquiá.

Os três filhos de Maria José moram fora do Maranhão e ela conta com o dinheiro que os filhos enviam para sobreviver. A expectativa de Maria é que a construção das casas para um novo bairro, com obras atrasadas há anos, seja concluída.

“Se tivesse um jeito da Vale ajudar logo naquelas casas para terminar o serviço pra gente mudar, seria bom. Pois é o sonho de todo mundo aqui. Esse barraco meu só não caiu porque comprei um pouco de tijolo e fiz essa parede”, conta.

Maria José da Silva, moradora de Piquiá de Baixo. Foto: Ingrid Barros

Outra moradora de Piquiá, Marilene Martins, confirma o incômodo, a poluição e o abandono. “Como passa aqui perto o trem, a comunidade era pra ser bem zelada, principalmente com a maravilha do rio que passa aí. Mas aqui tudo está abandonado, estamos largados”, reclama.

Antonia Alves conta que, com o rio poluído, as crianças ficam expostas permanentemente a reações alérgicas e doenças. Sua filha pequena, diz, sempre fica com a pele ferida quando volta do rio. A água só serve mesmo para lavar louças.

Se a Vale realmente ajudasse, conta, a vida da comunidade seria totalmente diferente. “Aqui é um lugar de onde eles tiram muito dinheiro, mas também é um lugar muito esquecido. Eles não dão nenhuma benfeitoria para cá não. Essa casa aqui que eu moro tem as paredes rachadas, acho que por causa do trem que passa, daqui da minha casa dá para escutar”, relata.

Monitoramento sobre a situação de saúde de 21 mulheres moradoras de Piquiá de Baixo e outros bairros e comunidades como Francisco Romão feito pela equipe da Justiça Nos Trilhos durante o ano de 2021 confirma que os impactos da poluição emitidas pelas empresas na região é significativo.

Os principais sintomas relatados são: dor de cabeça, alergia (coceira), febre, cansaço, dor de barriga e cólicas. No total, 22 sintomas foram detectados. Essas informações levantam a hipótese que os sintomas de dor de cabeça, alergia/coceira, cansaço e dor de barriga podem estar relacionados a fatores típicos daquele território, onde a concentração de poluentes é maior.

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Vale diz que investe em ações para minimizar o impacto da ferrovia

Procurada pela reportagem, a Vale enviou uma longa nota sobre o que tem feito em relação aos fatos elencados e aos relatos dos moradores.

Segundo a mineradora, “sobre a segurança das comunidades que cruzam a ferrovia, a Vale informa que investe constantemente em tecnologia e ações para reforçar o convívio seguro com as suas ferrovias. Nos últimos anos, foram realizados investimentos significativos em mobilidade ao longo de toda a Estrada de Ferro Carajás (EFC), totalizando a construção de 48 novos viadutos rodoviários, 80 passagens em nível, 15 passarelas para pedestres, 44 cancelas automáticas, dentre outras medidas protetivas, como a construção de muros de proteção para evitar a travessia indevida e insegura de pedestres pela linha. Além disso, mantém equipes de relacionamento com comunidades dedicadas às ações e campanhas de conscientização”.

Sobre as alegações do que a Vale chama de “supostos impactos ambientais associados à operação da EFC”, como rachaduras em casas e poluição, a mineradora diz que “cumpre rigorosamente a legislação ambiental e reitera que avalia de forma sistemática as variáveis ambientais associadas às suas operações, mantendo programas específicos validados pelos órgãos ambientais reguladores”.

Para os próximos anos, afirma a empresa, “estão previstas ainda novas obras de mobilidade, como viadutos ferroviários, acessos rodoviários vicinais à ferrovia, construção de novos trechos de barreiras de proteção, aumento no número de passarelas e a automatização de passagens em nível”.

Sobre diálogo, a Vale diz que mantém canais de relacionamento à disposição da comunidade via site e telefone e que “também possui equipes de relações com comunidades dedicadas, que visitam com frequência as comunidades vizinhas, exercendo a escuta ativa e diálogo aberto e transparente sobre todas as demandas relacionadas à atuação da empresa. Todas as demandas recebidas são devidamente registradas e respondidas às comunidades num prazo médio historicamente inferior a 10 dias”.

Em relação à fiscalização e acompanhamento dos investimentos realizados em parceria com o Consórcio Intermunicipal Multimodal (CIM), a empresa esclarece que “todos os projetos são firmados diretamente com as Prefeituras dos municípios de nossa área de atuação e não com o CIM, que atua como interveniente”.  

A Vale diz que “todos os projetos são previamente avaliados, considerando critérios internos de integridade/compliance e alinhamento aos eixos de atuação social da Vale. Uma vez aprovados, a parceria é feita por meio de instrumento jurídico próprio com clausulas relacionadas às responsabilidades de cada parte, incluindo vistorias regulares, realizadas por equipes da Vale. O contrato prevê que primeiro os Municípios apresentam as prestações de contas de cada etapa que avança do projeto para avaliação/aprovação da Vale para posteriormente haver o desembolso financeiro. Os contratos preveem ainda a suspensão dos repasses nos casos em que a medição apresentada pelas Prefeituras não cumpra os requisitos previstos”.

 Sobre a Compensação Financeira pela Exploração de Recursos Minerais (CFEM), a empresa informa que “os recursos são recolhidos diretamente pela Vale à Agência Nacional de Mineração (ANM), que é o ente responsável por calcular e creditar os valores aos municípios da área de influência da Estrada de Ferro Carajás, conforme previsto em decreto federal. Cabe à ANM ainda baixar normas e exercer a fiscalização sobre a arrecadação e distribuição da CFEM”.

Consórcio de municípios se defende das denúncias de corrupção, detalha suas relações com a Vale e comenta que retorno oferece para as comunidades

A diretoria do consórcio de municípios (CIM), afirma que logo que tomou posse em janeiro de 2021, por meio de seu novo Presidente (Francisco Dantas Ribeiro), “determinou a contratação de empresa especializada para prestação de serviços de auditoria em despesas com pessoal e consultoria em diagnóstico situacional”.

A auditoria, afirma o CIM, “detectou irregularidades, conforme costa em relatório próprio, no que concerne à Estrutura Funcional e Remuneratória dos empregados públicos, recolhimento indevido ao Fundo de Garantia do Tempo de Serviço – FGTS e Dívidas Previdenciárias”, entre outros.

Visando preservar o patrimônio público e a moralidade administrativa, dizem, o parecer da auditoria foi encaminhado a órgãos de controle como o Tribunal de Contas do Estado do Maranhão – TCE/MA e Procuradoria Geral de Justiça do Estado do Maranhão – PGJ/MA.

No âmbito do TCE/MA, afirmam, “o CIM não só já se habilitou em todas as demandas contra ex-gestores, como também vem cumprindo todas as decisões exaradas pela Corte de Contas em relação à anulação e/ou suspensão de procedimentos considerados irregulares, a exemplo dos que foram citados pela matéria”.

Especificadamente em relação Relatório de Auditoria de 2021, no âmbito dos Exercícios anteriores (2016/2020), “destacamos o seu acolhimento integral pelo Ministério Público de Contas do Estado do Maranhão – MPC/MA, trabalho transformado em denúncia”.

Nesse sentido, “considerando a lesividade dos atos perpetrados pelos ex-gestores do Consórcio Intermunicipal Multimodal – CIM, durante seus respectivos períodos de atuação, já apuramos e adotamos todas as medidas administrativas e/ou judiciais cabíveis visando a punição dos envolvidos e ressarcimento ao erário”.

Em relação a Compensação Financeira pela Exploração Mineral – CFEM, o Consórcio Intermunicipal Multimodal – CIM “contribui tão somente para o desenvolvimento social e econômico dos municípios associados por meio de orientações sobre as formas de aplicação desse recurso, recolhimento de tributos municipais, compensações socioeconômicas e ambientais, parcerias, projetos, convênios”.

O CIM “não gerencia ou dá destinação aos valores recebidos pelos seus consorciados a título de CFEM, pois tal recurso é repassado diretamente para cada município”.

A receita da instituição CIM, afirmam, “é composta apenas por repasses financeiros dos municípios consorciados, oriundos de percentual aplicado sobre outra fonte de ganho municipal (Fundo de Participação dos Municípios – FPM).  Todas as licitações, publicações oficiais, legislações, relatórios de responsabilidade fiscal, contratos, prestações de contas, dados contábeis e outros” estão disponíveis no site oficial.

Em relação ao diálogo entre o CIM, a Vale e o Governo do Estado do Maranhão, o CIM, diz, “tem buscado orientar sobre a utilização dos recursos com investimentos que possam alcançar o maior número de beneficiários e ajudem a solucionar problemas que são recorrentes à maioria dos municípios, como por exemplo questões de saneamento básico”.

Segundo o consórcio, “a Vale mantém com o CIM um diálogo permanente e tem se mostrado bastante parceira ao apoiar no custeio de diversos projetos junto aos municípios, os quais são executados sob a rigorosa fiscalização da Companhia, sendo que o CIM participa ativamente no auxílio aos municípios para vencer todas as exigências burocráticas visando a aprovação de projetos perante a Vale”.

Quanto ao Governo do Estado do Maranhão, “este tem se mostrado disposto a ajudar sempre que é acionado, inclusive oferecendo treinamentos, o que possibilita aos municípios melhor fiscalização e emissão de licenciamento ambiental, fato que é muito relevante para os municípios que compõem o CIM, já que são afetados por impactos ambientais decorrentes da exploração mineral”, finalizou o CIM.

ANM, MP, TCE, governo do Maranhão e prefeituras se calam

A Agência Nacional de Mineração, o governo do Maranhão, o Ministério Público do Maranhão e o Tribunal de Contas do Maranhão, que receberam questionamentos referentes aos temas tratados nesta reportagem, não responderam aos pedidos de posicionamento.

As prefeituras de Açailândia, Alto Alegre do Pindaré, Buriticupu e Itapecuru-Mirim também não responderam às questões enviadas.

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Reportagem originalmente publicada no Observatório da Mineração em 19/05/2022.  

Imagem do banner: Ingrid Barros. 

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