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Estudo detecta poluição por medicamentos nas águas da Amazônia

  • Grandes rios da Amazônia Legal brasileira estão contaminados com uma ampla variedade de produtos farmacêuticos, além de altas taxas de cafeína e nicotina, de acordo com pesquisa recente.

  • Amostras de água retiradas dos rios Amazonas, Negro, Tapajós e Tocantins e de pequenos afluentes que passam pelas cidades da região, incluindo Manaus, Santarém, Belém e Macapá, continham 43 contaminantes, em concentrações que podem afetar de 50% a 80% das espécies aquáticas locais.

  • Segundo especialistas, a principal causa da contaminação da água doce é o rápido crescimento da população da Amazônia Legal, aliado ao fracasso do governo em fornecer infraestrutura adequada de saneamento.

De acordo com descobertas publicadas no ano passado, grandes rios como o Amazonas e o Tapajós, além de seus afluentes, estão altamente contaminados com produtos farmacêuticos, incluindo analgésicos, antibióticos e anti-inflamatórios. Nos córregos urbanos, as concentrações chegam a ser cem vezes maiores do que nos rios principais.

Esses resultados vêm do Projeto Silent Amazon (Amazônia Silenciosa), cujo objetivo de longo prazo é criar um conjunto de dados completo documentando a situação da poluição química do Rio Amazonas.

“Nosso objetivo era quantificar a atual ocorrência, exposição e os riscos de um grupo de contaminantes que costumam ser pouco estudados nas regiões tropicais. O que vemos é que as pressões demográficas e a falta de saneamento e tratamento de água permitem que eles atinjam áreas de grande valor ecológico”, diz Andreu Rico, ecotoxicologista do IMDEA Water Institute e pesquisador-chefe do estudo.

A equipe do estudo coletou amostras de água em 40 pontos ao longo de 1.500 quilômetros dos rios Amazonas, Negro, Tapajós e Tocantins, e em pequenos afluentes que passam pelas cidades de Manaus, no Amazonas; Santarém e Belém, ambas no Pará; e Macapá, no Amapá, para avaliar a presença de 43 produtos farmacêuticos e outros contaminantes urbanos.

Quarenta desses produtos foram encontrados acima do limite de detecção (a maior concentração de um poluente que pode ser revelada pelo método analítico). Além das medicações já mencionadas, antiarrítmicos, anti-hipertensivos, antidepressivos, antiepiléticos, ansiolíticos, hormônios (sintéticos e naturais) e fragrâncias foram identificados nos cursos d’água. As maiores concentrações, contudo, foram de psicoestimulantes como cafeína e nicotina.

“O número de substâncias foi consideravalmente mais alto nos afluentes que atravessam áreas urbanas (de 23 a 40 por amostra) do que no Rio Amazonas e seus principais tributários (de 9 a 17)”, diz o estudo. “A concentração [no primeiro grupo] foi, em média, cerca de duas ordens de grandeza maior do que aquelas medidas no segundo.”

Outro estudo, publicado em fevereiro de 2022 e realizado internacionalmente em 258 rios em 104 países, classificou o Rio Amazonas “a jusante de Manaus” como um “local com baixas concentrações de ingredientes farmacêuticos ativos (IFA), devido a “altos fluxos fluviais com um grande componente de diluição”. As amostras para este estudo foram feitas exclusivamente no leito principal do Amazonas, então as concentrações foram mais baixas do que no estudo da Silent Amazon.

Locais de coleta de amostras nos rios Amazonas (A), Negro (N), Tapajós (TA) e Tocantins (TO), e em pequenos afluentes urbanos na Amazônia. O crescimento acentuado da população urbana da região e a falta de estrutura de saneamento explicam as descobertas do estudo sobre poluição farmacêutica. Imagem: Silent Amazon.

Águas da Amazônia estão cada vez mais poluídas

Entre os contaminantes encontrados pela equipe da Silent Amazon está a metformina, a medicação mais comumente prescrita para tratar a diabetes tipo 2, e medida pela primeira vez nas águas superficiais da América Latina neste estudo. “As concentrações nos córregos de Manaus e Belém constituem os valores máximos reportados na literatura até agora.”

De acordo com a investigação da Silent Amazon, as maiores ameaças aos organismos aquáticos nas águas analisadas podem ser o paracetamol (analgésico que pode causar alterações genéticas e prejudicar a reprodução de invertebrados aquáticos e peixes), o estrogênio (um esteroide que contribui para a feminização dos peixes), o ibuprofeno (anti-inflamatório que tem impactos negativos sobre a reprodução dos peixes), e o 17β-estradiol (hormônio estrógeno natural com alto potencial de toxicidade).

“Em vista dos resultados, podemos concluir que os produtos farmacêuticos contaminantes estão espalhados pela Bacia Amazônica e que as áreas urbanas contêm concentrações que podem resultar em efeitos a longo prazo para um grande número de espécies aquáticas, entre 50% e 80%”, diz o pesquisador-chefe.

Andreu Rico lembra que estes não são os únicos poluentes que estão afetando a biodiversidade aquática da Bacia Amazônica. “A descarga de matéria orgânica [dos esgotos] e de metais pesados são importantes causadores da deterioração ambiental, bem como os agrotóxicos, microplásticos e PAHs”, um composto químico cuja principal fonte é a fumaça e a fuligem produzidas quando combustíveis sólidos, como a madeira, são queimados.

O rápido crescimento da população urbana da Amazônia Legal brasileira e a falta de saneamento básico explica boa parte do atual estado de poluição da água. Nos últimos 50 anos, a população de grandes cidades amazônicas (com cerca de dois terços da população total da região, 28,1 milhões de pessoas), mais que dobrou. A coleta de esgoto é a mais baixa do país, com cobertura de apenas 22,8%.

De acordo com o Sistema Nacional de Informação Sanitária (SNIS), do Ministério do Desenvolvimento Regional, apenas 13,1% da população amazônica tem coleta de esgoto e apenas 21,4% das redes de esgoto vão para estações de tratamento para a remoção de ao menos alguns dos poluentes. O restante das redes de esgoto amazônicas (78,6%) despejam os efluentes diretamente nos rios e córregos sem tratamento.

“O saneamento básico nunca foi uma prioridade no Brasil, e a região Norte é um exemplo disso. Nos anos 1970, o regime militar criou um plano nacional de saneamento, no qual o primeiro estágio era levar água para todos. O segundo, a construção [da infraestrutura] do tratamento de esgoto, nunca aconteceu”, disse Édison Carlos, ex-presidente do Instituto Trata Brasil (ITB), numa entrevista de 2020.

De acordo com o Ranking do Saneamento 2021, publicado pelo ITB, das 100 maiores cidades brasileiras, Manaus, Santarém, Belém e Macapá estão entre as 20 piores do país em termos de saneamento – respectivamente, nas posições 89, 95, 96, e 100 do ranking.

De acordo com o estudo, o Rio Negro foi o curso d’água que apresentou as menores taxas de contaminantes nos trechos analisados em comparação com os rios Amazonas, Tapajós e Tocantins. Foto: Ivo Brasil, CC0, via Wikimedia Commons.

Mudança radical é necessária

Esses estudos e relatórios mostram que a região Amazônica está bem atrás das Metas de Desenvolvimento Sustentável 6.3 estabelecidas pela ONU: “Até 2030, melhorar a qualidade da água, reduzindo a poluição, eliminando o despejo de esgoto e minimizando a liberação de produtos químicos e materiais perigosos, reduzindo à metade a proporção de águas residuais não tratadas e aumentando substancialmente a reciclagem e a reutilização segura globalmente.”

“Devem ser tomadas medidas urgentes para reduzir o fardo químico criado pelas áreas urbanas na Amazônia”, conclui Rico. “Se houver investimento suficiente, a construção das estações de tratamento de esgoto ou outros métodos de purificação da água não deveria levar muito tempo.”

Gisela Umbuzeiro, coordenadora do Laboratório de Ecotoxicologia e Toxicidade (Laeg) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), aponta os riscos da poluição da água: “Imagine, por exemplo, como é a urina de uma pessoa que está passando por quimioterapia; esse tratamento usa compostos altamente mutagênicos” capazes de gerar alterações genéticas em células, diz ela. Mas esse esgoto não precisa entrar nas águas da Amazônia. “Existe tecnologia para lidar com grande contaminação, mas não há articulação e iniciativa conjuntas [para resolver o problema].”

“Essas tecnologias, que são caras mas muito avançadas, precisam ser desenvolvidas no Brasil”, continua Gisela. Nanomateriais, por exemplo, podem remover até vírus e bactérias da água. Precisamos nos unir pelo mesmo objetivo – a academia, as agências de controle, as companhias de saneamento, ONGs, o Ministério Público, governos. Do contrário, nada mudará.”

Citações:

Wilkinson, J. L., Boxall, A. B. A., Kolpin, D. W., Leung, K. M. Y., Lai, R. W. S,… Teta, C. (2022) Pharmaceutical pollution of the world’s rivers. Proceedings of the National Academy of Sciences of the United States of America.

Côrtes, J.C., D’Antona, A.D.O., Ojima, R., 2020. Extended urbanization and rural reconfiguration in the Amazon: a theoretical-methodological proposal based on demographic and spatial indicators. Rev. Bras. Est. Urb. Reg. 22.

Fekadu, S., Alemayehu, E., Dewil, R., Van der Bruggen, B., 2019. Pharmaceuticals in freshwater aquatic environments: A comparison of the African and European challenge. Sci. Total Environ. 654, 324–337.

Imagem do banner: U3204694, CC BY-SA 4.0, via Wikimedia Commons.

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