Relatório aponta que 2021 foi o ano com o maior volume de derrubadas na área de influência da rodovia, que corta o estado do Amazonas, ligando Manaus a Porto Velho, capital de Rondônia.
Em janeiro de 2022, o corte de árvores na região foi 339% maior do que em janeiro de 2021.
Municípios por onde a estrada passa também registraram volume inédito de queimadas no ano que passou — a destruição seria resultado da pressão pelo asfaltamento do último trecho sem pavimentação.
A região de influência da rodovia é considerada altamente biodiversa, ainda preservada, e abriga 69 Terras Indígenas e 42 Unidades de Conservação.
Os 800 quilômetros de floresta que separam Manaus, capital do Amazonas, de Porto Velho, centro administrativo de Rondônia, nunca estiveram sob pressão tão grande. Esse trecho da Amazônia cuja biodiversidade é ainda pouco conhecida pela ciência e floresce emoldurada por dois dos grandes rios, o Madeira e o Purus, é também cortado pela BR-319, uma rodovia que ficou décadas esquecida, mas cuja obra de pavimentação, impulsionada pelo governo de Jair Bolsonaro, trouxe consigo grileiros interessados na valorização das terras que virá com o asfalto.
Em 2021, a região de influência da rodovia, que abriga nada menos que 69 Terras Indígenas e 42 Unidades de Conservação, viu crescer o desmatamento em 41% e as queimadas em 9% em relação ao ano anterior. A título de comparação, o desmatamento na Amazônia Legal cresceu 28% no ano que passou, enquanto as queimadas caíram 32%.
“Na verdade, 2021 foi o pior ano para estes indicadores desde 2010 na BR-319”, assinala Paula Guarido, pesquisadora de políticas públicas do Instituto de Conservação e Desenvolvimento Sustentável da Amazônia (Idesam), que coordenou o mais recente relatório do Observatório BR-319 — uma coalizão de 11 instituições que monitoram a área.
Os dados acendem mais um alerta vermelho para a Amazônia, que já está perdendo sua capacidade de regeneração ecológica, o que coloca todo o planeta em alerta, porque a floresta desempenha um papel central na regulação da temperatura da Terra.
“Essa é uma região importantíssima em termos de biodiversidade. Está situada no interflúvio de dois rios e, além das 69 Terras Indígenas, conta com várias outras não reconhecidas, inclusive com povos isolados”, acrescenta Fernanda Meirelles, secretária-executiva do Observatório BR-319.
O trecho também concentra dezenas de comunidades extrativistas, que cresceram vivendo dos recursos da floresta e tradicionalmente ajudam a preservá-la — mas que agora se veem obrigados a aderir ao modo de vida dos forasteiros.
“O grileiro paga todo o custo para o extrativista desmatar, e ainda dá vacas para ele criar e tirar bezerros. Ele acaba derrubando castanheira para colocar gado no lugar, mas daqui a 10 ou 20 anos não vai mais ter a riqueza da floresta para viver”, admite Dione do Nascimento Torquato, secretário-geral do Conselho Nacional das Populações Extrativistas, cuja sigla, CNS, faz referência à atividade que seus membros exerciam quando foi fundado, nos anos 1980: seringueiros, todos liderados por Chico Mendes.
Abismo no asfalto
O ano de 2021 marcou um pico tanto de desmatamento como de focos de calor na floresta que rodeia a BR-319, mas os sinais de que esse boom aconteceria já vinham desde 2017. Na época, o governo do Estado do Amazonas estava começando a debater um Plano Desenvolvimento Territorial para a região que envolvia “a restauração das condições plenas de trafegabilidade da rodovia”.
O asfalto completo não veio — vários estudos de impacto ambiental foram recusados pelo Ibama e mais de uma vez a Justiça precisou interferir para garantir que as melhorias na infraestrutura não atropelassem os direitos de povos tradicionais — mas os indicadores de destruição não pararam mais de subir.
“Nessa época começamos a ver aumento do desmatamento, mas não de forma tão pronunciada como aconteceu nos últimos três anos, sob o governo atual, que bate recorde em cima de recorde, principalmente ao sul da rodovia”, observa Paula Guarido, do Idesam.
No ano que passou, 94% da área de floresta derrubada no entorno da estrada estava nos municípios do sul — um dado que, segundo as ativistas, comprova a teoria de que a infraestrutura no meio da floresta traz consigo desmatamento e outras consequências, já que os 200 quilômetros da BR-319 próximos a Porto Velho estão asfaltados.
“A pavimentação aumenta a ocupação nas beiras das entradas, força a abertura de ramais floresta adentro, que chamamos de espinha de peixe, gera prostituição, inclusive infantil, nas comunidades, e leva a conflitos fundiários”, pondera Fernanda Meirelles.
A ponta de cima da rodovia, próxima a Manaus, também já teve o pavimento recuperado e, neste momento o debate se concentra sobre o asfaltamento do chamado “trecho do meio”, que compreende 400 quilômetros de estrada de chão entre os municípios de Humaitá, ao sul, e Borba, ao norte.
Mas o desmatamento está subindo: em 2021, o município que mais apresentou variação nas derrubadas, com um avanço de 192% em relação ao ano anterior, Tapauá, está no meio do caminho da BR-319, já na área em que a estrada é de terra.
Os vizinhos Manicoré e Canutama também estão entre os mais desmatados no ano que passou. “Tapauá sempre teve baixos índices de desmatamento, mas apresenta uma modificação no padrão a partir de 2018”, alerta a pesquisadora do Idesam.
Atropelando indígenas
Quando foi inaugurada pela ditadura militar, nos anos 1970, a ligação entre Manaus e Porto Velho era 100% pavimentada. Na época, a viagem entre as capitais levava 12 horas. Mas o elevado volume de chuvas da região, que possui um dos mais altos índices pluviométricos de toda a Amazônia, e as alternativas hidroviárias para o transporte de cargas, fizeram a BR-319 ser paulatinamente esquecida.
Em 1988, a última linha de ônibus que operava no trecho foi suspensa porque a estrada estava intrafegável — isolando centenas de famílias que haviam se instalado em suas margens em busca de uma vida melhor.
“Sempre houve um apelo popular por essa conexão por terra entre o Amazonas e o resto do país. Por isso, o debate sobre o asfalto na BR-319 volta em anos eleitorais: entrou em vários planos de governo, do Fernando Henrique Cardoso, do Lula, e agora, de Bolsonaro”, observa Meirelles.
Apesar da constância com que governos pautam a pavimentação, há uma diferença agora: o processo de licenciamento ambiental para o “trecho do meio” está avançando sem que sejam respeitados os trâmites necessários para garantir um debate qualificado, alertam as ativistas.
As audiências públicas, por exemplo, aconteceram em meio à pandemia, e sem que as comunidades do entorno tenham sido convidadas a participar. Já o estudo de componente indígena, item obrigatório para calcular o impacto da obra sobre as populações nativas, ainda nem foi concluído — mesmo assim, o Estudo de Impacto Ambiental, etapa importante para o prosseguimento da obra, foi entregue.
Tampouco foi cumprida a consulta aos povos indígenas dentro do que preconiza a convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) — da qual o Brasil é signatário. “O estudo de componente indígena ficou restrito a algumas Terras Indígenas que estão localizados no trecho do meio, mas compreendemos que uma consulta ampla deveria ser feita com todos povos indígenas na área de influência da estrada”, observa Meirelles.
Procurado pela Mongabay para comentar as críticas, o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT), que coordena a pavimentação, assegura que “só iniciará as obras do trecho do meio após a obtenção das licenças”.
“O Governo Federal acredita na viabilidade de um empreendimento com governança ambiental, que recupere áreas degradadas e traga efetividade para as unidades de conservação. Para isso, estão sendo feitos estudos ambientais extremamente sofisticados”, completa o DNIT. A íntegra da resposta pode ser lida aqui.
Proteção retirada
Não é só de Brasília que vem o estímulo para desmatar. No ano que passou, a Assembleia Legislativa de Rondônia e o governador do Estado, coronel Marcos Rocha, aprovaram dois projetos de lei para reduzir — e até extinguir — unidades de conservação locais.
O Tribunal de Justiça considerou ambos inconstitucionais, mas o estrago já estava feito: a Reserva Extrativista Jaci-Paraná, listada nos dois PLs, liderou o ranking de desmatamento entre Unidades de Conservação e Terras Indígenas na área de influência da BR-319: apenas nesta reserva foram 7.818 hectares postos abaixo em 2021, área equivalente a duas vezes o Parque Nacional da Tijuca, no Rio de Janeiro.
A Terra Indígena com maior desmatamento segundo o monitoramento do Observatório BR-39 foi a TI Karipuna, que faz divisa com duas UCs afetadas pelas legislações, depois anuladas pela Justiça de Rondônia. “Tanto a Resex Jaci-Paraná como o Parque Estadual de Guajará-Mirim, que tiveram seus limites reduzidos em 2021, estão na área de amortecimento da TI Karipuna”, exemplifica Guarido, do Idesam.
A virada do ano não trouxe alento, lamenta a pesquisadora: “Os dados de janeiro de 2022 são alarmantes”. O desmatamento foi 339% maior na área de influência da BR-319 do que em janeiro de 2021.
“Deve continuar piorando sim”, acredita Torquato, do CNS. “Ninguém precisa dizer ao grileiro tomar terra à força. É só ele saber que vai ter as multas perdoadas, que a lei ambiental vai ser enfraquecida. E isso, os governos estão fazendo muito bem.”
https://brasil-mongabay-com.mongabay.com/2022/03/regiao-preservada-da-amazonia-com-povos-isolados-pode-ser-devastada-em-menos-de-30-anos/
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Imagem do banner: Foco de incêndio junto à BR-319. Foto: Orlando K. Jr./Fundação Amazonas Sustentável