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No Tapajós, garimpo ilegal destrói sítios arqueológicos que jamais serão conhecidos

  • Estudos arqueológicos na região do Tapajós, no Pará, enriquecem o conhecimento histórico sobre a ocupação da Amazônia e registram alguns dos vestígios mais antigos das Américas.

  • A área, porém, é alvo do garimpo ilegal industrializado, que causa destruição massiva. Projetos de hidrelétricas, portos, hidrovias, ferrovias e barragens na região também impactam diretamente a vida de comunidades indígenas e ribeirinhas.

  • Devastados pelo avanço do que é vendido como desenvolvimento, inúmeros sítios arqueológicos jamais serão sequer conhecidos.

  • Ao mesmo tempo, o governo Bolsonaro corta verba para pesquisa, publica decretos que afetam a proteção de cavernas e facilita a entrada de garimpeiros.

O mito do “vazio demográfico” na Amazônia e da “floresta virgem” vem sendo derrubado sistematicamente por uma série de estudos científicos que mostram que a região foi ocupada por milhões de pessoas no passado.

A arqueologia tem um papel central em revelar a riqueza histórica, cultural e socioeconômica dessa ocupação. No caso da região do Tapajós, no Pará, recentes descobertas fortalecem achados das décadas de 1970 e 1980.

O relatório “Tapajós Sob o Sol”, lançado pela ONG International Rivers, reúne achados arqueológicos inéditos e lembra que, no caminho da pesquisa, estão a industrialização massiva do garimpo ilegal, que causa destruição sem precedentes, o avanço do agronegócio e projetos em cadeia para o Tapajós, como hidrelétricas, portos, hidrovias, barragens e ferrovias.

O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) registra a presença de 375 sítios arqueológicos nos municípios situados no entorno do Rio Tapajós: são 134 em Itaituba, 81 em Santarém, 65 em Jacareacanga, 59 em Belterra, 21 em Rurópolis, 9 em Novo Progresso e 6 em Aveiro.

“Essa ideia do grande vazio, esse mito da floresta prístina, permite uma ideia de recursos naturais a serem explorados. Quando olhamos para as informações que a arqueologia pode fornecer, ela desbanca a ideia de áreas vazias. Não é possível mais pensar que são áreas desocupadas, esses lugares têm donos”, afirma a pesquisadora Bruna Rocha, coordenadora e professora adjunta do Bacharelado em Arqueologia da Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa), uma das autoras do relatório.

A maior parte desses sítios arqueológicos está relacionada a ocupações humanas mais densas em termos demográficos, indicando um caráter sedentário, e boa parte datadas entre o ano 1 d.C. e o início do século 20.

Vaso de cerâmica antropomórfico encontrado na região do Rio Tapajós, datado do primeiro milênio d.C.. Foto: Museu Nacional, CC BY-SA 4.0.

Objetos como pontas de projétil feitos de pedra lascada — encontrados em diferentes pontos do Tapajós — sugerem que os primeiros humanos percorreram a região há milênios, possivelmente ainda na transição entre o Pleistoceno e Holoceno, ou seja, há cerca de 10 mil anos.

A partir de aproximadamente 4.500 anos atrás, há indícios importantes que indicam as práticas de policultura florestal, como o cultivo de milho, batata doce, cereais e tubérculos. Firmadas em bases agroflorestais, as aldeias no Baixo Tapajós, incluindo a área do Rio Arapiuns, passaram por crescimento demográfico no primeiro milênio d.C..

Esse aumento na concentração de pessoas é evidenciado pela alta quantidade de sítios com a chamada Terra Preta de Índio. É um tipo de solo cultural, gerado pelo acúmulo de resíduos orgânicos e pelo uso controlado do fogo, relacionado a mudanças sociais profundas que ocorreram na Amazônia e que os registros mais antigos apontam para 4 mil anos atrás.

“A Terra Preta é um indício de que tinha muito mais gente morando nesses rios no passado do que hoje. Desconsiderando as ocupações urbanas, nas margens de rios, para onde você olhar tem sítio arqueológico”, indica Rocha, que estuda a região desde 2010 e participa de pesquisas com diversos achados desde então.

Marcadores importantes da concentração humana, áreas com Terra Preta de Índio podem chegar a até 4 metros de profundidade. “As Terras Pretas são importantes para a agricultura regional e diversos tipos de cultivo. Os indígenas costumam escolher áreas de Terra Preta para estabelecer novas aldeias, já que é uma garantia de infraestrutura botânica e vegetal que será mais favorável para desenvolvimento da vida, como árvores frutíferas e plantas medicinais”, explica a professora.

Estudo publicado em dezembro de 2021 com análises do DNA de indígenas do Brasil e de outros países da América do Sul trouxe novos indícios de que a Amazônia foi habitada por milhões de pessoas antes da invasão europeia.

Rocha ressalta que em áreas como a Caverna da Pedra Pintada, em Monte Alegre, registram algumas das mais antigas datas de ocupação humana nas Américas. Perto de Santarém há um sambaqui, o Taperinha, que contém as cerâmicas mais antigas do continente.

Escavação na Terra Indígena Sawré Muybu mostra o contraste entre a Terra Preta de Índio, solo cultural de cor escura e com cerâmicas arqueológicas que datam de cerca do ano 1000 d.C., e o latossolo amarelado localizado abaixo, que é o solo natural e sem vestígios arqueológicos. Foto: Bruna Rocha.

600 km de rios contaminados

Mas essa riqueza histórica e sociocultural está fortemente ameaçada pelo avanço do garimpo ilegal.

Apenas nas Terras Indígenas Munduruku e Sai Cinza, no sudoeste do Pará, no Médio Tapajós, os criminosos devastaram pelo menos 632 quilômetros de rios desde 2016. O aumento foi superior a impressionantes 2.000% em 5 anos.

Afluentes do Tapajós são os cursos d’água mais prejudicados pelo garimpo. Pesquisas da Fiocruz revelam que 100% da população indígena Munduruku está contaminada com mercúrio.

“O garimpo tem destruído incontáveis sítios arqueológicos, é uma degradação irreversível da paisagem. Todas as camadas de solo que são camadas culturais, que têm um pacote arqueológico, são destroçadas. É um processo muito, muito violento”, diz Rocha.

Com um processo tão acelerado e sem recursos para a pesquisa, cria-se a situação inusitada de que muitas vezes os garimpeiros são os primeiros a encontrarem vestígios arqueológicos. “Eles mergulham e encontram eventualmente artefatos inclusive de madeira, o que é muito difícil de achar. Mas tudo isso se perde”, lamenta a pesquisadora, que cobra uma avaliação do impacto cumulativo de todos os projetos que estão acontecendo no Tapajós.

Nesse fluxo, os indígenas raramente são consultados e têm poder de veto, como prevê a Convenção 169 da OIT, ratificada pelo Brasil.

“Para nós, o Rio Tapajós é um rio sagrado. Ele foi criado por Karosakaybu (ancestral reverenciado pelos Munduruku). Alguns Munduruku viraram peixe, outros viraram aves, outros viraram árvores, outros porcos. A gente sabe como este rio foi construído, e ele tem relação com a nossa história e a da floresta”, diz a liderança indígena Juarez Saw Munduruku, cacique da aldeia de Sawré Muybu, que está estabelecida em um sítio arqueológico de Terra Preta de Índio.

Garimpo ilegal na Terra Indígena Munduruku (PA). Foto: Vinícius Mendonça/Ibama.

Cavernas ameaçadas e verbas cortadas

Em janeiro, Jair Bolsonaro publicou o Decreto 10.935, que autoriza a destruição de cavernas, incluindo as de máxima relevância ecológica, histórica e cultural, para favorecer a instalação de novos empreendimentos.

Encomendado pelo setor mineral, este decreto, que no momento teve o seu efeito suspenso pelo Supremo Tribunal Federal (STF), coloca em risco o patrimônio arqueológico brasileiro.

“Cavernas são lugares privilegiados do ponto de vista arqueológico porque a deterioração dos vestígios históricos é muito mais demorada. Temos a chance de encontrar vestígios preservados muito mais antigos, o que é bem mais difícil em sítios a céu aberto”, explica Bruna Rocha.

Bolsonaro tem apostado em mudar regras infralegais na canetada, alterando tudo o que pode por conta própria sem precisar do aval do Congresso. Na sequência do decreto sobre cavernas, vieram dois outros decretos que simplificam os processos de outorga dentro da Agência Nacional de Mineração e facilitam o garimpo.

Ao mesmo tempo, a verba para pesquisa tem sido cortada drasticamente no Brasil. Para 2022, R$ 600 milhões de recursos para pesquisa foram eliminados pelo governo, o que representa 92% das verbas para Ciência e Tecnologia. No total, a pasta perdeu 60% das verbas quando comparado a 2015.

Na prática, isto deixa muito mais difícil que pesquisas sejam feitas em todas as áreas da ciência, e a arqueologia não é exceção. “Sempre trabalhamos com poucos recursos e estamos falando de uma extensão territorial considerável. É difícil viajar e chegar até os locais. O deslocamento é muito caro, a logística, toda a construção de conhecimento fica comprometida”, afirma Rocha.

Imagem do banner: Vaso de cerâmica encontrado na região do Rio Tapajós, datado do primeiro milênio d.C.. Foto: Museu Nacional, CC BY-SA 4.0.

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