Em 2013, os Ka’apor expulsaram a Funai de seu território no norte do Maranhão, criaram um novo conselho de governo, adotaram seu próprio sistema de ensino e de estabeleceram assentamentos permanentes ao longo de suas fronteiras para conter o avanço ilegal de madeireiros, grileiros e mineradoras.
Construídos em campos de extração de madeira recuperados ou ramais de acesso, esses assentamentos são comunidades agroflorestais auto-sustentáveis que formam uma rede de postos de defesa e vigilância ao longo da reserva de 3 mil hectares. Já são 11 comunidades assentadas.
A estratégia rendeu frutos: apenas nos primeiros três anos, os Ka’apor queimaram 105 caminhões e fecharam quatorze estradas madeireiras. E a perda de cobertura florestal na TI, que era de 2.700 hectares em 2018, caiu para 600 hectares.
Em represália, organizações criminosas ligadas a políticos locais têm reagido com grande violência contra os Ka’apor, resultando em ataques a aldeias e cinco indígenas assassinados.
Na Amazônia brasileira, os povos indígenas são tão diversos quanto numerosos. Mas uma coisa que todos têm em comum é a pressão implacável de invasores impulsionados pelo desejo explorar os recursos naturais.
Diante da inação do governo, os Ka’apor tomaram as rédeas da situação, criando um território indígena autônomo, que prescinde da intervenção do Estado. um dos primeiros Territórios Indígenas autônomos do século 21. Pioneiros na estratégia de autodefesa, inspiraram outros povos da região. Mas enquanto os Ka’apor conseguiram repelir os “agressores”, eles continuam vivendo sob a constante ameaça de violência enquanto as autoridades encarregadas de protegê-los nada fazem.
Ka’apor, em sua língua, significa “povo da floresta”, de modo que o meio natural faz parte de sua própria identidade. Sem um, o outro não existiria. Durante décadas, mata e indígenas da região sofreram as consequências da extração ilegal de madeira, da mineração e da expansão agrícola, muitas vezes orquestradas por organizações criminosas bem financiadas e politicamente conectadas. Para os Ka’apor, a floresta é como um parente que dá vida; para os invasores é dinheiro. Agora, simplesmente sair de casa significa arriscar a vida.
Depois de deixar suas terras ancestrais há cerca de 150 anos, os Ka’apor embarcaram em uma jornada de centenas de quilômetros a pé na tentativa de se distanciar de uma sociedade colonizadora em expansão que se aprofundava no interior da antiga colônia portuguesa. Eles acabaram se estabelecendo no que é hoje um dos últimos remanescentes de floresta tropical no norte do Maranhão, o estado mais pobre do Brasil.
Seu isolamento foi apenas temporário e, por volta de 1900, os forasteiros já começaram a invadir seu território mais uma vez. Não sendo páreo para armas e germes, a população foi devastada. O Serviço de Proteção ao Índio – o órgão federal responsável na época pelas relações entre Governo Federal e indígenas – achou melhor “pacificar” os Ka’apor, introduzindo a língua portuguesa, os costumes colonizadores e, consequentemente, doenças como o sarampo. Em 1975, a população caiu para menos de 500 pessoas.
Desde então houve uma certa recuperação no número de indivíduos, para cerca de 1.800, mas os Ka’apor e sua floresta permanecem sob constante ameaça. Hoje, 76% da cobertura original da Floresta Amazônica do Maranhão já desapareceu. Quase um quarto do que resta, cerca de 5 mil quilômetros quadrados, pertence aos Ka’apor da Terra Indígena Alto Turiaçu, reconhecida oficialmente pela Funai em 1982.
Vista do alto, a reserva é uma ilha de verde em um mar de pasto. Enquanto a Amazônia perdeu 20% de sua floresta nos últimos 50 anos, a TI Alto Turiaçu perdeu menos da metade disso, em grande parte graças às ações dos próprios indígenas.
Expulsão da Funai
Na última década, os Ka’apor ficaram cada vez mais preocupados com o crescente perigo de influência externa em suas terras e cultura, bem como cada vez mais céticos em relação às intenções da Funai (Fundação Nacional do Índio) de proteger o território. O órgão federal, que historicamente mantinha postos em Terras Indígenas, era visto como cúmplice da venda de madeira ilegal.
Em 2013, as coisas chegaram ao ápice quando a comunidade de Gurupiuna foi atacada por madeireiros. Enquanto os homens estavam fora, pessoas armadas invadiram a aldeia, espancando mulheres e crianças. Frustrados com a incapacidade ou a falta de vontade política do Estado de protegê-los, os Ka’apor decidiram resolver o problema com as próprias mãos.
Acabaram com o sistema de cacicado imposto pela Funai e restauraram o modelo tradicional de gestão Ka’apor, criando um conselho de caciques — Tuxa ta Pame — e, consagrando um Pacto de Convivência entre os líderes de várias comunidades. As decisões seriam tomadas coletivamente dentro de um sistema descentralizado e mais democrático.
Um líder Ka’apor, que pediu anonimato por questões de segurança, explicou à Mongabay que “a Funai não cumpriu seu dever, seja com educação, saúde ou nosso idioma. Eles deveriam estar nos protegendo, não nos dividindo.”
O Tuxa ta Pame expulsou a Funai em 2013, montando seu próprio programa de educação priorizando a língua Ka’apor em detrimento do português. Em 2014, criou o Jumu’e ha renda Keruhu (Centro de Formação e Saberes Ka’apor), um programa de educação administrado por indígenas para formar e treinar futuros líderes, preservando os costumes de seus ancestrais.
Em resposta à ameaça de invasões ilegais, o Tuxa ta Pame criou a Ka’a usak ha (Guarda de Autodefesa Ka’apor), companhias de guerreiros Ka’apor que procuram e expulsam invasores — à força, se necessário. Muitas vezes armados apenas com bordunas, arcos e flechas, eles mesmos fazem o que o governo não conseguiu. Mas livrar-se dos invasores exige uma solução permanente.
Postos avançados de defesa
“Continuamos expulsando os madeireiros, mas eles continuavam voltando”, disse à Mongabay o líder Ka’apor. Assim foi criada a estratégia de implantação de “áreas de proteção”, sendo a primeira inaugurada em 2013.
Antes acostumados a viver no meio da floresta, os Ka’apor tiveram que se adaptar movendo famílias e comunidades inteiras para as fronteiras de seu território para viver em “comunidades agroflorestais auto-sustentáveis”. Construídos no local dos campos de extração de madeira recuperados ou ramais de acesso, esses assentamentos formam uma série de postos de defesa e vigilância contra outras incursões em seu território.
Em 18 de janeiro de 2022, foi criada a décima-primeira área de proteção em um canto fortemente desmatado da TI Alto Turiaçu. Segundo eles, os madeireiros estiveram ativos na área apenas duas semanas antes de os Ka’apor retomarem o controle. Embora houvesse novas evidências de sua atividade, agora estava nas mãos do povo da floresta.
Após sete anos, a estratégia está dando frutos: entre 2013 e 2016, os Ka’apor queimaram 105 caminhões e fecharam quatorze estradas madeireiras, praticamente parando seu avanço. De acordo com dados fornecidos pela Global Forest Watch, a perda de cobertura florestal foi de 2.700 hectares em 2018, mas em dois anos esse número caiu quase 350%, para pouco mais de 600 hectares.
Essa queda corresponde ao aumento do número de áreas de proteção e ao monitoramento ampliado do território pelos Ka’apor. Em algumas das primeiras áreas retomadas, os moradores observaram o retorno da fauna na ausência de maquinário pesado e do som de motosserras.
Ameaças e assassinatos
Os agressores, no entanto, não estão desistindo. Desde 2015, cinco Ka’apor foram mortos e muitos foram ameaçados de morte no que os líderes afirmam serem atos de vingança pela proteção da floresta. O Brasil ainda é o país mais perigoso do mundo para defensores da terra, dos rios e das florestas.
A cada nova área de proteção vinha um ato de represália. O cacique Eusébio Ka’apor foi emboscado e assassinado por pistoleiros em 2015. No ano seguinte, um membro da Guarda de Autodefesa, Sairá Ka’apor, foi esfaqueado até a morte no povoado madeireiro de Betel, no município de Araguanã. Em 2019, Kwaxipuru Ka’apor foi espancado até a morte e, no ano passado, Jurandir Ka’apor foi baleado e morto por madeireiros.
A reportagem da Mongabay conheceu pessoalmente vários Ka’apor que sobreviveram a atos de violência direcionados. Um homem foi atingido por uma bala no couro cabeludo, enquanto outro foi baleado nas costas. Um terceiro foi jogado de um caminhão madeireiro em fuga e atropelado pelo caminhão que vinha atrás. Ele sofreu danos cerebrais e passou semanas se recuperando, mas desde então retornou à Guarda de Autodefesa. Todos pediram que seus nomes fossem mantidos em anonimato.
Durante a instalação da última área de proteção, um líder dos Ka’apor e um outro não-indígena afirmam ter sido cercados e ameaçados por supostos pistoleiros na cidade de Santa Luzia do Paruá. Após correrem para a Delegacia de Polícia Civil por segurança, que estava fechada, eles só conseguiram voltar ao seu território após contatarem a Sociedade Maranhense de Direitos Humanos (SMDH) e o Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos (PPDDH), que acionaram a Secretaria de Segurança Pública do Estado, que forneceu escolta policial horas depois.
Em fevereiro, líderes Ka’apor relataram que indígenas que viajavam por uma estrada fora da reserva estavam sendo parados por homens desconhecidos, ameaçando-os. Acredita-se que eles estejam procurando por líderes Ka’apor, quatro dos quais estão atualmente no Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos — mas que recebem pouca ou nenhuma proteção, segundo eles.
Interesses políticos
Como no resto do país, as ameaças e a violência contra os indígenas ficam em grande parte impunes, já que os perpetradores estão frequentemente ligados a poderosos interesses comerciais ou organizações criminosas que desfrutam da proteção de funcionários públicos corruptos. Até agora, nenhuma investigação encontrou os culpados pelos crimes mencionados. Em alguns casos, a polícia nem se deu ao trabalho de investigar.
Embora as questões o precedessem há muito tempo, a eleição do presidente Jair Bolsonaro significou que os planos de abrir Terras Indígenas para a exploração de recursos avançaram. Vários funcionários públicos locais – muitos membros de partidos alinhados ao presidente – são suspeitos de envolvimento em atividades ilegais em território indígena.
Em dezembro do ano passado, em uma entrada do território Ka’apor no povoado de Tancredo Neves, município de Nova Olinda do Maranhão, madeireiros foram abordados por membros da Guarda de Autodefesa Ka’apor. Após interrogatórios, os homens teriam chamado o prefeito do município vizinho de Araguanã, Flávio Amorim (PL), em um acordo para fornecer caminhões. Em outro episódio, o vereador Bené do Tancredo (Republicanos) foi encontrado com madeireiros, onde teria dito aos Ka’apor que “todo mundo trabalha ilegalmente nesta cidade”.
Em outubro passado, Júnior Garimpeiro (PP) – prefeito da cidade vizinha de Centro Novo do Maranhão – foi preso por mineração ilegal e despejo de produtos químicos tóxicos após uma operação da Polícia Federal na região. Libertado em dezembro, ele teria sido visto entrando na TI Alto Turiaçu pelo Rio Gurupi em viagens de caça e potencialmente prospecção de minerais, ambos ilegais. Segundo os Ka’apor, em março do ano passado o mesmo prefeito chegou em um caminhão com pistoleiros armados e ameaçou lideranças da comunidade de Gurupiuna.
Um exemplo de como a corrupção local se torna nacional é Josimar Maranhãozinho (PL), duas vezes prefeito da cidade vizinha de Maranhãozinho. Em 2014, ele foi acusado de orquestrar uma operação ilegal de extração de madeira no território Ka’apor, mas as acusações foram retiradas e ele agora é deputado federal, atualmente sob investigação após ser pego desviando fundos públicos.
As mineradoras também continuaram avançando, com quatro pedidos de exploração de ouro feitos ilegalmente nos limites da TI Alto Turiaçu. Três delas pertencem à MCT Mineração Ltda, com sede em Centro Novo do Maranhão, empresa com diversas ações cíveis em andamento relacionadas a crimes ambientais. O outro pertence à gigante de mineração brasileira, a Vale, responsável pela catástrofe ambiental e humana em Brumadinho, entre outras. Todos os quatro pedidos de mineração estão atualmente em andamento, com a proposta de lei de Bolsonaro, o PL 191/2020, visando legalizar essas atividades.
Até hoje os governos municipais, estadual e federal se recusam a reconhecer quaisquer iniciativas tomadas pelos Ka’apor em seu próprio território. A Mongabay procurou a Funai e as secretarias federal e estadual de Segurança Pública, solicitando comentários sobre denúncias recentes de ameaças feitas contra os Ka’apor e solicitando informações sobre investigações policiais em andamento, mas não houve resposta de nenhum dos procurados até o momento de publicação.
Com o governo Bolsonaro e uma longa ausência de autoridade pública na região, uma cultura de impunidade está correndo o risco de se aprofundar, tornando a violência futura cada vez mais provável. Um apoiador, que trabalha em estreita colaboração com o Tuxa ta Pame e que recebeu várias ameaças de morte, disse à Mongabay: “Vivemos sob pressão permanente. Mesmo que estejamos fazendo a coisa certa, não temos ninguém do nosso lado. Vivemos sob tensão de tudo e de todos apenas por defender a floresta e seu povo.”
Imagem do banner: Mulher Ka’apor e seu filho em uma expedição de pesca na área recém-ocupada e fortemente desmatada da TI Alto Turiaçu, Maranhão. Foto: Andrew Johnson.