Em janeiro de 2021, a Funai decidiu não prorrogar uma ordem de proteção territorial para o grupo indígena isolado Igarapé-Ipiaçava, no Pará; após um protesto público e pressão legal, a ordem foi prorrogada por seis meses.
Documentos confidenciais vazados para o movimento de defesa de povos indígenas Survival International, ao qual a Mongabay teve acesso, mostram oficiais superiores da Funai tentando desqualificar um relatório técnico que reuniu provas de presença de indígenas isolados em novembro de 2021.
Os memorandos vazados também mostram que o presidente da Funai, Marcelo Xavier, reuniu-se com o senador Zequinha Marquinhos, leal a Bolsonaro e abertamente contra a ordem de proteção territorial, para discutir o relatório confidencial.
A Funai ignorou outro relatório sobre um grupo indígena não identificado anteriormente, os Isolados da Mamoriá Grande, no estado do Amazonas, durante mais de cinco meses, segundo uma investigação da agência de notícias O Joio e O Trigo.
A Fundação Nacional do Índio (Funai) desprezou novas evidências de grupos indígenas não contatados encontradas por duas expedições na Amazônia no ano passado, aumentando a preocupação com a interferência política no órgão governamental.
Críticos ao governo dizem que fica cada vez mais claro que a Funai está agindo contra os interesses dos grupos indígenas isolados. Documentos divulgados em janeiro mostram uma aparente manobra política para desacreditar as evidências sobre os povos isolados Igarapé-Ipiaçava, no Pará. Outra investigação revelou que a Funai ignorou relatos de um grupo indígena anteriormente desconhecido e isolado no estado do Amazonas. Uma decisão agora anulada pelo órgão governamental tentou aumentar o ônus da prova necessária para proteger os grupos indígenas isolados.
“É uma violação do direito à vida. Não estamos falando aqui dos direitos humanos como um conceito amplo. É seu direito à sobrevivência como seres humanos que está sendo negado”, disse Angela Kaxuyana, membra executiva da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB), à Mongabay. “Para nós, os povos indígenas da linha de frente, a linha de ação da Funai está completamente em desacordo com nossos interesses.”
Grupos isolados evitam ativamente o contato com o mundo exterior e residem em áreas remotas, portanto, a coleta de informações sobre eles é complicada. A maioria dos grupos é identificada através de evidências da atividade humana: artefatos, pegadas, restos de caça e pesca, assim como pequenas clareiras na floresta que normalmente não podem ser vistas de cima.
A Funai em transformação
A força tarefa liderada pela Funai encontrou um pote de cerâmica e um casco de tartaruga caçada, entre outras evidências, em sua expedição de setembro na Terra Indígena Ituna-Itatá, no Pará. Isso se soma a uma coleção de uma década de provas residuais que apontam para o grupo indígena não contatado Igarapé-Ipiaçava.
Porém, os funcionários do alto escalão da organização desqualificaram o relatório. O presidente da Funai, Marcelo Xavier, nomeado pelo presidente Jair Bolsonaro, reuniu-se com outro defensor do presidente, o senador Zequinha Marinho, para discutir as conclusões do relatório técnico. De acordo com uma nota interna vazada compartilhada com a Mongabay, Xavier e Marinho descreveram o relatório como “ideologicamente tendencioso” e “sem valor”.
Para Marinho, que defende abertamente a extinção da ordem de proteção territorial (uma diretiva temporária para proteger os territórios das comunidades isoladas contra a exploração madeireira e invasores), a reunião teve como objetivo discutir os direitos de propriedade de 150 famílias realocadas para a área onde a reserva agora se encontra. Essa realocação ocorreu um ano antes da emissão da ordem de proteção territorial.
“O senador luta pela regularização fundiária no estado e defende as famílias rurais deslocadas a essas terras pelo governo”, disse a equipe de Marinho em um comunicado, acrescentando que o senador não acredita que o povo indígena Igarapé-Ipiaçava exista.
“O objetivo é assegurar a propriedade privada dessas terras para os invasores, e não os direitos constitucionalmente garantidos aos povos indígenas”, disse Leonardo Lenin, secretário executivo do Observatório de Direitos Humanos Indígenas Isolados e de Recente Contato.
No Brasil, apenas 28 dos 114 grupos indígenas isolados registrados foram confirmados pela Funai. As políticas para todos os grupos não contatados, confirmados ou não, são direcionadas para garantir uma vida a salvo da morte, doenças e escassez de alimentos.
Contudo, sob a autodeclarada “Nova Funai” de Bolsonaro – uma versão da agência que se recusa a reconhecer novas terras indígenas, mas gasta milhões em tratores industriais -, isso está mudando.
“É absolutamente vergonhoso. Eles estão passando dos limites”, disse Fiona Watson, diretora de pesquisa e defesa da Survival International, a ONG de defesa indígena que recebeu os documentos internos vazados da Funai.
“A Funai está sob enorme pressão, desmoronando. Pessoas como o presidente [Xavier] são indicados políticos. Pessoas boas e experientes já saíram ou foram marginalizadas e silenciadas. Agora está totalmente nas mãos do setor do agronegócio e daqueles que são anti-indígenas”, afirmou Watson.
Propriedade privada acima da proteção indígena
De acordo com o monitoramento do Instituto Socioambiental, o desmatamento disparou na TI Ituna-Itatá desde que Bolsonaro tomou o poder no início de 2019. O desmatamento após 2019 é responsável por 85% de todo o desmatamento no território.
Okara Asurini, chefe indígena da vizinha Terra Indígena Koatinemo, disse que já pode sentir os efeitos. “O impacto é enorme”, disse ele à Mongabay. “Eu estive na reserva de Ituna-Itatá no ano passado, está extremamente desmatada e cheia de fazendas. Estamos tendo um grande problema com os grileiros e com os madeireiros que se mudam para nosso território também. Estamos muito preocupados.”
No dia em que a ordem de proteção territorial expirou, a Funai não a renovou. Cesar Augusto Martinez, diretor de proteção territorial do órgão, expressou sua preocupação com a propriedade privada em uma carta confidencial enviada à Survival International por um denunciante anônimo.
“Estamos preservando o consagrado direito à propriedade na área, que até agora era absolutamente restrito, sem descartar a expectativa de preservação dos direitos originais do suposto grupo”, escreveu Martinez.
Após pressão legal e um protesto público, a decisão foi anulada em 1º de fevereiro e a ordem de proteção foi prorrogada por mais seis meses.
“Os critérios para confirmar a presença de povos não contatados estão mudando de acordo com os interesses externos. A lógica foi invertida”, disse Kaxuyana.
No estado do Amazonas, uma força-tarefa local da Funai relatou evitar o contato próximo com um grupo anteriormente não identificado, chamado Isolados da Mamoriá Grande, após ouvir vozes nas proximidades e encontrar arcos, cestas, panelas e outros objetos em uma área florestal não indígena. Eles encaminharam um relatório com o pedido urgente para demarcar a região.
Mais uma vez, a resposta da liderança da Funai foi insuficiente: a descoberta do Amazonas foi totalmente ignorada durante cinco meses, apesar de várias tentativas de chegar à sede do órgão governamental, de acordo com uma investigação da agência de notícias O Joio e O Trigo.
“O povo que acaba sendo prejudicado é um povo indígena isolado, na floresta, que não pode se defender”, disse Leonardo Lenin.
Imagem do banner: Indígenas em Brasília em agosto de 2021, no Acampamento Luta pela Vida, protestando contra o Marco Temporal, que revê a demarcação de Terras Indígenas. Foto: Tiago Miotto/Cimi.