Relatório aponta que a mineradora Anglo American obtém lucros enormes com sua mina de ferro Minas-Rio, mas gera pouco retorno para as comunidades locais cujas vidas foram arruinadas por suas operações.
A transparência dos fluxos financeiros da mina fica aquém das melhores práticas internacionais, enquanto que o uso dos recursos hídricos locais tem causado escassez para as comunidades, segundo o relatório do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase) e Publish What You Pay.
O mineroduto de 529 quilômetros que a Anglo American utiliza para transportar o minério processado até o porto rompeu duas vezes em 2018, derramando quase mil toneladas de minério de ferro nos rios vizinhos, o que resultou na contaminação de terras agrícolas, pastagens e fontes de água.
O prefeito local diz que o município ficaria falido sem a mina e que a Anglo American tem feito um esforço ativo para apoiar o desenvolvimento sustentável, embora os moradores discordem, temerosos por uma ruptura da barragem de rejeitos de minério.
A mineradora Anglo American, sediada no Reino Unido, apresenta enormes lucros exportando minério de ferro do Brasil para a China, mas gera pouco retorno às comunidades locais, cujas vidas são agora dominadas pela incerteza e pelo medo. É o que revela um novo relatório conjunto do Instituto Brasileiro de Análise Social e Econômica (Ibase) e da Publish What You Pay, uma coalizão global de transparência voltada para o setor extrativista.
O projeto de mineração Minas-Rio extrai e processa minério de ferro nos municípios de Conceição do Mato Dentro e Alvorada de Minas, no sudeste de Minas Gerais. Em seguida, transporta o minério em pó por um mineroduto de 529 quilômetros (considerado o mais longo duto mineral do mundo) até o Porto do Açu, no Rio de Janeiro, de onde é embarcado para a China. O mineroduto rompeu duas vezes em 2018, derramando quase mil toneladas de minério de ferro. Esses incidentes são sintomáticos da falta de transparência na forma como a mineradora faz negócios, o que é incompatível com as melhores práticas da indústria e oferece poucos benefícios materiais para as comunidades rurais mais afetadas, de acordo com o relatório.
A poeira e o barulho causados pelo projeto de mineração Minas-Rio substituíram a rotina calma da vida rural, e os rios e riachos da região estão agora assoreados e poluídos, afetando o abastecimento de água potável de várias comunidades, assim como suas atividades agrícolas. O uso dos recursos hídricos naturais da região é apontado pelas comunidades locais como causador da escassez e da poluição hídrica. Além disso, a falta de transparência no setor de mineração do país agrava os impactos, diz o relatório.
“A informação foi muito difícil de encontrar, e o que conseguimos encontrar revelou uma importante questão com a governança dos recursos naturais do Brasil”, diz Athayde Motta, diretor executivo do Ibase e co-autor do relatório, “Em Busca da Transparência”: Acabando com a Opacidade no Setor Extrativista do Brasil”. “Desde que começamos a pesquisar para o relatório, essa governança tem sido ainda mais deteriorada.”
Desde o início do governo de Jair Bolsonaro, no início de 2019, 57 projetos de lei que enfraquecem a proteção ambiental foram aprovados no país, incluindo legislação que permite a emissão de licenças de mineração antes mesmo da conclusão das revisões ambientais, de acordo com um estudo publicado em março de 2021 na revista Biological Conservation, reportado pela Mongabay. A Anglo American possui mais de 300 pedidos pendentes de prospecção ou mineração em terras indígenas na Amazônia brasileira – uma prática que é ilegal segundo a Constituição do país, mas que pode ser permitida em breve se outro projeto de lei controverso for aprovado.
Em 2018, a ONU advertiu o Brasil sobre ameaças a seis famílias da classe trabalhadora em Conceição do Mato Dentro, depois de entrarem com uma ação judicial contra as operações da Anglo American Iron Ore Brazil S.A, subsidiária local da mineradora. Mais tarde, eles entraram em um programa de proteção estatal para defensores de Direitos Humanos.
O relatório recomenda que o governo brasileiro se junte aos 55 países já filiados à Iniciativa de Transparência das Indústrias Extrativas, que visa estabelecer um novo padrão global para a mineração e a governança do petróleo.
Em uma declaração, a Anglo American disse que “cumpre rigorosamente a legislação vigente e tem suas atividades licenciadas e monitoradas pelas autoridades competentes” e que “já segue os melhores padrões e diretrizes internacionais”. A empresa alega que, no Brasil, “opera com total regularidade nas cidades-sede, atuando com ações de prevenção, mitigação, controle e monitoramento dos impactos sociais e ambientais”. O governo brasileiro e o Ministério de Minas e Energia não responderam ao pedido de comentários da Mongabay.
“Todas estas empresas multinacionais afirmam operar respeitando as leis locais, e o fazem. Porém, as leis locais são frequentemente inferiores às melhores práticas internacionais. Isso parece ser o caso do Brasil também”, diz Miles Litvinoff, outro co-autor do relatório e ex-diretor da Publish What You Pay U.K. “Um retorno financeiro positivo é muito difícil, se não impossível, sem transparência e responsabilidade”, comentou.
Explosões, água poluída e medo
Alice passou a sua infância brincando numa cascata perto de sua casa. A cachoeira já se foi, e em seu lugar está a imensa represa de rejeitos de mineração da Anglo American.
Alice, que pediu que seu nome verdadeiro não fosse usado por medo de perseguição, diz que a sua comunidade está dominada pela ansiedade devido à expectativa de novos desastres. A comunidade assistiu ao colapso de duas outras grandes barragens de rejeitos nos últimos seis anos no estado de Minas Gerais, consideradas os piores desastres ambientais da história do Brasil.
Os moradores vivem dentro do que os socorristas chamam de zona de auto-salvamento: se a barragem de rejeitos da Anglo American se rompesse, a onda de lama tóxica os alcançaria antes que as equipes de emergência pudessem chegar. “Todos aqui vivem em constante medo, com ou sem chuva”, diz Alice à Mongabay. “Em noites chuvosas, esse medo cresce”.
A Anglo American ofereceu-se para pagar a recolocação de qualquer pessoa que viva nesta zona, e diz que 80% das famílias optaram voluntariamente por ela. No entanto, Alice diz que os termos não são bons o suficiente. “Nós subsistimos da agricultura familiar. Se sairmos hoje, teremos comida para comer quando o nosso dinheiro acabar?”, pergunta ela. “Talvez tenha trazido alguns benefícios para as pessoas nas cidades, mas não vi nenhum ponto positivo aqui. A nossa prioridade é partir, mas com os nossos direitos totalmente garantidos.”
Hoje, a rotina rural de sua família é atormentada por explosões repentinas e um cheiro desagradável da mina a menos de 1,5 km de sua casa. Segundo Alice, sem água doce disponível, sua família agora depende dos caminhões de água da Anglo American, enquanto seus animais bebem água contaminada do rio. “A vida era melhor antes”, lamenta.
De acordo com o relatório, as comunidades locais estavam preocupadas com os impactos sobre o seu modo de vida desde o início, antes de a mina ser totalmente licenciada, mas os riscos foram minimizados pelas autoridades locais. “Ansiedades das comunidades rurais (…) foram ignoradas durante os estágios de licenciamento, tratadas como meras expressões de ‘percepção’, e impactos qualificados como ‘alegados’ ou ‘supostos’, em vez de considerados de maneira objetiva, como reais consequências da mina e sua infraestrutura”, diz o relatório.
Os recursos hídricos da região em torno da mina Minas-Rio foram severamente impactados, de acordo com o relatório. Rios e cachoeiras foram desviados para serem usados pela mina, e a água restante está agora poluída, afetando a água potável e a produção de alimentos. Imagem gentilmente cedida por Alexandre Guzanshe/IBASE.
1 bilhão de dólares em três meses
Enquanto a operação de mineração da Anglo American fatura bilhões de dólares, apenas uma pequena fração de sua produção permanece no Brasil. De acordo com os resultados do terceiro trimestre, publicados em 21 de outubro de 2021, a empresa exportou cerca de 1 bilhão de dólares de minério de ferro em três meses, apenas de sua operação Minas-Rio. Com royalties fixados em 3,5%, apenas 34 milhões de dólares são pagos aos municípios em que opera, com ativistas locais dizendo que nenhum benefício tangível impacta a vida dos mais prejudicados pela mina.
O custo de produção atual da Anglo American é de 21 dólares por tonelada de minério de ferro, e a commodity é vendida atualmente por 167 dólares por tonelada, de acordo com as mais recentes declarações de produção da empresa. Outros 5 dólares por tonelada são divididos entre “desenvolvimento de mercado e projetos estratégicos, custos de exploração e avaliação, custos de restauração e reabilitação e outros custos corporativos”, de acordo com o Resumo Global 2020 da mineradora.
Não há indício de qualquer atividade ilegal, mas os autores do relatório questionam por que o Brasil tem feito um negócio tão ruim com seus recursos naturais, que são finitos. “As empresas deveriam ter um lucro razoável com a extração, e ponto”, disse Litvinoff. “Além de um lucro razoável, todo o resto deveria ser de domínio público e usado para o bem comum”.
Um aviso de entrada não autorizada em área do projeto Minas-Rio, da Anglo American, no município de Conceição do Mato Dentro, no sudeste do estado de Minas Gerais. Imagem cortesia de Alexandre Guzanshe/IBASE.
Para José Fernando de Oliveira, prefeito de Conceição do Mato Dentro e autoproclamado ambientalista, o projeto de mineração vai dar frutos a longo prazo. Oliveira disse que a empresa tem feito um esforço ativo para compensar os impactos negativos, que ele descreve como inevitáveis. Ele disse à Mongabay que, sem a Anglo American, a cidade estaria falida. Acrescentou, ainda, que mais de 70% da receita do município agora vem dos royalties da mineração.
“Estamos atravessando um período de crescimento econômico, e nossa missão é transformar esse crescimento em desenvolvimento e qualidade de vida”, disse Oliveira por telefone, complementando que a mina apoia investimentos em ecoturismo e infraestrutura. “Há uma enorme preocupação por parte da empresa para mitigar os impactos negativos e investir em impactos positivos, como o financiamento da diversificação econômica. A mineração não tem uma segunda safra, é um recurso finito, por isso a sustentabilidade é o nosso objetivo”.
Porém, para a sociedade civil e os membros da comunidade rural, a realidade é diferente. “A Anglo American fala muito bem de todas as suas diversas iniciativas, mas se as suas práticas são tão boas, então por que há pessoas que se opõem à mina sob programas de proteção de testemunhas? Por que temos provas de que as comunidades estão divididas e incapazes de perseguir seus meios de subsistência tradicionais, e temem a ruptura de barragens?”, Litvinoff questiona. “É uma troca muito desigual.”
Imagem de banner: Mina da Anglo American em Conceição do Mato Dentro. Foto: Alexandre Guzanshe/Ibase.