Incêndios continuam se espalhando ao redor e dentro do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros, em Goiás, Patrimônio Mundial da Unesco.
O parque abriga dezenas de espécies ameaçadas, assim como nascentes; especialistas alertam para a intensidade dos incêndios, que podem danificar permanentemente a vegetação natural.
Diversos pesquisadores haviam previsto, no início deste ano, que a seca contínua, o aumento das taxas de desmatamento e a falta de fiscalização resultariam em um grave período de incêndios.
Apesar de cobrir pouco mais de 20% da superfície terrestre do Brasil, o Cerrado apresentou níveis de incêndio acima da média em todos os meses deste ano. Cerca de 36% de todas as queimadas do país ocorreram no bioma.
Os incêndios que já destruíram pelo menos 18 mil hectares de vegetação do Cerrado agora ameaçam o Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros, no nordeste de Goiás. Queimadas registradas em 12 de setembro próximo a Alto Paraíso de Goiás, uma das cidades turísticas mais conhecidas da região, obrigaram cerca de cem turistas a serem evacuados. A Polícia Civil está investigando se a origem dos incêndios é criminosa.
Dois incêndios em particular representaram um risco para o parque, um Patrimônio Mundial da Unesco que é refúgio importante para várias espécies ameaçadas de extinção, incluindo onças-pintadas, lobos-guarás e patos-mergulhões, além de espécies vulneráveis como veados-campeiros, seriemas, tatus-canastra e tamanduás-bandeira.
Para Isabel Schmidt, ecóloga da Universidade de Brasília (UnB) que trabalha no bioma há mais de uma década, o parque é especial porque está a uma altitude maior do que o resto do Cerrado. “Muitas plantas e animais [são] únicos daquela região. É uma área importante para a água e em termos de biodiversidade”, afirmou.
Estima-se que existam 70 espécies de mamíferos, 306 de aves, 53 de anfíbios e répteis e 49 de peixes no parque nacional, assim como mais de mil espécies de mariposas, 160 de abelhas e até 400 espécies de plantas vasculares por hectare.
“Os incêndios atingiram áreas dentro do parque, mas as maiores extensões de vegetação afetadas este ano estão fora da unidade de conservação”, disse Fernando Tatagiba, ex-chefe do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros e analista ambiental do ICMBio, órgão do governo federal que administra parques e outras unidades de conservação. “Mas considerando que a fauna se move entre as áreas, mesmo incêndios em propriedades privadas próximas têm impactos negativos sobre a biodiversidade do parque”.
Segundo Tatagiba, os incêndios deste ano são menores do que os registrados em 2010 e 2017 – quando um quarto do parque foi destruído pelo fogo – mas ainda assim são alarmantes, pois são muito piores do que os do ano passado, sendo devastadores para a vegetação e a vida selvagem.
“É realmente difícil combater os incêndios, porque as temperaturas são tão altas, os ventos são muito fortes e tudo é tão seco”, disse por telefone à Mongabay Ivan Anjo Diniz, coordenador operacional da ONG Rede Contra Fogo, uma rede de bombeiros voluntária que opera na região desde 2017. De acordo com ele, mais de 150 bombeiros – entre voluntários, locais e estaduais – estão trabalhando 24 horas por dia para apagar os incêndios.
Claudomiro de Almeida Cortes, bombeiro voluntário desde 2007 e também participate de projetos de restauração dentro do parque nacional, disse estar preocupado com o impacto dos incêndios na vegetação natural, crucial para a manutenção da água no Cerrado. “Está matando as florestas de galeria que protegem as nascentes, e com isso as nascentes estão secando”, disse ele.
“Estes incêndios atuais são extremos”, disse Schmidt, da UnB. “Nesta época do ano, são todos [provenientes] de ação humana. Estão totalmente deslocados, fora do regime de fogo natural.”
Os incêndios deste ano estão acontecendo no final da estação seca do Cerrado, que vai até outubro e se caracteriza por uma umidade extremamente baixa e disponibilidade de muita biomassa lenhosa que vem secando há meses. Essa é a pior época para muitas das plantas e animais, de acordo com Schmidt. “A maioria das plantas lenhosas se reproduzem no final da estação seca, por isso neste momento estão florindo e frutificando. Elas não têm muita energia para sobreviver [se forem queimadas]”, disse ela.
Além disso, quando os incêndios queimam grandes áreas, os animais correm um risco muito maior de morrerem. “Mesmo que um animal sobreviva ao fogo, ele não tem uma área para viver, nem tem para onde ir”, disse Schmidt. “Os herbívoros não têm plantas para comer, os animais não têm abrigo ou comida. Então a mortalidade é maior após o incêndio”.
Trio mortal: mudanças climáticas, desmatamento e falta de fiscalização
Os incêndios deste ano não são necessariamente uma surpresa para aqueles que trabalham e estudam a savana brasileira. Partes da Amazônia e do Cerrado estão enfrentando sua pior seca em quase um século, assim como altos níveis de desmatamento. Os cientistas vêm alertando há meses sobre o potencial para que esta temporada de incêndios seja excepcionalmente ruim, como relatou a Mongabay em julho.
O Cerrado tem sido duramente atingido. Até agora, em todos os meses deste ano, a região tem registrado níveis de incêndio acima da média. Mais de 36% de todos os incêndios no Brasil este ano ocorreram no bioma, apesar de o Cerrado cobrir apenas pouco mais de 20% da superfície terrestre do país, segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).
“As alterações climáticas contribuem muito para o aumento da intensidade, frequência e duração da época de incêndios”, disse Schmidt, acrescentando que o desmatamento e as políticas de supressão de incêndios também são fatores determinantes.
Este ano, o Cerrado tem visto os piores níveis de desmatamento desde 2012, e os cortes no orçamento para o Ministério do Meio Ambiente significam que a fiscalização está no nível mais baixo de todos os tempos.
Programas ambientais em todo o Brasil têm sido reportados como tendo suas verbas diminuídas, tais como o programa integrado de gestão de incêndios com o qual Schmidt e Tatagiba estão envolvidos. A falta de fundos no Inpe também pode significar que o monitoramento por satélite do Cerrado provavelmente será cortado a partir do próximo ano, tornando muito mais difícil o rastreamento de tudo, desde incêndios e desmatamento até a propagação de terras de cultivo e pastagens.
Cerca de metade da vegetação do Cerrado foi desmatada para o cultivo de soja, algodão e milho e para abrir pastagens para o gado. Grande parte da biodiversidade restante está contida em uma dispersão de parques nacionais e reservas ecológicas, como o Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros.
Há um consenso global entre os pesquisadores de que o fogo é essencial para manter a diversidade de espécies nas savanas tropicais. Historicamente, queimadas têm sido uma parte importante dos ecossistemas de savana, e muitas das plantas e animais do Cerrado estão adaptadas ao fogo, ou, em alguns casos, precisam dele para florescer. Durante anos o governo brasileiro manteve uma política de conservação de fogo zero e tentou extinguir todos os incêndios, mesmo aqueles considerados úteis.
Em 2014, as autoridades começaram a incorporar a queima prescrita nas suas práticas de gestão de terras em parques do Cerrado e reservas ecológicas. Demonstrou-se ser bem-sucedida na redução da intensidade e tamanho dos incêndios e na manutenção da biodiversidade. Porém, os incêndios prescritos e naturais são de baixa intensidade e são sempre feitos na estação das chuvas ou logo no início da estação seca.
Imagem de banner: Veado-campeiro (Ozotoceros bezoarticus), espécie encontrada no Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros. Foto: Fernando Tatagiba/ICMBio.