Reconhecida como a cidade mais indígena do Brasil, São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas, tem aproximadamente 90% da população índigena, segundo estimativas de entidades locais, considerando a área urbana e rural do município.
Localizada na fronteira com a Colômbia e a Venezuela a área urbana de São Gabriel da Cachoeira tem 58% da população autodeclarada indígena, de acordo com o último censo, referente a 2010 (números atualizados só devem estar disponíveis em 2022).
Com uma extensão acima de 100 mil quilômetros quadrados — área equivalente ao território de Cuba e maior que diversos estados brasileiros — a história do município foi marcada pela chegada de militares em 1760 e, posteriormente, a presença de evangelizadores católicos e protestantes, movimentos sociais indígenas organizados, além de Organizações Não-Governamentais (ONGs) nacionais e internacionais focadas na defesa do meio ambiente e povos originários.
Segundo o censo, há 32 etnias indígenas em São Gabriel da Cachoeira, muitas delas desconhecidas no restante do país, como os Koripako, Baniwa, Baré, Wanano, Piratapuya, Tukano e Dãw. O município é único do país com quatro línguas oficiais, além do português: Baniwa, Tukano, Nheengatu e Yanomami. Em contraste à diversidade cultural e étnica, porém, há relatos frequentes de indígenas sendo tratados de forma discriminatória.
SÃO GABRIEL DA CACHOEIRA — Usando a câmera de autorretrato do celular como espelho, a indígena Penha Góes Figueiredo Yanomami passa no rosto a pintura vermelha feita de urucum, uma tradição herdada de seu povo. O tingimento costuma ser usado nos dias de festa em sua aldeia mas, dessa vez, Penha Yanomami pinta o rosto sentada na rede da casa de apoio dos Yanomami em São Gabriel da Cachoeira, localizada na região noroeste do Amazonas.
A vida na cidade não distanciou Penha Yanomami, 44, das tradições de seu povo e o urucum na pele reafirma os costumes ancestrais. Nascida na aldeia de Maturacá, na Terra Indígena (TI) Yanomami, no Amazonas, ela trabalha como agente de saúde do Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) do Alto Rio Negro. Mora há um ano e meio em São Gabriel da Cachoeira, núcleo urbano mais próximo da comunidade que atende e, em suas horas de folga, utiliza a casa de apoio reservada aos Yanomami.
“Não [estou aqui] porque eu quero, vim para trabalhar para o povo que precisa de mim como intérprete na cidade”, conta ela, que estudou até a 6ª série e aprendeu o português na escola.
Assim como Penha Yanomami, muitos indígenas vivem entre o ambiente urbano e as comunidades. Enquanto alguns já se estabeleceram definitivamente na cidade, ainda há os que mantêm sua residência nas aldeias.
Segundo estimativa de 2020 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), há 46.303 habitantes em São Gabriel da Cachoeira. O IBGE não divulgou números específicos de indígenas, mas estimativas locais calculam que indígenas representem aproximadamente 90% da população do município, considerando a área urbana e rural. De acordo com o último censo, referente a 2010 (números atualizados só devem estar disponíveis em 2022) 11 mil indígenas vivem na área urbana do município, o que representa 58% da população em área urbana. (veja no mapa abaixo).
No território de aproximadamente 110 mil quilômetros quadrados — área equivalente ao território de Cuba e maior que diversos estados brasileiros — convivem povos de 32 etnias indígenas, segundo o censo de 2010, muitas delas desconhecidas no restante do país, como os Koripako, Baniwa, Baré, Wanano, Piratapuya, Tukano e Dãw.
No gráfico abaixo, no entanto, só é possível visualizar 23 etnias porque o IBGE não divulgou o número de indígenas das outras nove etnias, para preservação de sua identidade, conforme critérios demográficos. A Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn) trabalha com o número de 23 etnias.
A maioria indígena no município, porém, nem sempre se traduz em valorização da cultura ancestral. Em contraste à diversidade cultural e étnica, há relatos frequentes de indígenas sendo tratados de forma discriminatória.
Penha Yanomami, no entanto, diz que nunca sofreu preconceito: “Não sei nem o que é isso. Não sei se alguém fez comigo. Eu sou eu, sou Yanomami”. Apesar de não identificar o preconceito sofrido por ela mesma, Penha relata com tristeza o tratamento inadequado muitas vezes recebido por seu povo, como o atendimento precário aos indígenas no comércio local e em órgãos públicos.
Franci Baniwa, antropóloga e doutoranda da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), explica que a vivência dos indígenas no meio urbano em São Gabriel da Cachoeira envolve a estrutura hierárquica das próprias etnias, o processo histórico que levou muitas vezes à ruptura violenta dos indígenas com sua cultura e a convivência com pessoas vindas de fora que não conhecem bem a região. Por outro lado, a antropóloga indígena aponta que, a partir da década de 1980, sobretudo com a promulgação da nova Constituição Federal em 1988, inicia-se um movimento de valorização da cultura local, o que reforça a autoestima e leva à autodeclaração de um número maior de indígenas.
“Se você sai de uma comunidade, carrega uma vida toda, nossa roça, farinha [de mandioca], peixe, caça. Você carrega a sua vivência e [a] compartilha em um mundo que não é o seu. Eu sempre digo: ter o seu mundo e ter o conhecimento ocidental significa que você tem dois mundos em sua mão para crescer junto”, diz.
‘Índígena para sempre’
Adelina Sampaio Desana, de 28 anos, nasceu na Terra Indígena Balaio, nos arredores da área urbana de São Gabriel da Cachoeira, cidade para onde se mudou em 2008 para estudar. Ela ingressou no movimento indígena, que incentiva a valorização dos costumes tradicionais, e coordenou o Departamento de Adolescentes e Jovens (Dajirn) da Foirn até dezembro de 2020.
“O impacto cultural foi bastante grande para mim. Senti esse preconceito muito grande na escola: ‘Olha aquela índia, não sabe falar’. Às vezes, queria falar direito e acabava errando mais. São Gabriel [da Cachoeira] é a cidade mais indígena [do Brasil], mas é preconceituosa”, diz. Ainda assim, Adelina Desana consegue conciliar a vida na cidade com alguns de seus costumes indígenas, sobretudo sua alimentação, que inclui itens da vida na aldeia, como peixe, farinha de mandioca, açaí e frutas.
Outro indígena que busca conciliação entre mundos diferentes é o estudante Valdeson Miranda Delgado Baré, de 22 anos. Nascido na Ilha de Cururu, no Médio Rio Negro, em São Gabriel da Cachoeira, ele estuda na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e reside em moradia estudantil no distrito de Barão Geraldo, em Campinas, São Paulo. Devido à pandemia, Valdeson retornou temporariamente a São Gabriel da Cachoeira.
Ele refuta a ideia recorrente de que alguém deixe de ser indígena por viver na cidade. “Isso a gente às vezes discute na universidade, em Campinas. Porque já sei mexer no computador, tenho notebook, tablet, óculos, relógio, dizem que não sou mais indígena. Isso não existe. A gente é indígena para sempre”, afirma.
Quando viaja para São Paulo, Valdeson Baré leva farinha de mandioca na mala e já chegou a pegar formigas tanajuras na moradia estudantil para fritar e comer. “Na moradia (estudantil) tem muitas formigas que voam. Eu e meus colegas, a gente pega com a mão. Tem que pegar na cabeça da formiga para não ser picado e colocar na panelinha”, relata o jovem, que fala português e Nheengatu, também conhecida como língua geral na região de São Gabriel da Cachoeira.
O censo de 2010 — o primeiro a mapear a presença indígena em todo o Brasil — revelou a diversidade indígena do país: 305 grupos étnicos e 274 línguas. A antropóloga Franci Baniwa destaca o sistema de ensino como primordial para ampliar o conhecimento sobre a cultura indígena e sua valorização. “Deveria estar presente no ensino a história dos povos indígenas: quantos povos, línguas, onde vivem, quais os territórios indígenas”, diz.
Nascida em Assunção do Içana, comunidade indígena de São Gabriel da Cachoeira, mora no Rio de Janeiro, onde cursa o doutorado. “Há um profundo desconhecimento da região de São Gabriel [da Cachoeira]. Ainda perguntam se andamos sem roupa. Não é porque sou indígena que durmo em cima da bananeira ou uso roupas de folha de bananeira. Usamos roupa e temos trajes tradicionais para cerimônias. Quando estou na aldeia, vou na roça com minha mãe, arranco, carrego e ralo mandioca, pesco. Também escrevo quando estou lá”, conta Franci Baniwa, que fala Nheengatu e português.
Ela cobra melhoria de estrutura nas aldeias e para quem precisa sair de suas comunidades. “Muitos indígenas continuam deixando suas comunidades para estudar e trabalhar, mas nem sempre encontram as condições adequadas. Acabam expostos a problemas como o alcoolismo e gravidez precoce”, reflete.
Em 2017, o governo federal assinou o compromisso de construir 50 escolas indígenas para o ensino fundamental e médio na região do Rio Negro. As etapas do projeto arquitetônico e pedagógico, que prevê 16 escolas em São Gabriel da Cachoeira, já foram concluídas, mas as obras ainda não começaram. Depois de pressão do Ministério Público Federal, o compromisso foi reafirmado pelo governo em abril deste ano, que prometeu a liberação de R$40 milhões para o projeto, mas informou que as obras só serão iniciadas quando as aldeias forem reabertas, após o fim da pandemia.
Uma síntese do Brasil indígena
Uma das principais crenças indígenas da região é que uma grande cobra canoa subiu as águas do Rio Negro para criar a humanidade, com as etnias se estabelecendo em determinados pontos considerados sagrados: pedras, cachoeiras, encontro de rios, entre outros.
A riqueza cultural e histórica de São Gabriel da Cachoeira é traduzida por sua grande diversidade étnica, mas o desconhecimento da cultura local acaba provocando preconceito por parte de imigrantes de outras regiões do país, incluindo militares, funcionários públicos e seus familiares, explica Franci Baniwa. “Acho que o preconceito maior é de pessoas que vêm de fora. Muitos não entendem a diversidade, a paisagem cheia de lugares sagrados com uma história por trás”.
O processo histórico da região é bastante complexo e envolve uma série de episódios violentos que impulsionaram movimentos migratórios dos indígenas. Os primeiros contatos com não-indígenas ocorreram no século XVII, principalmente com os portugueses à procura de escravos, conforme consta no Mapa-Livro “Povos Indígenas do Alto e Médio Rio Negro”, editado pelo Instituto Socioambiental (ISA) e pela Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn). Em 1760, um destacamento militar se estabelece na região e constrói um forte, dando início ao povoado que, posteriormente, recebeu o nome de São Gabriel da Cachoeira.
A história da região é marcada por ciclos econômicos e movimentos migratórios que exploram e impactam o modo de vida dos indígenas, como o chamado ciclo da borracha, que durou até meados do século XX, explorando mão de obra indígena e ribeirinha. No início do século passado, religiosos católicos também reforçaram a presença colonizadora na região. “Proibiram o uso da língua [local], dos rituais, foi um período de grande perda cultural”, diz Franci Baniwa.
São Cabriel da Cachoeira convive com uma série de problemas sociais, como a falta de saneamento básico. De acordo com o IBGE, apenas 4% dos indígenas nas áreas urbanas do município têm acesso a esgotamento sanitário adequado (confira os detalhes no mapa que acompanha esta reportagem). O garimpo ilegal nas terras indígenas também exerce forte pressão no município e a cidade registra também altos índices de doenças como dengue e malária e altas taxas de suicídio.
Mesmo diante de tantos problemas, a diversidade cultural resiste e se destaca no município. Andando pelo centro comercial da cidade, é comum encontrar famílias Yanomami, com a mãe carregando as crianças em tipoias de tecido, como é o costume vindo das aldeias. Além disso, faz parte do cotidiano escutar pessoas falando línguas indígenas nas ruas. O município é único do país com quatro línguas oficiais, além do português: Baniwa, Tukano, Nheengatu e Yanomami.
Anualmente, a Unicamp promove um vestibular indígena, levando as provas até o município de São Gabriel da Cachoeira, onde mantém uma extensão pedagógica que forma profissionais de saúde indígenas. A sede do Instituto Federal do Amazonas (IFAM) em São Gabriel da Cachoeira realiza a seleção com provas nos quatro idiomas indígenas oficiais. A pandemia, porém, alterou a forma de aplicação desses processos seletivos.
A Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) também mantém extensão pedagógica na região para formar educadores indígenas. A universidade atende a uma demanda de escolas por educadores e por material escolar que levem em conta as culturas indígenas.
A chegada a São Gabriel da Cachoeira já indica que o viajante terá uma experiência peculiar. O acesso ao município só é possível por avião ou embarcação fluvial. Saindo de Manaus, a capital do estado, por via aérea, são cerca de duas horas de voo até o município. Em dias ensolarados, durante todo o trajeto avista-se o tapete verde da floresta amazônica entrecortado por rios. Próximo à chegada, tem-se a sensação de que o chão começa a se levantar, com a vista de serras e morros. Compondo a paisagem há também as praias e corredeiras do Rio Negro.
A beleza da paisagem contrasta com uma infraestrutura precária: há diversas construções inacabadas, calçadas descuidadas, lixo mal acondicionado e esgoto a céu aberto. O município é cercado por aldeias, algumas de difícil acesso, e outras localizadas bastante próximas ao perímetro urbano.
Chegando-se à principal orla da cidade, há quiosques e casas de forró, e a praia de areia branca do Rio Negro. Olhando à frente, na outra margem do rio, avista-se a floresta e uma das comunidades mais próximas, chamada Waruá, do povo Dãw. A entrada no território indígena é restrita e depende de autorização da Fundação Nacional do Índio (Funai). A praia recebe frequentemente indígenas em suas voadeiras — pequenos barcos a motor — transportando suas famílias e também mercadorias para vender.
Para quem não é da região, o cotidiano da cidade pode parecer surpreendente. Convivem lado a lado a beleza natural às margens do Rio Negro, a estrutura precária, os moradores indígenas, as línguas tradicionais, e jovens circulando em carros com caixas de som com música alta, além da presença de caminhões do exército nas ruas. A presença da corporação é forte na região devido às fronteiras do município com os países vizinhos Colômbia e Venezuela.
Uma visita ao mercado municipal também pode proporcionar uma experiência ímpar. É possível comprar um saco de formigas comestíveis, muitas vezes ainda vivas, expostas para a venda em bacias ou baldes. Pratos típicos como o tradicional molho de tucupi, extraído de um tipo de mandioca conhecida como brava, ou o beiju, preparado com mandioca de mesa, e um caldo de peixe com tucupi e pimenta chamado de quinhampira também são servidos no mercado diariamente.
Outra atração de São Gabriel da Cachoeira é a Feira dos Tuyuka. Realizada aos domingos, a feira evidencia a diversidade, riqueza cultural e contrastes da cidade. É possível assistir a uma apresentação da dança tradicional, o cariçu, e tomar a bebida indígena fermentada, o caxiri, e comer os pratos tradicionais, como a quinhampira e carne de caça. Esses costumes tradicionais coexistem com outras culturas, ao som de ritmos regionais e até mesmo colombianos.
Para o sociólogo José Carlos Matos Pereira, pós-doutor em antropologia social e pesquisador do Programa de Memória dos Movimentos Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), é central entender que não há a oposição de vivências para os indígenas.
“Na cabeça do indígena, não tem oposição entre aldeia e cidade. Não tem oposição entre rural e urbano. O indígena está vivendo, e ele vive a sua vida em condições que a vida oferece. Tem alguns lugares que vão oferecer uma condição de vida melhor pra ele se agrupar, para ele se reproduzir, para ele plantar, para ele praticar seus rituais, para ele pescar. Em outros locais, as condições são bem adversas,” diz Pereira.
Um dos indígenas à frente da Associação Indígena da Etnia Tuyuka – Moradores de São Gabriel da Cachoeira é Cenaide Pastor Marques Lima Tuyuka, 43, que se mudou para São Gabriel da Cachoeira na adolescência para estudar. Pastor Tuyuka, como é conhecido pelos locais, fala português, espanhol, Tuyuka, Tukano e Makuna.
Nascido na Vila São João Bosco, no Rio Tiquié, na fronteira de São Gabriel da Cachoeira com a Colômbia, ele diz que atua como espécie de tradutor entre dois mundos, facilitando o acesso de seus parentes ao conhecimento de como viver na cidade e orientando-os para obter documentos.
Ao se dividir entre organizar a feira e conversar com a reportagem da Mongabay, Pastor Tuyuka reflete sobre a origem dos povos. “Somos indígenas originários. Como vamos ser não-indígenas? A pessoa nasce indígena e vai continuar a ser indígena”.
Reportagem adicional da estudante indígena Daniela Villegas Tukano, pertencente ao povo Tukano, e aluna do curso de estudos literários da Unicamp; Karla Mendes e Rafael Dupim. O fotógrafo desta reportagem, Paulo Desana, também é indígena, do povo Desana.
Esta reportagem faz parte do especial Indígenas nas Cidades do Brasil e recebeu financiamento do programade jornalismo de dados e direitos fundiários do Pulitzer Center on Crisis Reporting.
Pesquisa e análise de dados: Yuli Santana, Rafael Dupim e Ambiental Media.
Imagem do banner: Cenaide Pastor Marques Lima Tuyuka é um dos indígenas à frente da Associação Indígena da Etnia Tuyuka – Moradores de São Gabriel da Cachoeira. Ele fala português, espanhol, Tuyuka, Tukano e Makuna e diz que atua como espécie de tradutor entre dois mundos, facilitando o acesso de seus parentes ao conhecimento de como viver na cidade e orientando-os para obter documentos. “Como vamos ser não-indígenas? A pessoa nasce indígena e vai continuar a ser indígena”. Foto: Paulo Desana para a Mongabay.