Em março de 2020, com a chegada da pandemia de coronavírus, os Uru-eu-wau-wau de Rondônia fecharam seu território a visitantes; a terra demarcada já vinha sofrendo há anos com a invasão de garimpeiros, madeireiros ilegais e grileiros.
Durante o isolamento, os indígenas criaram a Equipe de Autodocumentação Indígena Uru-eu-wau-wau para contar sua própria história sobre como sobreviveram à pandemia por mais de um ano sem nenhum caso grave dentro de seu território.
Quando os Uru-eu-wau-wau foram contatados pela primeira vez em 1981, doença e morte vieram logo em seguida. Com poucos anticorpos para os patógenos de fora, doenças infecciosas como a tuberculose e o sarampo ceifaram muitas vidas. De uma comunidade indígena vibrante com milhares de integrantes no início dos anos 1900, mais da metade morreu.
Quando a pandemia de coronavírus chegou ao Brasil em março de 2020, os acontecimentos dos anos 1980 pairaram sobre a memória coletiva da comunidade. “Nós nos lembramos do que aconteceu com o primeiro contato. Não podemos deixar que aconteça novamente”, diz Tari, ancião Uru-eu-wau-wau que se lembra da doença e da violência que marcaram aquela época.
Os habitantes da Terra Indígena Uru-eu-wau-wau, localizada em Rondônia, então, tomaram a decisão de isolar totalmente suas sete aldeias do resto do mundo: nada de visitantes, nada de contato com o mundo externo. Enquanto outros povos indígenas da Amazônia tiveram grandes perdas por causa da covid-19, os Uru-eu-wau-wau conseguiram conter a doença, com apenas casos leves.
Mas este não é o único desafio que eles enfrentam. Além da covid-19, os Uru-eu-wau-wau defendem ativamente seu território contra as investidas de grileiros, madeireiros ilegais e garimpeiros que buscam extrair recursos do território protegido por lei.
A pandemia também trouxe outro novo desafio: como continuar contando sua história em tempo real apesar da quarentena autoimposta contra a covid-19, que impediu a entrada de jornalistas de fora. Sem acesso à mídia, os Uru-eu-wau-wau temiam não conseguir manter a atenção internacional necessária para apoiar seus esforços de defesa de suas terras contra invasores.
Mas isso mudou rapidamente quando Bitate Uru-eu-wau-wau, com 20 anos de idade, criou a Equipe de Autodocumentação Indígena Uru-eu-wau-wau, que adquiriu câmeras, drones e outros equipamentos de mídia que a comunidade passou a usar para filmar a si mesma. O vídeo que acompanha este artigo foi realizado pela equipe, e todo filmado por cinegrafistas de dentro do território indígena.
“A autodocumentação é uma oportunidade para registrarmos nossa própria história, nossa própria realidade”, diz Bitate. “Há muitos jornalistas que querem vir aqui, mas que não entendem nada sobre o nosso modo de vida. Esta é uma grande oportunidade para o povo indígena aprender a fazer filmes para registrar a história do nosso povo.” Depois de séculos de estrangeiros extraindo as histórias indígenas, a pandemia de coronavírus ofereceu uma chance para os Uru-eu-wau-wau assumirem o controle de sua própria narrativa.
Hoje, o povo Uru-eu-wau-wau é guardião de um grande território indígena que se estende por 18.670 quilômetros quadrados de Floresta Amazônica. Eles também são os guardiões de três grupos indígenas diferentes ainda isolados, que vivem dentro da terra demarcada.
Esses grupos indígenas isolados estão entre os mais vulneráveis do Brasil, e desconhecem totalmente a atual pandemia. Acontecimentos recentes na reserva Uru-eu-wau-wau, em que grupos isolados começaram a sair da floresta, sugerem que a presença e as pressões de madeireiros ilegais e garimpeiros estão aumentado dentro do território. Observadores apontam que as políticas agressivas antiambientais do presidente Jair Bolsonaro e sua retórica anti-indígena são um incentivo para essas invasões por parte dos envolvidos nos setores extrativistas da Amazônia.
Além do aumento da extração ilegal de madeira, da mineração e do roubo de terras – e a violência que os acompanham –, as comunidades indígenas na Amazônia agora enfrentam uma severa falta de infraestrutura de saúde pública. O Sesai, órgão que coordena a saúde indígena, vem passando por um processo de descentralização sob o governo de Bolsonaro, que, ao assumir a presidência em 2019, forçou a saída de 8.300 médicos cubanos que atendiam principalmente as áreas mais remotas do país como parte do programa Mais Médicos. A administração também transferiu a responsabilidade pela saúde indígena do governo federal para os governos estaduais já sobrecarregados. Além disso, pesquisas recentes apontam para uma grande subnotificação de mortes indígenas devido à covid-19 na Amazônia.
Talvez ninguém entenda essas ameaças mais visceralmente do que Bitate Uru-eu-wau-wau. Bitate é o jovem líder dos Uru-eu-wau-wau, mas ele também é descendente de dois grupos étnicos diferentes: os Uru-eu-wau-wau, por parte de pai, e os Juma, por parte de mãe. Embora os Uru-eu-wau-wau tenham sobrevivido a imensas perdas durante o período do primeiro contato com o estado brasileiro, as perdas foram ainda maiores para os Juma.
Depois de uma série de violentos massacres, o mais recente em 1964, quando seringueiros assassinaram dezenas de homens Juma, a população Juma foi reduzida a apenas quatro indivíduos. Aruka Juma era avô de Bitate, e o último remanescente inteiramente Juma no planeta. A covid-19 lhe tirou a vida em 20 de fevereiro de 2021. A perda afetou Bitate profundamente.
Além de carregar a pesada responsabilidade de proteger a comunidade e a cultura Uru-eu-wau-wau de seu pai, Bitate experienciou a perda devastadora de sua família de linhagem materna. Foi com isso em mente que ele tomou a decisão em março de 2020 de isolar a comunidade Uru-eu-wau-wau do resto do Brasil. Sua comunidade estava bem preparada e com a autoconfiança necessária. Durante séculos eles viveram da riqueza da floresta tropical, pescando nos muitos rios que atravessam seu território, coletando frutos e colhendo outras coisas necessárias da floresta.
Depois de um ano de isolamento, os Uru-eu-wau-wau receberam os profissionais de saúde dentro de seu território para administrar as primeiras vacinas em março de 2021. A chegada deles não foi um feito qualquer: os agentes de saúde que carregavam a vacina tiveram de viajar com escolta armada fornecida pela polícia local, atravessando várias áreas de invasão ativa e zonas perigosas de conflito dentro do território.
Durante o pico da pandemia no ano passado, grileiros aproveitaram a oportunidade para fortificar suas bases ao longo dos limites do território Uru-eu-wau-wau. Mas por fim, a missão foi bem-sucedida. Todos os integrantes da população Uru-eu-wau-wau foram vacinados, e nenhum membro do grupo foi infectado com gravidade.
Imagem do banner: Integrantes da comunidade Uru-eu-wau-wau nos limites de seu território, próximos a um dos muitos portões que foram trancados devido à pandemia. Foto: Equipe de Autodocumentação Uru-eu-wau-wau.
Nota do editor: Alejandro Smith, que assina esta matéria da Mongabay, é um pseudônimo e foi usado para proteger a Equipe de Autodocumentação Uru-eu-wau-wau e seus membros de possíveis represálias.