Ao contrário da concepção de muitos brasileiros, que apenas reconhecem a identidade indígena dos povos que vivem na Floresta Amazônica, mais de um terço deles, ou cerca de 315 mil indivíduos, vivem em áreas urbanas.
Durante mais de um ano, mergulhamos nos dados do censo do IBGE e em outras bases de dados para produzir mapas e infográficos inéditos que mostram não só onde moram os indígenas em seis cidades do país, mas também seu acesso à educação, esgoto e outros serviços, além de sua diversidade étnica.
O acesso ao ensino superior é um marco: 81 mil indígenas de uma população de cerca de 900 mil estavam cursando o ensino superior em 2019, o que representa uma proporção muito maior do que a média brasileira no mesmo ano — 9% contra 5,8%, respectivamente.
Este projeto recebeu financiamento do programa de jornalismo de dados e direitos fundiários do Pulitzer Center on Crisis Reporting.
RIO DE JANEIRO – Durante uma apresentação para a celebração da Semana do Índio na escola de seu filho, no Rio de Janeiro, a primeira coisa que o sociólogo José Carlos Matos Pereira fez foi mostrar uma foto de várias pessoas e perguntar às crianças: “O que vocês acham, são indígenas?”. As crianças responderam imediatamente em uníssono: “Nãããão”. Ele perguntou por quê, e elas responderam: “Não estão pelados, não estão com arco e flecha e não estão na floresta, então não são indígenas”.
O episódio, que teve como referência uma foto de indígenas do município de Altamira, no estado do Pará, é apenas um relato da realidade enfrentada pelos indígenas que vivem em áreas urbanas de todo o Brasil. “Isso marca uma percepção desde criança de como se pensa o indígena. Se pensa ele fora da cidade e em condições, vamos dizer, ‘naturais,’”, diz Pereira, pesquisador do Programa de Memória dos Movimentos Sociais, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).“O indígena caça, pesca, vive na floresta, tem seu modo de vida, seus rituais. Mas também ele vem para a cidade.”
De fato, os povos indígenas estão espalhados por todo o Brasil e não apenas na Floresta Amazônica e em áreas rurais remotas. Mais de um terço da população indígena do Brasil, ou 315 mil indivíduos, vive em áreas urbanas, de acordo com o último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), realizado no ano de 2010.
Mas enquanto nas áreas rurais e áreas remotas da Amazônia os povos indígenas são ameaçados por invasões de terras, mineração e uma ampla gama de projetos de infraestrutura, nas cidades eles enfrentam constantemente invisibilização e preconceito.
Morando no Rio de Janeiro há 20 anos, Michael Oliveira Baré Tikuna relata inúmeras situações em que enfrentou preconceito por ser indígena, desde a época em que morava nas ruas da cidade, vendendo seu artesanato, até a época em que entrou para a universidade. Baré foi o primeiro indígena a ingressar na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) pelo sistema de cotas.
“Um rapaz negro falou para mim que meu lugar não era ali na universidade, que meu lugar era lá dentro da floresta”, disse Baré, shiatsu terapeuta e professor autônomo de história indígena. “Esse foi a coisa que mais me chocou porque ele estava reproduzindo em mim o que os brancos fazem com ele, que é para mandá-lo de volta para a África.”
Nascido em Manaus, o nome indígena de Baré na língua Nheengatu — derivada do Tupi-Guarani — é Anaje Sucurijú Mangará Ibytyra, que significa Gavião Sucurijú Coração de Montanha. Seu nome em sua certidão de nascimento é Michael Júnior Queiroz de Oliveira, mas ele adotou as etnias indígenas Baré e Tikuna de seus pais após resgatar suas raízes indígenas.
O povo Tikuna é a etnia indígena mais numerosa da Amazônia brasileira. A primeira referência aos Tikuna remete a meados do século 17, na região do rio Solimões, no estado do Amazonas. Com uma história marcada pela entrada violenta de seringueiros, pescadores e madeireiros, os Tikuna só alcançaram o reconhecimento oficial de grande parte de suas terras na década de 1990. Eles falam a língua Tikuna.
Os indígenas Baré vivem principalmente ao longo do Rio Xié e do alto Rio Negro, para onde a maioria migrou compulsoriamente devido à violência e exploração de seu trabalho extrativista por parte de não-indígenas. O primeiro contato com não-indígenas ocorreu no início do século XVIII. Originais da família linguística Arawak, os Tikuna hoje falam o Nheengatu, que foi disseminado pelos Carmelitas no período colonial.
“Na universidade nós somos invisibilizados, nos movimentos sociais nós somos invisibilizados, em tudo nós somos invisibilizados. Mas eu percebi que isso é uma construção histórica”, diz Baré, que “eu luto para desconstruir, que eu acabei chamando de uma noção que se chama ‘o discurso ideológico do colonizador escravista’, que é esse discurso que introjetou no inconsciente coletivo da nação que o brasileiro é degenerado, que a miscigenação não é boa, que só fez ruim, que fez um povo ruim”.
A historiadora Ana Paula da Silva, doutora em memória social, destaca a importância de um movimento revisionista da história indígena que diversos pesquisadores realizam hoje, dada a falta de um lugar de destaque para os povos originários na história brasileira.
“Eles são parte da nossa história, da nossa cultura e foram fundamentais no processo de colonização e isso é algo que deve ser ensinado nas escolas, divulgado na mídia e, com certeza, a partir do momento que a sociedade brasileira entender que os indígenas são parte do Brasil, da nossa história, com certeza muitos preconceitos, muita discriminação com relação a essa população, será desconstruída”, diz da Silva, pesquisadora do Programa de Estudos dos Povos Indígenas (Pro Índio) da UERJ.
A presença intrínseca dos indígenas na cultura brasileira, do vocabulário aos hábitos, também foi destacada pela historiadora, que faz parte de uma rede de pesquisadores universitários voltada para a promoção do conhecimento indígena nas escolas de todo o Brasil por meio da iniciativa Saberes Indígenas na Escola, promovida pelo Ministério da Educação desde 2013.
A diáspora de indígenas para as cidades, diz a historiadora, é consequência de seu deslocamento, no passado, durante o período colonial, dos locais onde as cidades foram construídas. Muitos deles também vêm para áreas urbanas em busca de melhores condições de vida, acrescenta.
Histórias ocultas, como a de Baré, serão contadas em uma série de reportagens multimídia guiada por dados que a Mongabay começa a publicar hoje, com foco nos seis municípios brasileiros com o maior número absoluto de indígenas vivendo em áreas urbanas, o que mostra que os indígenas estão muito mais presentes nas áreas urbanas do país do que se imagina.
Embora alguns especialistas argumentem que a melhor forma de destacar a presença indígena nas cidades brasileiras é pela proporção da população em cada cidade, a Mongabay optou por focar em números absolutos. Isso porque os números absolutos podem ser uma surpresa para muitos leitores, pois entre as seis cidades com maior número de indígenas estão algumas das metrópoles mais conhecidas do país, onde a presença indígena é ainda mais invisível.
De acordo com o censo de 2010, o último divulgado pelo IBGE, os municípios com maior número de indígenas residentes em áreas urbanas são, em ordem decrescente: São Paulo (SP), São Gabriel da Cachoeira (AM), Salvador (BA), Rio de Janeiro (RJ), Boa Vista (RR) e Brasília (DF). Apenas São Gabriel da Cachoeira e Boa Vista estão localizadas na Amazônia. Para Brasília, o IBGE considera os dados do Distrito Federal.
Durante mais de um ano, mergulhamos no censo de 2010 (novos dados do IBGE só estarão disponíveis em 2022) e bancos de dados complementares para produzir mapas e infográficos inéditos que mostram não só onde moram os residentes indígenas nessas seis cidades e em áreas urbanas no país em geral, mas também como vivem: seu acesso à educação, esgoto e outros serviços, além de sua diversidade étnica. A Mongabay publicará uma reportagem para cada uma das seis cidades, começando pelas metrópoles, seguidas pelas cidades amazônicas.
O projeto, que recebeu financiamento do Pulitzer Center on Crisis Reporting, terá como última reportagem uma análise aprofundada da presença indígena nas áreas urbanas do Brasil como um todo, incluindo as cidades com maior porcentagem de residentes indígenas e outros municípios que não lideram os rankings, mas são extremamente relevantes para a representação do modo de vida indígena nas áreas urbanas.
Pereira, que tem pós-doutorado em antropologia social, destaca a importância do censo de 2010, pois é o primeiro a reconhecer, por meio de um processo de autodeclaração, a presença indígena em cômputos populacionais em terras indígenas, áreas rurais e urbanas, bem como suas 300 etnias que falam vários idiomas.
“Durante muito tempo, os indígenas foram apagados da contagem populacional. Só vão aparecer nos anos noventa através do quesito cor e raça. E isso se repete no início dos anos dois mil. Ou seja, só em 2010 nós vamos ter o primeiro Censo Indígena do Brasil”, diz Pereira. “Então é um dado importante que não dá mais pra negar: a presença indígena em cidades brasileiras”.
Segundo ele, o primeiro censo do país teve início na época da colonização, com o objetivo de contabilizar a população para fins de tributação e recrutamento militar. “Então, todas as diversidades de língua, de povos, de costumes, eles foram apagados porque não interessava para a metrópole essa informação. Era padronizar e reordenar os dados segundo os interesses do poder metropolitano”.
Os censos realizados pelo governo brasileiro datam do final do século XIX, mas excluíam em grande parte a população indígena, observa Pereira, pois apenas aqueles que foram evangelizados por missionários aparecem nas estatísticas, por meio das categorias raciais caboclo e pardo, ambas referentes a mestiços.
Educação como arma
Um dos destaques da série de reportagens é como o acesso ao ensino superior tem ajudado os indígenas a lutar contra o preconceito e melhorado suas condições de vida nas áreas urbanas. Entre 2010 e 2019, o número de indígenas nas universidades por meio do sistema de cotas, lançado em 2012, saltou de 10 mil para cerca de 81 mil, segundo o censo do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep).
Considerando que 81 mil indígenas de uma população de 900 mil estavam cursando o ensino superior em 2019, isso representa um índice de educação superior muito maior do que a média da população brasileira em geral (9% contra 5,8%, respectivamente), afirma o antropólogo João Pacheco de Oliveira, professor titular e curador das coleções etnográficas do Museu Nacional.
Oliveira destaca o enorme potencial dos povos indígenas nas universidades. “Desse grupo é que vão sair os cérebros do movimento: os advogados, os antropólogos, os médicos, e também os professores”, comenta. “O projeto dos índios em relação a ser cidadão brasileiro não é um projeto de se tornar simplesmente um repositório do passado. É de ter e conquistar cidadania, de serem pessoas proeminentes, de exercerem a ciência, de exercerem cargos públicos”.
“Os que vão para a cidade não viram brancos”, enfatiza. “Eles continuam a ser indígenas e vão ser importantíssimos para aqueles que estão dentro das aldeias e essa junção entre uma coisa e outra é essencial para o projeto indígena”.
Oliveira ressalta que grande parte do público internacional ficaria surpreso “ao ver a cara real do índio brasileiro”, que não condiz com a imagem estereotipada de uma pessoa vestida com indumentárias tradicionais.
Para Baré, entrar na UERJ pelo sistema de cotas foi a maior conquista de sua vida. “Eu sou o primeiro da minha família que entrou para a universidade, que conseguiu essa façanha. E eu fiquei muito feliz de dar orgulho, de poder dar orgulho para a minha mãe”.
A educação, reflete Baré, ajudou-o a superar o preconceito que ele próprio sentia contra sua identidade indígena, citando o conceito de autofobia do filósofo e historiador marxista italiano Domenico Losurdo: “A autofobia é introjetar o pensamento do seu algoz, é você ter ojeriza de si, é você não se aceitar … E eu percebi que isso acontece com todos os indígenas da América do Norte até a América do Sul, por causa dessa autofobia [por causa do processo de colonização] de não se aceitar, de querer ser o outro”.
Mas, a partir do momento em que começou a reunir conhecimentos acadêmicos sobre democracia racial e cultura ancestral, afirma Baré, citando os antropólogos brasileiros Darcy Ribeiro e Berta Ribeiro, ele percebeu que a educação é a única “arma” eficaz para acabar com o preconceito.
“Eu percebi que a educação, além de ser uma arma, um escudo para me defender dos preconceitos e do racismo, ela também é … a única arma que a gente pode usar, nós indígenas, que não vai gerar reação genocida [dos não-indígenas]”.
“Porque foi colocado no pensamento do povo brasileiro que se você foi colocado na cidade, você não é mais índio. Se você põe um short, você põe um relógio, usa celular, põe um tênis, você não é mais índio”, diz Baré.
Ele afirma que seu maior sonho é libertar o povo brasileiro do discurso ideológico colonizador de escravista, que mantém os índios subjugados. “Essa é minha utopia principal, é o meu sonho: no momento em que os brasileiros, ou invés de falar ‘ah, são os índios’”, não, eles falem: ‘são os nossos ancestrais’”.
Este projeto recebeu financiamento do programa de jornalismo de dados e direitos fundiários do Pulitzer Center on Crisis Reporting.
Infográficos: Ambiental Media/Laura Kurtzberg
Pesquisa e análise de dados: Yuli Santana, Rafael Dupim and Ambiental Media
Imagem do banner: Silhueta da líder indígena Tereza Arapium no calçadão da praia de Copacabana, no Rio de Janeiro, em 26 de novembro de 2020. Imagem: Mongabay
Karla Mendes é editora e repórter investigativa da Mongabay no Brasil. Twitter: @karlamendes