Em 30 de abril, o governo federal encerra oficialmente a operação Verde Brasil, ação militar de fiscalização iniciada em agosto de 2019 para combater o pico de queimadas ilegais na Amazônia.
Desde então, os militares vêm ganhando força cada vez maior nas políticas ambientais aplicadas à Amazônia — inclusive sobrepondo-se a órgãos como Ibama e ICMBio no trabalho de fiscalização e ocupando cargos-chave nessas agências.
Especialistas criticam o gasto elevado da operação (cinco vezes maior que o orçamento do Ibama), empregado sobretudo na fiscalização de áreas já demarcadas ou registradas — ignorando as terras em disputa, mais suscetíveis à exploração ilegal.
Enquanto isso, o governo federal põe em prática seu plano nacional de desenvolvimento para a Amazônia para esta década, focando na expansão das cadeias produtivas e da atividade industrial. “A modernidade e o progresso estão na ordem do dia desde o governo imperial”, prega o plano.
O protagonismo dos militares na gestão da Amazônia se destaca desde 2019. Eles foram acionados pelo presidente Jair Bolsonaro em agosto daquele ano, após o “Dia do Fogo”, rompante de queimadas ilegais que balançou as relações do mundo com o Brasil. O presidente lhes concedeu força máxima, incluindo até a subordinação de agências ambientais federais, como Ibama e ICMBio. Não faltaram recursos nem pessoal para a chamada operação Verde Brasil. Sem tanto alarde, porém, os militares estão saindo de cena.
No último dia 11 de fevereiro, o vice-presidente Hamilton Mourão anunciou o encerramento da fiscalização por eles conduzida na maior floresta tropical do mundo. O fim da operação ocorre em 30 de abril de 2021, prorrogada por três meses após o término previsto.
Daqui em diante, o foco das ações será mais restrito, segundo os responsáveis. “Levantamos que 70% do desmatamento, ou dos crimes ambientais, ocorrem em 11 municípios que elencamos como área prioritária”, disse o vice-presidente Mourão.
Isso não é novidade. Uma lista com estas áreas de proteção prioritárias consta num processo do Ministério Público Federal (MPF), protocolado em abril de 2020 e consultado pela Mongabay. Ou seja, o MPF divulgou a informação mencionada por Hamilton Mourão um mês antes de uma das renovações da operação militar, em maio do ano passado.
Na lista constam áreas como São Félix do Xingu, no Pará, campeã em emissão de gases de efeito estufa no país graças ao desmatamento, municípios no sul do Amazonas e em outros pontos próximos, no Mato Grosso e em Rondônia.
Apresentar dados conhecidos – e aparentemente ignorados – é só um dos argumentos por trás das críticas sobre a operação Verde Brasil. O desmatamento segue elevado, como aponta a ONG Greenpeace, e prospera um milionário mercado clandestino de terras públicas, com compra e venda dentro de áreas indígenas. Enquanto isso, a fiscalização retorna às agências ambientais, fragilizadas sob a gestão Bolsonaro, e militares anunciam planos econômicos para a Amazônia. Como fica, afinal, a proteção à floresta e seus povos após quase dois anos sob a tutela verde-oliva?
Conflitos seguem intensos, até com investigação sobre militares
Não é segredo que a Amazônia está à mercê daqueles que a devastam. Um povo indígena já foi extinto graças à covid-19 – os Juma, em Rondônia – e o Ministério Público investiga o uso de um avião militar para levar garimpeiros a reuniões no Planalto em novembro de 2020.
Para Marcela Vecchione, do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos na Universidade Federal do Pará (UFPA), a operação Verde Brasil foi um fracasso do ponto de vista socioambiental. “Os conflitos explodem quando se mantém um estado de exceção permanente, como vimos nas recentes operações na Amazônia”, diz.
A professora da UFPA ressalta que, desde o início, a fiscalização conduzida pelo Exército privilegiou áreas já demarcadas ou registradas, tanto indígenas quanto de quilombolas e ribeirinhos. Para ela, este é um erro grave em si.
“Quando operações se concentram apenas nas terras ‘oficiais’, as áreas em disputa ficam vulneráveis, ou seja, sob esse ponto de vista a operação foi muito ineficaz”, afirma Vecchione.
Agências ambientais sem dinheiro e militarizadas
A operação Verde Brasil moveu recursos milionários – algo em torno de R$400 milhões, segundo Hamilton Mourão. “Houve comentários de algumas agências dizendo que, se tivessem esse dinheiro, fariam muito melhor. Isso faz parte do debate”, disse o vice-presidente, como relatado pelo portal Poder360.
Mourão referia-se ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Renováveis (Ibama) e ao Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), ambos em penúria fiscal.
“Como comparação, os gastos do Ibama para fiscalizações em todo o país não atingiram sequer R$80 milhões em 2020”, diz Suely Araújo, ex-presidente do Ibama e especialista em políticas públicas na coalizão Observatório do Clima.“O recurso usado na operação foi mal empregado, a meu ver”, afirma.
A coalizão que Araújo integra defende mais repasses aos órgãos ambientais. Segundo o Observatório do Clima, o orçamento hoje disponível para Ibama, ICMBio e ministério do Meio Ambiente é o menor dos últimos 20 anos.
Enquanto faltam recursos, sobram oficiais em postos de comando.
Em novembro de 2020 havia pelo menos 22 militares em funções-chave no Ibama, no ICMBio e também no ministério do Meio Ambiente, provenientes da Aeronáutica, do Exército e da Marinha. Os dados foram compilados pela agência Fiquem Sabendo, especializada na Lei de Acesso à Informação brasileira.
“Fiscais tanto do Ibama quanto do ICMBio têm uma expertise única, sabem quando é mais indicada uma operação do tipo ‘presença’ (mais contundente, com apoio armado) ou se é preferível monitorar via satélite e multar à distância”, diz Suely Araújo.
Para ela, o destacamento de militares acentua a desconfiança interna e aumenta o medo de represálias contra servidores nestas agências.
“Existe uma narrativa de descrédito [sobre as agências], um mito sobre a ‘indústria da multa’: este discurso é o grande responsável pelo desmatamento. O governo precisa parar com essa narrativa, algo que infelizmente não deve ocorrer”, afirma a ex-presidente do Ibama.
Governo quer “ambientalismo de resultado”
“O grande inimigo do meio ambiente é a pobreza”, disse o ministro da Economia, Paulo Guedes, em seu discurso no Fórum Econômico Mundial em Davos, na Suíça, ainda no início de 2020.
O plano do vice-presidente e dos militares para a floresta daqui em diante segue a mesma toada.“Precisamos chegar a um novo modelo de desenvolvimento para a Amazônia”, disse Mourão em fevereiro deste ano, enquanto anunciava o fim das fiscalizações militares na região.
Como presidente do Conselho Nacional da Amazônia Legal (CNAL), Hamilton Mourão tem defendido um “ambientalismo de resultado”, que possa “mapear e expandir as cadeias produtivas, as cadeias de valor, facilitando que haja um adensamento da atividade industrial”.
“Ou seja, eles resgatam uma antiga visão militar de levar o ‘progresso’ à Amazônia, mantendo apenas algumas ilhotas de preservação enquanto avançam sobre os povos da floresta”,diz Marcela Vecchione, da UFPA.
O “ambientalismo de resultado” é um dos objetivos do plano nacional para o controle do desmatamento e recuperação da vegetação nativa entre 2020 e 2023. O documento foi elaborado pelo ministério do Meio Ambiente, alinhado ao discurso do vice-presidente sobre o tema.
Segundo o ministério, “(…) é necessário desenvolver mecanismos econômicos e jurídicos robustos, de modo que forneça incentivos para quem pretende empreender de forma sustentável”.
Mas, para a professora da UFPA, o modelo proposto pelo governo e pelos militares ignora um patrimônio imaterial da floresta: seus povos.
“Tome o exemplo das culturas de açaí em torno de Belém (PA), manejadas do mesmo jeito há séculos: sua riqueza e variedade são frutos dos saberes tradicionais, opostos a qualquer modelo de desenvolvimento proposto hoje”, afirma a professora da UFPA.
A opinião de Suely Araújo, do Observatório do Clima, é similar. “Tanto militares quanto o governo federal destacam a questão da pobreza, mas não dizem que o desenvolvimento que eles propõem é, no fim das contas, em prol de grandes empresas, não dos mais pobres”, diz.
Desenvolvimento militar fortalece elites locais, diz pesquisador
“A modernidade e o progresso estão na ordem do dia desde o governo imperial”: assim começa o plano estratégico 2020-2030 do Conselho Nacional da Amazônia Legal, divulgado em novembro passado. Nele, o conselho exibe suas diretrizes para o desenvolvimento da Amazônia.
O documento, consultado pela Mongabay, mostra o receio diante da influência chinesa e um desejo de “fomentar o ambiente de negócios” e de “integrar a infraestrutura regional”. Para tal, o conselho avalia como necessária a “segurança jurídica” na Amazônia, com um novo “ordenamento territorial” e a “regularização fundiária”.
“Para os militares, a Amazônia deve ser uma espécie de projeção dos grandes centros, espelhada no que é a sociedade urbana, ‘civilizada’. É uma ideologia sem espaço para os povos da floresta, suas culturas e modos de vida”, diz Lício Monteiro, professor de Geografia na Universidade Federal Fluminense (UFF).
Monteiro pesquisa o papel militar na defesa e manutenção das fronteiras nacionais na Amazônia, o que inclui ao menos um projeto de desenvolvimento socioeconômico: o Calha Norte, vigente desde 1985.
Quase desconhecida, a iniciativa foi recentemente agraciada pelo governo federal. No início de janeiro, a gestão Bolsonaro aumentou em mais de 150% o valor máximo para compra de equipamentos e elevou em outros 50% o teto para obras de engenharia via Calha Norte.
Segundo o professor da UFF, esta iniciativa aproximou militares das elites políticas e regionais com o passar dos anos. “Há uma presença relevante de militares na Amazônia, então eles participam da política, recebem homenagens de prefeitos, vereadores, deputados”, afirma.
“Os militares seguem com a mesma visão de 40, 50 anos atrás, de ‘integrar para não entregar’. Então, a eficácia de suas ações ou com quem as desenvolvem não importa muito: o que eles querem é retomar protagonismo e, para isso, precisam esvaziar o trabalho feito pelos civis desde a Constituição de 1988”, diz o professor da UFF.