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Usina de Belo Monte reduziu a vazão do Xingu em 85% – um crime, segundo indígenas

  • Em fevereiro, o Ibama permitiu que a Norte Energia, operadora da mega-hidrelétrica de Belo Monte, reduzisse drasticamente as vazões de água para a Volta Grande do Xingu por pelo menos um ano. Essa decisão reverteu outra, que mantivera níveis muito mais elevados no rio – além da pescaria – conforme exigido por lei.

  • Nesta temporada, a redução da vazão deixará secos 70% da floresta geralmente inundada, causando grande mortalidade e diminuição da reprodução dos peixes, dizem os especialistas. O grupo comunitário Xingu Vivo para Sempre denunciou a decisão como “uma sentença de morte para o Xingu” e exigiu que os presidentes do Ibama e da Norte Energia fossem “processados criminalmente”.

  • A Norte Energia financiou projetos para mitigar a redução da vazão, colhendo frutas e as jogando no rio para os peixes se alimentarem, e soltando peixes criados em cativeiro. Mas os cientistas afirmam que essas abordagens não são científicas e provavelmente serão ineficazes, não conseguindo compensar a perda do pulso de inundação sazonal do rio, do qual os peixes dependem.

  • Moradores afirmam que o governo espalhou desinformação, dizendo aos consumidores brasileiros que o valor de suas contas de luz aumentaria se Belo Monte liberasse mais água para manter o ecossistema do Xingu – o que a Norte Energia é obrigada a fazer. Os níveis de água na Volta Grande ainda não foram restaurados.

Bel Juruna, do povo indígena Juruna (Yudjá), aponta sua câmera para o Rio Xingu. Ela mora ao lado do rio, na aldeia Miratu, na Terra Indígena Paquiçamba, Pará.

O vídeo mostra uma faixa de água de cor clara à altura dos ombros, traçando uma linha na rocha escura exposta. Poucos dias antes, aquela rocha estava quase que totalmente submersa, e o rio corria em um nível muito mais alto, mas sua vazão foi reduzida de forma drástica, repentina, intencional e possivelmente ilegal – ameaçando a pesca no Xingu e as pessoas cujos meios de subsistência e alimentação dependem dela.

Em 8 de fevereiro, a Norte Energia, operadora da mega-hidrelétrica de Belo Monte, recebeu permissão do Ibama para reduzir imediatamente a vazão do rio para menos de 13% do normal e transferir a água para suas turbinas de produção de eletricidade. Essa grande redução da vazão pegou totalmente de surpresa os povos indígenas e ribeirinhos. O vídeo de Bel mostra os efeitos: canoas com motores de popa encalhadas na pedra seca, vegetação aquática exposta ao ar.

“Elas são árvores da água. E como agora não vai chegar mais água, elas vão morrer”, diz Bel.

A ação da Norte Energia ocorre durante a piracema, uma época do ano em que os peixes deveriam estar se deslocando junto à elevação sazonal das águas, nas profundezas da floresta inundada, para se alimentar e desovar. Na prática, a decisão do governo sobre a redução da vazão fecha essa janela reprodutiva – uma oportunidade que surge apenas uma vez por ano.

“A Volta Grande vai se tornar um cemitério. Um cemitério de peixes, um cemitério de árvores mortas”, diz Bel.

 

Em 13 de fevereiro de 2021, imagens feitas por drones sobre a Volta Grande do Xingu mostravam praias e faixas de terra expostas. Na temporada de enchentes, em fevereiro, essas áreas normalmente estariam inundadas, permitindo que peixes e tartarugas tivessem acesso a alimentos e áreas de desova na floresta inundada. Foto: Rafael (sobrenome omitido).

O Hidrograma B da Norte Energia é liberado

Na segunda semana de fevereiro, a Norte Energia desviou mais de 85% da vazão normal do Rio Xingu, afastando-a da Volta Grande, onde vivem milhares de pescadores indígenas e tradicionais. A água que a empresa desviou para a hidrelétrica de Belo Monte reduziu abruptamente a vazão do rio, que passou de 10.900 metros cúbicos por segundo (m3/s) no início de fevereiro para 1.600 m3/s (antes da construção da usina, a vazão média histórica era de 12.736 m3/s).

Em 8 de fevereiro, o presidente do Ibama, Eduardo Fortunato Bim, assinou um acordo que permite à Norte Energia implantar seu Hidrograma B, um regime hidrológico artificial que retirará da Volta Grande 73% da vazão anual normal do Xingu.

Segundo especialistas, as consequências socioambientais serão catastróficas. O hidrograma B “causará o fim do fenômeno cíclico e ecológico do pulso [anual] de inundação, que garante o acesso de peixes e tartarugas às suas áreas de alimentação. Haverá altas taxas de mortalidade e, para os [animais aquáticos] que sobreviverem, perda da condição nutricional”, escreveu Juarez Pezzuti, da Universidade Federal do Pará, em um e-mail à Mongabay.

As tartarugas, que têm “importância cultural extremamente alta” para os Juruna e outros ribeirinhos, “não poderão mais acumular a energia necessária para produzir ovos. O número de vezes que elas põem ovos e o número de ovos por ninho serão reduzidos em muito”.

Em nota à Mongabay sobre os efeitos do Hidrograma B, a Norte Energia afirma: “Atualmente, não há provas técnico-científicas, nem quaisquer indicações, de que o [regime] de vazão praticado por Belo Monte possa causar a mortalidade de peixes ou tartarugas”, citando um “monitoramento robusto”. Cientistas independentes alegam que os estudos de monitoramento da Norte Energia são falhos.

Lorena Curuaia (à esquerda), liderança da aldeia Iawá, na Volta Grande. Foto: Todd Southgate.

Lorena Curuaia, liderança do povo Curuaia, da aldeia Iawá, enviou uma mensagem de áudio à Mongabay comentando a decisão do Ibama: “Isso é um absurdo. Mais uma vez, vemos a fauna, a flora, totalmente ameaçadas, principalmente toda a biodiversidade. Nós sabemos que o fluxo normal de água na Volta Grande e em toda a Bacia do Xingu não funciona assim”.

“Então eles estão atacando a natureza, mais uma vez. Para fazer o quê?”, Ela pergunta. “Para gerar energia, para gerar ganho financeiro para eles, infelizmente deixando a biodiversidade de lado? Nós estamos indignados.”

A líder exige: “Queremos uma resposta do próprio Ibama, dizendo por que aceitaram isso de Belo Monte”. O Ibama não respondeu aos pedidos de comentários para esta reportagem.

Gráfico comparando o hidrograma B com as vazões históricas.

Estudos da Norte Energia sobre o Hidrograma B são rejeitados por conter falhas

Em 2009, a equipe técnica do Ibama rejeitou a proposta da Norte Energia para o Hidrograma B, de vazão extremamente baixa, por ser incapaz de preservar a vida na Volta Grande, algo que a operadora da barragem de Belo Monte tem obrigação legal de fazer. Em dezembro de 2019, o Ibama ordenou que a Norte Energia estudasse regimes hidrológicos alternativos.

Mas, ao revisar os novos estudos apresentados em dezembro de 2020, o Ibama descobriu que a empresa havia apenas comparado o Hidrograma B com a vazão natural histórica, sem oferecer planos de vazão alternativos. Segundo Pezzuti, essa comparação limitada impossibilitou que os especialistas analisassem outros regimes hidrológicos. Depois de ter acesso aos estudos, Camila Ribas, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia e do Museu de História Natural dos Estados Unidos, concorda com essa avaliação.

Consequentemente, em 2 de fevereiro de 2021, a equipe técnica do Ibama rejeitou os estudos da Norte Energia como “falhos” e incompletos.

A seguir, diz Ribas, a empresa deveria ter sido obrigada a refazer seus estudos, atendendo às críticas do Ibama, e depois os reapresentar. Até que isso acontecesse, o “hidrograma provisório” do Ibama, com vazões mais elevadas – em vigor desde abril de 2019 – deveria ter permanecido.

Em outubro de 2020, na Volta Grande do Xingu, as vazões baixas do rio deixam rochas a descoberto, dificultando a navegação. O “Hidrograma B” da Norte Energia, recém-implementado em fevereiro de 2021, trará vazões médias anuais ainda mais reduzidas. Foto: Verena Glass.

Pressão política sobre o Ibama e desinformação

Mas o Ibama teria sofrido intensa pressão de outros ministérios dentro do governo Jair Bolsonaro para reverter a decisão de manter o hidrograma provisório de liberação de água para a Volta Grande. Por dois meses, o órgão sinalizou que a Norte Energia teria que devolver uma quantidade significativa de água ao rio para evitar mais danos ao ecossistema.

Enquanto isso, Ribas lembra que o Ministério das Minas e Energia e a agência nacional de energia elétrica, Aneel, “vazaram documentos supostamente internos” para a imprensa, alegando que, se o Ibama ordenasse à Norte Energia que desviasse menos água da Volta Grande, a conta de luz dos consumidores brasileiros aumentaria muito.

Essa afirmação, segundo Ribas e Pezzuti, é falsa.

Segundo Pezzuti, “a empresa alegou que a não produção de energia [por Belo Monte] tornaria necessário produzi-la acionando termelétricas” para suprir um déficit de energia, o que supostamente aumentaria muito os custos. Contudo, diz ele, a Norte Energia apresentou dados desatualizados sobre as reservas hidrelétricas do Brasil, transmitindo uma imagem falsa do atual potencial do país.

Na verdade, na atual estação chuvosa, os reservatórios das hidrelétricas da Amazônia estão cheios. “A maioria das usinas hidrelétricas [no Brasil] tem nível e vazão bons. Portanto, menos energia [oriunda de] Belo Monte não vai gerar o déficit [de eletricidade] que está sendo ameaçado pela imprensa e pelo governo”, diz Pezzuti. A Norte Energia não respondeu à pergunta da Mongabay sobre esse assunto.

Protesto realizado contra a Norte Energia, operadora da barragem de Belo Monte, por sua atuação na redução da vazão do rio Xingu e seus afluentes, realizada no dia 24 de outubro de 2020, na cidade de Altamira. Os integrantes do Coletivo de Jovens do Médio Xingu por Justiça Socioambiental mostram cartazes dizendo: “Liberte o Futuro” e “Norte Energia, o rio é a nossa entrada, a água é a nossa vida” e “Cadê o Ibama e a justiça, que não vê?” Foto: Xingu Vivo Para Sempre.

Interferência política e crime ambiental?

Aparentemente, o presidente do Ibama, Fortunato Bim, contradisse as conclusões de sua própria equipe técnica ao chegar ao acordo de 8 de fevereiro com o presidente da Norte Energia, Paulo Roberto Pinto, permitindo à empresa implementar imediatamente o Hidrograma B.

Acredita-se que Bim tenha driblado os procedimentos institucionais do Ibama e passado por cima de seu próprio diretor de licenciamento ambiental, Jônatas Souza da Trindade, que deveria ter tomado a decisão, observa Pezzuti. Em nota à Mongabay, o Coordenador Geral de Licenciamento Ambiental, Régis Fontana Pinto, afirmou: “As decisões pertinentes à aplicação do hidrograma de Belo Monte são tomadas na alçada do presidente do IBAMA, embora recebam informações da equipe técnica, de mim, como Coordenador Geral, e do Diretor de Licenciamento Ambiental”.

Esse acordo viola diretamente o Artigo 231 da Constituição brasileira de 1988, diz Pezzuti, segundo o qual as usinas hidrelétricas não podem causar impactos nas terras indígenas. Também parece violar regras internacionais, como a Convenção 169 da OIT, ratificada no Brasil na forma do Decreto 5.051, que protege atividades tradicionais, como a pesca, consideradas essenciais para a preservação cultural. Outras regulamentações que podem ter sido infringidas são a Lei 11.346, que garante a Segurança Alimentar e Nutricional, a Lei 9.985, que protege “os recursos naturais necessários à subsistência das populações tradicionais” e o Decreto 6.040, que “garant[e] aos povos […] tradicionais […] o acesso aos recursos naturais que tradicionalmente utilizam para sua reprodução física, cultural e econômica”.

Com relação às perdas previstas na alimentação dos pescadores da Amazônia, Lorena Curuaia disse à Mongabay: “Nenhuma empresa tem direito de tirar o sustento alimentar dos outros. A cultura dos pescadores é peixe. Retirar a comida deles é retirar a sua vida”.

No dia 18 de fevereiro, dezenas de organizações de pescadores, todas integrantes da associação Xingu Vivo para Sempre, exigiram formalmente que Eduardo Fortunato Bim e Paulo Roberto Pinto fossem “processados ​​criminalmente” por danos ambientais decorrentes da decisão do Ibama.

“No meu entendimento, se o presidente do órgão ambiental toma uma decisão que contraria a posição técnica da própria instituição, ele está deixando de cumprir sua função. Ele está cometendo um crime por não cumprir sua função, que é proteger o meio ambiente”, afirma Pezzuti.

Em nota à Mongabay, a Norte Energia afirma: “Não há crime praticado – pois não existem danos ambientais, mas sim impactos [já] previstos” na fase de licenciamento ambiental. Em 2020, juízes federais e a equipe do Ibama registraram que os impactos da barragem, caracterizados pelo órgão como “graves e irreversíveis”, foram maiores do que o projetado durante o licenciamento.

 

Em 2 de março de 2021, Cleison Juruna colhe frutos maduros da árvore da golosa (Chrysophyllum sanguinolentum). Nessa época, na estação das chuvas, o solo deveria estar inundado e os frutos da golosa deveriam ter caído na água, fornecendo as calorias que os peixes necessitam para a desova. Foto: Cleison Juruna.

Norte Energia oferece planos de mitigação

Em seu acordo de 8 de fevereiro com o Ibama, a Norte Energia também comprometeu 157 milhões de reais (28 milhões de dólares) com planos para mitigar a vazão baixa do rio. Foram aprovados três projetos: enviar equipes para coletar frutos e folhas das florestas que deveriam ter sido inundadas e, depois, jogá-los na reduzida área do rio onde os peixes ficam presos, construir plataformas flutuantes com arbustos para os peixes se alimentarem, e criar peixes em cativeiro para depois soltá-los no Xingu.

Pezzuti rejeita o plano por falta de comprovação científica: “É um pseudoprojeto absurdo, impossível de ser executado em uma escala que compense a [ausência de] inundação de dezenas de milhares de hectares”. Ele observa: “Os dois primeiros [projetos] não são baseados em qualquer tipo de precedente”, e a criação de peixes em cativeiro na esperança de repovoar o rio “já se mostrou ineficaz em vários estudos”.

Alexander Lees, da Manchester Metropolitan University, da Inglaterra, concorda que essas são soluções impraticáveis: “Um desperdício de dinheiro” que seria mais bem aplicado na manutenção do ecossistema.

“Brincar de jogar frutas nos rios ou árvores flutuantes não passa de botar dinheiro fora”, diz Lees. “Parece apenas publicidade positiva”.

Bel Juruna diz que os esforços atuais da Norte Energia são ineficazes. “Tem muitas empresas [contratadas pela Norte Energia] aqui que circulam, visitam, fazem reuniões, mas, apesar disso, não tem projetos do Plano Básico Ambiental [original] que estejam funcionando aqui.”

Pezzuti explica que o plano de mitigação da pesca da Norte Energia foi “assinado por pesquisadores de universidades públicas, contribuindo para essa maquiagem científica, como se houvesse uma solução para a tragédia que o Hidrograma [B] vai causar”. No entanto, acrescenta, pesquisadores independentes, não pagos pela Norte Energia, “especialistas em ecologia de peixes e tartarugas aquáticas … protestaram veementemente … contra essa proposta bizarra”, assim como “analistas do Ibama, que a rejeitaram” em 2 de fevereiro.

Ribas acrescenta: “As pesquisas que a Norte Energia e seus consultores fazem já estão voltadas para um determinado objetivo final”. Ela acredita que a conclusão dos pesquisadores contratados pela empresa, de que o Hidrograma B é viável, resultou de um conflito de interesses que pode explicar por que os especialistas da empresa não apresentaram análises de alternativas. “Isso não é ciência”, Ribas argumenta, temendo que o público brasileiro aceite a pesquisa falha como válida.

O que é necessário, ela conclui, é monitoramento independente. Ribas e seus colegas cientistas estão buscando financiamento para monitorar os efeitos do Hidrograma B da Norte Energia na Volta Grande em 2021.

Quanto ao povo Juruna, Bel Juruna diz que eles vão resistir: “E a gente vai estar aqui, a gente quer resistir neste lugar, lutando para que a gente possa também não virar um cemitério dentro da aldeia”.

Imagem do banner: Bel Juruna, do povo indígena Juruna, em março de 2021, em águas rasas na Volta Grande do Xingu, perto de sua casa na aldeia Mïratu, Terra Indígena Paciçamba. Foto: Bel Juruna.

 

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