Desde o início da gestão Bolsonaro, foram assinados 57 atos legislativos que enfraqueceram as regulamentações ambientais — metade durante os sete primeiros meses da pandemia de covid-19. Houve também queda de 70% na aplicação de multas ambientais.
Outro fato foi a redução na transparência das informações fornecidas por órgãos fiscalizadores como Ibama e ICMBio, que sofreram grande número de exonerações e mudanças em cargos de chefia, incluindo a contratação de militares sem conhecimento técnico.
A sociedade civil também teve sua ação limitada: mais da metade dos colegiados nacionais associados às políticas socioambientais foi diretamente impactada por extinções ou reestruturações nos dois primeiros anos do governo Bolsonaro.
Enquanto isso, a média anual de desmatamento na Amazônia em 2019 e 2020 aumentou 81% em comparação à média dos três anos anteriores à posse de Jair Bolsonaro.
Em março deste ano, a revista internacional Biologic Conservation publicou uma edição especial com uma série de artigos e reportagens sobre o impacto da pandemia na biodiversidade. Entre os textos selecionados está o elaborado por um grupo de seis pesquisadores brasileiros que revela como o governo do Brasil aproveitou o momento em que a maior crise mundial de saúde ocorre para flexibilizar as políticas de preservação do meio ambiente e sucater os órgãos federais dessa área.
Sob o título “The covid-19 pandemic as an opportunity to weaken environmental protection in Brazil”- A pandemia da covid-19 como uma oportunidade para enfraquecer a proteção ambiental no Brasil”, os cientistas mostram, com números, um cenário preocupante e estarrecedor, que certamente colocará em risco a conservação da biodiversidade brasileira em um futuro bastante próximo.
Os fatos apresentados no artigo podem não ser surpresa para aqueles que acompanham o noticiário ambiental, mas certamente os números compilados são. Eles comprovam que o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, realmente fez o que sugeriu durante uma reunião ministerial, realizada em Brasília, em abril de 2020, quando afirmou que o ideal seria aproveitar que “a imprensa só falava de covid” para “alterar leis, sem passar pelo Congresso. Só na canetada!”, ou como ele mesmo falou, “passar a boiada”. Apesar da polêmica divulgação do vídeo com o conteúdo do encontro, o governo não se sentiu intimidado pela exposição pública e continuou a seguir seu objetivo.
Segundo o levantamento, desde o início da gestão do atual presidente, Jair Bolsonaro, foram assinados 57 atos legislativos – entre resoluções, portarias, decretos e instruções normativas –, que enfraqueceram, de alguma forma, as regulamentações ambientais. Deste total, 49% foram assinados durante os sete primeiros meses da pandemia da covid-19. Além disso, houve uma redução de 70% na aplicação de multas ambientais entre março e agosto de 2020.
“Ficamos espantados com os números. Não sabíamos quantos atos legislativos eram. Nem imaginávamos que o volume da diminuição de multas fosse tão grande”, afirma a bióloga Rita de Cássia Portela, professora do departamento de Ecologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro e uma das autores do artigo da Biologic Conservation.
Setembro do ano passado, quando o Brasil ultrapassou os 140 mil mortos pela doença, foi o mês com o maior número de atos legislativos registrados, 16. Um deles foi a tentativa de Salles de extinguir regras de proteção a restingas e manguezais, ação esta derrubada no final de novembro pelos membros do Supremo Tribunal Federal.
“Não há dúvida nenhuma de que com a mídia focada na comoção nacional provocada pela pandemia e na dor e sofrimento dos familiares e vítimas, houve um enfraquecimento geral das políticas ambientais. O que foi dito na reunião ministerial foi realmente feito”, lamenta a pesquisadora.
Entre as medidas descritas estão, por exemplo, o decreto que reduziu os assentos destinados à sociedade civil no Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama), de 22 para quatro, assim como a perda de garantia da representação de populações tradicionais e comunidades indígenas, a mudança da duração dos mandatos dos representantes para um ano e a substituição do método eleitoral pelo sorteio na definição das organizações representadas.
Outro ponto citado pelo estudo foi o grande número de exonerações e frequentes mudanças em cargos de chefia em órgãos como o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), incluindo a substituição desses profissionais por policiais militares, com pouco ou nenhum conhecimento técnico e científico na área (leia mais aqui).
Retrocessos começaram no primeiro ano de governo
Antes mesmo de ser eleito, Bolsonaro já anunciou ao que vinha. Em 2018, durante sua campanha presidencial, declarou que acabaria com a “indústria das multas ambientais” e combateria os “ecoxiitas”. Também expressou sua vontade de fundir os ministérios da Agricultura e do Meio Ambiente e ressaltou que sob sua gestão não haveria mais nenhuma demarcação de terras indígenas. Ao escolher o advogado Ricardo Salles, ex-secretário do Meio Ambiente de São Paulo, o presidente brasileiro sabia que teria na pasta alguém que seguiria suas ordens sem contestação.
Além do artigo publicado na revista internacional, o Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola (Imaflora), em parceria com o Instituto Socioambiental (ISA) e a organização Article 19, também fez uma análise das ações do governo brasileiro em seus dois primeiros anos. O “Mapeamento dos Retrocessos de Transparência e Participação Social na Política Ambiental Brasileira” apresenta uma linha do tempo que demonstra, claramente, um panorama de retrocessos.
“As notícias na imprensa já indicavam uma redução na transparência das informações, além da deslegitimação do trabalho do Inpe e, também, a comunicação centralizada no ministério do Meio Ambiente. Era um cenário difuso ao longo desses dois anos”, afirma Bruno Vello, analista de Políticas Públicas do Imaflora.
A deslegitimação do Inpe, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, órgão que há seis décadas monitora os alertas de desmatamento na Amazônia, foi feita através de diversos ataques perpetrados contra a entidade pelo próprio presidente Bolsonaro, que colocou em xeque a veracidade de seus dados e culminou na exoneração de seu diretor, Ricardo Galvão, em 2019.
O acesso à informação é um direito reconhecido pela Constituição Federal de 1988 e, como mostra o mapeamento, uma das primeiras medidas do governo, logo em janeiro daquele ano, mês da posse, foi a tentativa de ampliar o sigilo a documentos públicos, decreto este revogado depois pelo Congresso.
Novamente, em março do ano seguinte, quando a pandemia começa a ganhar força no Brasil, uma medida provisória desobrigava órgãos a terem um prazo de resposta para pedidos de informação. Todavia, o Supremo Tribunal Federal anulou a decisão. Mas poucas semanas depois foi anunciado que Ibama e ICMBio não responderiam mais aos questionamentos da imprensa, centralizados a partir de então no ministério do Meio Ambiente, o que ficou conhecido entre os servidores desses órgãos como “lei da mordaça”, já que ficaram proibidos de falar ou dar qualquer entrevista sem autorização.
O levantamento realizado a partir da solicitação de 321 informações sobre políticas ambientais a órgãos federais aponta uma redução de 78% no número de respostas satisfatórias em 2019, em comparação com o período 2017-2018. A análise do Imaflora destaca ainda que houve uma deterioração na qualidade das respostas, com um crescimento substancial daquelas consideradas incoerentes.
Restrição do papel da sociedade civil
Outra grave questão levantada pelos dois estudos foi a redução da participação da sociedade civil em vários conselhos e colegiados que discutem políticas públicas para a área ambiental. Foi o que aconteceu no Fundo Nacional do Meio Ambiente (FNMA), no qual agora só há membros do governo.
“A sociedade civil precisa ter acesso a informações e a espaços para debater propostas e soluções na área ambiental. Não me parece que esses sejam retrocessos fortuitos. O cenário atual é de muitas ameaças”, alerta Vello.
De 22 colegiados nacionais associados às políticas socioambientais levantados no estudo do Imaflora, 4 (18,2%) foram extintos e 9 (40,9%) foram reestruturados. Ou seja, mais da metade deles foi diretamente impactada por extinções ou reestruturações, enquanto apenas 9 (40,9%) se mantiveram inalterados.
De uma vez só, por decreto, em abril de 2019, Bolsonaro deu fim ao Fórum Brasileiro de Mudança do Clima (FBMC), o Plano Nacional de Recuperação da Vegetação Nativa (Planaveg) e sua respectiva Comissão (Conaveg), a Comissão Nacional da Biodiversidade (Conabio) e a Comissão Nacional de Florestas (Conaflor).
Também é bastante preocupante que, em 2020, apenas três dos dez órgãos federais que gerenciam bases de dados relevantes para as políticas ambientais cumpriram o requisito legal de possuir Planos de Dados Abertos. Trata-se de uma diminuição de 70% em relação ao número de órgãos com PDAs vigentes em 2019.
Algumas dessas bases de dados incluem informações como o Cadastro Ambiental Rural (CAR), o Cadastro Nacional de Florestas Públicas (CNFP), a “Lista Suja” do Trabalho Escravo ou o Sistema de Licenciamento Ambiental, dentre outros. No ano passado, apenas o Ministério do Meio Ambiente e o Ibama, no setor ambiental, tinham os PDAs disponibilizados.
Os especialistas advertem que dados abertos são imprescindíveis para a implementação das políticas ambientais pelo Executivo e para que a sociedade civil promova iniciativas de fortalecimento das mesmas, como ações de controle e combate ao desmatamento.
Futuro incerto para a biodiversidade brasileira
De acordo com o relatório do Global Forest Watch, divulgado em junho de 2020, os trópicos perderam 11,9 milhões de hectares de cobertura arbórea em 2019 e o Brasil aparece em primeiro lugar nesse ranking. A destruição chegou a mais de 1,3 milhão de hectares e isso representa que o país foi responsável, sozinho, por um terço da devastação de florestas tropicais primárias do mundo.
Números do Inpe corroboram os dados internacionais. Nos primeiros dois anos de Bolsonaro no Palácio do Planalto, a média anual de desmatamento na Floresta Amazônica foi de 8.802 km2, um aumento de mais de 81% em comparação à média dos três anos anteriores à sua posse (2016 a 2018): 4.845 km2.
Por outro lado, o o orçamento proposto pelo governo em janeiro para o ministério do Meio Ambiente para 2021 era o mais baixo em 20 anos, com cortes de mais de 25% para a fiscalização ambiental e combates a incêndios florestais.
Embora tenha sido observado um aumento global do desmatamento nos trópicos, em nenhum outro país foi identificado o enfraquecimento em legislações ambientais durante a pandemia. Em alguns lugares, como a África, houve redução nas fiscalizações, mas nada igual ao que ocorreu no Brasil.
“Estamos esperando o pior. Nossa expectativa é uma perda de biodiversidade em todos os ecossistemas”, prevê Rita Portela. “Houve muitas mudanças em chefias de Unidades de Conservação, que devem sofrer mais com desmatamento, caça ilegal e perda de habitat. A sociedade brasileira está assustada com a pandemia, mas precisamos ficar atentos ao que irá acontecer no futuro próximo”.