Populações tradicionais da Amazônia usam há séculos o fogo para fins agrícolas. Por meio de técnicas de manejo ancestrais, indígenas e ribeirinhos queimam a floresta para a abertura de roçados mas permitem que a mata se regenere e a biodiversidade seja preservada.
Ao contrário dessas comunidades, que mantêm o fogo sob controle, os incêndios provocados para a criação e limpeza de pastagens têm o poder de se alastrar com muito mais força, destruindo grandes trechos de floresta.
Por causa da crise climática, os ribeirinhos vêm tendo dificuldades em manter essa prática tradicional de manejo do fogo. Com a floresta está seca e inflamável, o risco de os incêndios se espalharem é grande.
Práticas tradicionais de controle do fogo, como o aceiro, ajudam. Mas um projeto no oeste do Pará promete juntar ribeirinhos e pesquisadores na criação de um sistema de alerta e previsão de incêndios. A esperança é de que a resposta no combate às queimadas seja mais rápida.
FLORESTA NACIONAL DO TAPAJÓS, PARÁ – “O fogo está se tornando uma coisa perigosa”, conta Pedro Pantoja, 69 anos, conhecido como seu Pedrinho. “Se tiver outro jeito para o pessoal fazer seu plantio sem queimadas, vai ser muito melhor”, explica o ribeirinho, um dos mais antigos moradores da comunidade de Jamaraquá, na Floresta Nacional do Tapajós, oeste do Pará, onde cada produtor tem o seu pequeno roçado para plantar mandioca e uma data própria para queimar a área. “Em outubro ou novembro, mais perto da época de chuvas, o pessoal se organiza para a queima”.
A Flona do Tapajós é uma das unidades de conservação mais visitadas da Região Norte e uma das mais pesquisadas da Amazônia. O rio que empresta o nome à Flona é o protagonista de uma das maiores e mais belas bacias fluviais de toda a Amazônia e é conhecido pelas praias de areia branca – suas águas também banham o mundialmente famoso distrito de Alter do Chão, no qual pousadas com ar-condicionado e restaurantes de comida típica oferecem cardápios em inglês. Na Flona, onde vivem mais de quatro mil pessoas distribuídas por 23 comunidades e três aldeias indígenas, o turismo é mais rústico, e o Rio Tapajós é o centro da vida comunitária.
Em Jamaraquá, uma das maiores comunidades da Flona, o turismo, ainda que incipiente, é uma das principais fontes de trabalho e renda para as 40 famílias que lá vivem, juntamente com o seringal e o cultivo de frutas – além, é claro, da mandioca. Cada família ainda tem um pequeno roçado para a mandioca em seu terreno, que é preparado com o uso do fogo – na ausência de métodos mecanizados, como o uso de tratores, os pequenos agricultores da Amazônia utilizam o fogo para a renovação do solo em seu sistema de alternância de cultivos. Da mandioca, vem a farinha para consumo próprio, e o excedente é vendido na feira de produtores familiares no município de Santarém. A mandioca – e, com ela, o fogo – faz parte da vida dos ribeirinhos há gerações.
Seu Pedrinho conta que os comunitários conhecem outras técnicas de plantio sem fogo, como o sistema agroflorestal e o uso de tratores para preparar o solo, mas dependem de ajuda e conhecimento externo. “Nós não temos suporte técnico. Se você quiser continuar a plantar mandioca, precisa limpar o mato”. O “mato” é a vegetação secundária, ou capoeira. Depois de colher a mandioca, o agricultor deixa o terreno descansar durante anos, enquanto cultiva a área ao lado. Nesse tempo, chamado de pousio, a vegetação daquele espaço se regenera e contribui com serviços ambientais, como manutenção da biodiversidade, filtragem da água e prevenção da erosão do solo. Quando chega o momento de reutilizar o terreno em descanso, seu Pedrinho corta a mata de capoeira (ou floresta secundária) e queima a biomassa para fertilizar a terra – as cinzas guardam nutrientes, como fósforo e potássio.
O fogo de manejo agropecuário, utilizado por pequenos produtores rurais – como seu Pedrinho –, povos indígenas e populações tradicionais na agricultura de subsistência, é caracterizado por incêndios em áreas já desmatadas anteriormente e utilizadas para fins agrícolas, o que também inclui a limpeza de pastagens de grande porte. Os cientistas ainda classificam o fogo na Amazônia em mais dois tipos principais: o fogo de desmatamento, que é aquele utilizado na eliminação da biomassa após o desmate (atividade quase sempre ilegal na Amazônia), e os incêndios florestais, que são ocasionados quando qualquer um dos tipos de fogo mencionados anteriormente invadem a floresta em pé. “O manejo do fogo na Amazônia exige a compreensão do que está queimando, quais fatores influenciam a extensão e disseminação dos incêndios, e como diferentes aspectos se combinam para tornar as florestas mais inflamáveis”, detalha Jos Barlow, pesquisador da Universidade de Lancaster com duas décadas de experiência na região amazônica.
Essa diferenciação é importante por várias razões. Uma delas reside no fato de que representantes do governo Bolsonaro têm repetidamente atribuído a responsabilidade pelos incêndios florestais ao uso tradicional do fogo pelos pequenos produtores rurais das populações tradicionais. Mas os dados não sustentam essa narrativa: segundo o Instituto de Pesquisas Ambientais da Amazônia (Ipam), em 2019, dos 31% de focos de calor registrados em imóveis rurais (o restante se distribuiu por outras categorias fundiárias), 22% estavam naqueles considerados médios ou grandes (maiores do que 440 hectares), enquanto 9% aconteceram nos pequenos (menores do que 440 hectares). Já no primeiro semestre de 2020, os imóveis de médio e grande portes registraram sozinhos a metade do número de focos de calor na Amazônia.
Análises complementares relacionam de maneira ainda mais direta o fogo ao desmatamento. Uma nova ferramenta de mapeamento de queimadas desenvolvida pela Nasa, a Agência Espacial Americana, aponta que 54% dos focos de fogo este ano na Amazônia têm origem no desmatamento. Uma forma mais efetiva de combater o fogo na região, portanto, seria reduzir drasticamente o desmatamento. “Se não há fonte de ignição, não tem como o fogo escapar para a floresta em pé”, explica a bióloga brasileira Erika Berenguer, pesquisadora nas Universidades de Oxford e Lancaster.