Novo estudo mostra que a Caatinga está severamente ameaçada pela atividade humana. Com mais de 27 milhões de moradores, é um dos biomas mais degradados do país.
Pesquisadores denominam o fenômeno de “perturbação antrópica crônica”, usado como base para avaliar a degradação ambiental causada pela população humana, infraestrutura, pastoreio, extração de madeira e incêndios em 47.100 fragmentos remanescentes do bioma.
A Caatinga é o único bioma exclusivamente brasileiro e abriga mais de 900 espécies de animais e plantas. Apesar da riqueza biológica, é um dos biomas menos estudados do planeta.
A Caatinga, devido à sua característica floresta seca de vegetação arbustiva, é vista por muitos como um bioma pobre em biodiversidade. Como consequência, a região recebe pouco investimento para ações de conservação. Especialistas dizem, entretanto, que o bioma — onde vivem mais de 900 espécies de plantas e animais — é o maior e mais diversificado entre as florestas tropicais sazonalmente secas do mundo. É também o único bioma exclusivamente brasileiro e uma das regiões menos estudadas do planeta.
Região sob constante estresse hídrico, que a torna extremamente vulnerável às mudanças climáticas, apenas cerca da metade da vegetação da Caatinga se mantém de pé, distribuída em 47.100 fragmentos. Segundo um estudo recente, porém, essas áreas remanescentes estão severamente ameaçadas pela ação humana acumulada ao longo de décadas ou séculos. Os pesquisadores chamam o efeito de “perturbação antrópica crônica”, e observam que ele está diretamente ligado à localização: trechos de Caatinga ao norte e a oeste são mais perturbados do que as áreas ao leste e ao sul da Caatinga.
O objetivo dos pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e do World Resources Institute (WRI Brasil) era entender a variação da intensidade de tais perturbações, considerando as diferentes regiões geográficas, os tamanhos de fragmentos florestais e a distância até as bordas das áreas florestadas.
Cinco elementos (ou vetores) compõem o índice de perturbação antrópica crônica: população humana, infraestrutura, pastoreio, exploração madeireira e incêndios. Cada vetor traz um impacto diferente em várias regiões da Caatinga e, juntos, são responsáveis pelos índices de perturbação encontrados. O índice de perturbação antrópica vai de 0 a 1. Quanto mais alto o índice em uma área específica, mais degradada ela é. As áreas menos perturbadas — índice de 0,12 — foram encontradas nas regiões leste e central do bioma, enquanto as áreas mais degradadas foram as do norte da Caatinga, apresentando um índice de 0,80.
Estendendo-se por cerca de 11% do território brasileiro, a Caatinga possui uma área total de 844.453 quilômetros quadrados. “Medir a degradação por meio da observação em campo de uma área tão vasta é extremamente difícil”, afirma Carlos Roberto Fonseca, co-autor do estudo e pesquisador do departamento de ecologia da UFRN. “Queríamos buscar resultados para a Caatinga como um todo, não apenas observar alguns pontos selecionados”, acrescenta.
Para estimar os impactos desses vetores, Fonseca e seus colegas utilizaram dados provenientes de vários bancos de dados, como o censo da população realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o censo bovino brasileiro, além de mapas oficiais de estradas, ferrovias, barragens e linhas de transmissão de energia elétrica. Em seguida, os pesquisadores cruzaram esses dados com o mapa do censo do IBGE, que possui uma grade de pixels. O objetivo era avaliar o impacto da degradação para cada pixel do mapa da Caatinga, medindo os diferentes pesos de cada vetor calculado.
A degradação é distribuída pela Caatinga de forma desigual, uma vez que diferentes regiões estão sob diferentes tipos de pressão.
“A urbanização e a pecuária têm deteriorado profundamente a costa leste ao longo dos anos, enquanto na parte norte há muita extração de madeira e assentamentos humanos. Nem todos eles são sustentáveis, por causa da caça ilegal. Algumas outras regiões ainda estão preservadas e podem se tornar áreas de conservação”, diz Fonseca.
Publicado em julho de 2020 no Journal of Applied Ecology, o estudo mostra que os fragmentos menores de Caatinga eram bastante heterogêneos, variando de pouco a muito degradados, enquanto trechos maiores de vegetação apresentavam níveis médios de perturbação. A infraestrutura foi o vetor que causou o maior distúrbio — com um índice de 0,86 — e o fogo o que causou o menor, com um índice de 0,04. O impacto de todos os vetores — população humana, infraestrutura, pastoreio, extração de madeira e fogo — foi maior nas bordas dos trechos florestais.
Grandes obras de infraestrutura causam impactos significativos e imediatos ao meio ambiente. Por outro lado, o pastoreio, a extração de madeira e o fogo estão diretamente relacionados à presença humana em áreas vegetativas restantes e são responsáveis por uma parte considerável da degradação crônica.
Em entrevista telefônica à Mongabay, Marcelo Tabarelli, professor do departamento botânico do Centro de Ciências Biológicas da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), afirmou que muitas famílias que vivem na região são altamente dependentes dos recursos naturais da Caatinga. Este tem sido um longo processo histórico que se estende até o presente. “Elas extraem madeira para cozinhar, por exemplo, e também a vendem para pequenas empresas próximas que dependem do carvão vegetal para combustível. Suas cabras e seu gado se alimentam de pequenas quantidades de vegetação, e tal extração de biomassa é pequena, mas contínua”, diz Tabarelli, que não estava envolvido no estudo.
Para o professor, os padrões de cultura extrativista para uso doméstico têm sido largamente negligenciados por pesquisas ecológicas. Na sua opinião, o estudo é importante, porque lança luz sobre um aspecto subestimado de um bioma pouquíssimo estudado. “[O estudo] mostra que as áreas florestais remanescentes na Caatinga estão expostas à extração de madeira e frutas, e à agricultura de corte e queima. Esse tipo de extração de nutrientes e biomassa faz parte da cultura sertaneja local de comunidades tradicionais aqui no Brasil e em muitas partes do mundo”, acrescenta.
Os efeitos crônicos de perturbação na Caatinga também ocorrem em outras regiões onde grupos menores dependem exclusivamente da extração de recursos naturais para viver, como as florestas secas em partes da África e em regiões rurais da Índia, segundo Tabarelli. “Conforme as comunidades humanas se reorganizam e outras espécies se adaptam e proliferam nesses espaços degradados, ocorre um processo de homogeneização biológica. Na Índia, por exemplo, este efeito é mais radical e está relacionado à ação de invasões biológicas e ao colapso das estruturas florestais sobre a vegetação remanescente [de áreas não degradadas]”.
O professor enxerga uma lacuna em termos de planejamento de desenvolvimento sustentável para a Caatinga. “A degradação ambiental não é um subproduto da mudança climática, mas irá acelerar à medida que a secura aumentar. Há uma histórica falta de medidas legais para enfrentar as questões da Caatinga de forma efetiva, e os dados sobre desertificação são uma prova disso”, comenta.
De acordo com ele, a pressão sobre biomas como a Caatinga aumentará com a mudança climática, ao passo que as secas e outros eventos extremos se tornarão mais freqüentes e causarão a perda de produtividade das florestas.
Neste sentido, tanto Tabarelli quanto Fonseca enfatizam a necessidade da criação de áreas de conservação nas regiões florestais restantes. “Apesar da metade da Caatinga já estar perdida, a conectividade entre as áreas de vegetação remanescentes ainda é alta. Isso é crucial para os animais se deslocarem de um lugar para outro”, diz Fonseca. O pesquisador acrescenta que na primeira década dos anos 2000, “o Brasil estava em um movimento espiral ascendente, quando o país criou talvez 80% das áreas de conservação do mundo. O cenário abrandou na gestão da ex-presidente Dilma Rousseff [2011-2016] e agora estamos vivendo com uma perspectiva de retrocesso, com risco de sérios desmantelamentos em termos ambientais”.
Imagem do banner: Algumas áreas da Caatinga, como este trecho em Lajes, Rio Grande do Norte, estão bem preservadas e têm potencial para se tornarem áreas protegidas. Foto: Juan Carlos Vargas Mena.
Citações:
Antongiovanni, M., Venticinque E. M., Matsumoto, M., & Fonseca, C. R. (2020). Chronic anthropogenic disturbance on Caatinga dry forest fragments. Journal of Applied Ecology, 57(10), 2064-2074. doi:10.1111/1365-2664.13686
Silva, J. M., Leal, I. R., & Tabarelli, M. (2017). Caatinga: The largest tropical dry forest region in South America (pp. 461-474). Springer. doi:10.1007/978-3-319-68339-3_19