Incêndios no Brasil em 2020

Dados do Projeto de Monitoramento da Amazônia Andina

Cartografia: Willie Shubert, em colaboração com InfoAmazonia.org

Método milenar de cultivo agrícola

No caso do fogo usado na agricultura de subsistência, as práticas de cultivo foram herdadas das populações originais. Ainda hoje, os indígenas da Amazônia repetem os métodos milenares usados por seus ancestrais. O fogo é um recurso primordial para o preparo da mandioca e de outros alimentos; faz parte da formação mitológica dos povos, estando presente em ritos de passagem e celebrações; e é usado na obtenção de materiais para moradia.

Do papel na formação da identidade cultural de diferentes povos ao uso como ferramenta de trabalho para o plantio no roçado, o fogo é indispensável no dia a dia das populações tradicionais. Mas o modo de vida secular na Amazônia rural começa a sentir de maneira mais direta os impactos da crise climática provocada, em primeira instância, pela parcela industrializada da humanidade. O clima mudou a tal ponto, que a floresta, mais seca e inflamável, parece incompatível com os velhos hábitos. “Antigamente”, conta seu Pedrinho, “o trabalho na roça era das 7 horas da manhã até o meio dia, mas hoje se você for pro roçado às 10 horas já não suporta mais. É muito aquecimento”.

Na Amazônia, os incêndios florestais descontrolados avançam entre 200 e 300 metros por dia, queimando folhas secas e madeira caída em chamas de até 30 centímetros de altura. Foto: Flavio Forner.

Na roça, os pequenos produtores rurais têm suas técnicas para evitar que o fogo da agricultura de subsistência escape. Seu Pedrinho conta que a família e os vizinhos se reúnem para fazer o aceiro, como é chamado o processo de limpeza da vegetação em volta do terreno para impedir que mais material combustível esteja à disposição das chamas. Com até 3 metros de largura, e a uma distância de 10 metros de distância da faixa de plantio, os comunitários tentam controlar o fogo de roçado e impedir que ele se transforme em incêndio florestal.

Eles também tomam outros cuidados, como acender o fogo nos períodos menos quentes do dia, contra o vento e da borda da área para dentro. “Quanto mais pessoas, melhor, porque elas ajudam a apagar”, explica. No passado, havia mais gente, mas hoje, por conta do êxodo de jovens que partem das comunidades no interior da Amazônia para buscar educação ou saúde nas zonas urbanas, há menos mãos disponíveis.

Brigadistas do ICMBio arriscam as próprias vidas ao entrar na Floresta Nacional do Tapajós à procura de focos de incêndio florestal. Foto: Flavio Forner.

A busca por alternativas

“Os comunitários têm uma percepção forte dos problemas que surgem com o aumento do escape do fogo, tanto os da Flona do Tapajós quanto os da Reserva Extrativista Tapajós-Arapiuns”, conta Joice Ferreira, pesquisadora da Embrapa Amazônia Oriental. A Resex Tapajós-Arapiuns, mencionada pela cientista, fica do outro lado do rio, numa área de mais de 6 mil quilômetros quadrados. Nas 75 comunidades, 13 mil pessoas vivem principalmente da agricultura de subsistência, da criação de pequenos animais e do extrativismo. Por causa das suas atividades econômicas, os moradores da Resex sentem bastante os impactos do fogo. Os incêndios diminuem a caça e os frutos para venda e consumo, além de destruir colmeias de abelha e produtos medicinais extraídos da floresta.

Outra mudança recente é o aumento de animais peçonhentos, como escorpiões e cobras, algo inédito na literatura, de acordo com Joice Ferreira. A pesquisadora coordena um projeto na Resex e na Flona centrado na dinâmica do fogo na agricultura familiar. Mais de 500 moradores das duas unidades de conservação já participaram das oficinas do projeto, inclusive seu Pedrinho.

Os encontros são feitos em uma comunidade de fácil acesso, e todas as outras são convidadas a participar. Por meio de conversas e dinâmicas, os pesquisadores buscam entender como os comunitários veem o fogo, quais os riscos inerentes e sua percepção dos mesmos, quais fatores aumentaram os incêndios ao longo do tempo e quais as alternativas possíveis. O projeto,  desenvolvido por profissionais de 12 instituições de ensino e pesquisa nacionais e internacionais, incluindo órgãos federais, começou em abril de 2019 e vai até 2022. Em abril deste ano teria sido realizado um curso sobre biodiversidade, risco de fogo e mudanças climáticas para professores da região, mas, com a pandemia, o planejamento anual sofreu alterações.

Pesquisador com ribeirinhos na comunidade de Jamaraquá, em projeto que busca tecnologias alternativas ao fogo na agricultura de subsistência. Foto: Flavio Forner.

“Os comunitários têm interesse em reduzir o fogo e têm vontade de entender melhor como funcionam os sistemas de agricultura sem queima e os sistemas agroflorestais, mas se veem aprisionados na situação em que estão”, explica Joice Ferreira. “Falar em proibir o fogo não é factível, porque a mudança das práticas depende de ferramentas que eles não têm”, complementa a pesquisadora.

Em locais da Amazônia onde pequenos produtores têm acesso a maquinários cedidos pelo poder público, o agricultor paga o aluguel por hora e o combustível, além de arcar com os custos do adubo em alguns casos. O fogo, por outro lado, é barato e fácil de adotar. “Do ponto de vista ambiental e de diminuição de risco, seria importante acabar com o fogo, mas quando você pensa que as práticas com fogo na agricultura são milenares, precisamos entender, junto com os produtores, como eles se adaptam a uma mudança de regime de clima”, afirma a cientista.

Um dos principais objetivos do projeto, chamado Sem Flama, é construir um sistema de alerta e previsão de incêndios, a partir dos dados coletados nos encontros. O sistema vai melhorar a visualização dos focos de fogo, evitar ou tornar a resposta aos incêndios mais rápida na Resex e na Flona. O sistema, sob a coordenação do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), vai conter informações sobre a localização das comunidades na região, a densidade populacional de cada uma, onde há mais roçados e quais locais estão mais perto de estradas ou de áreas desmatadas. “A queda rápida de umidade vai alimentar o sistema e gerar alertas em determinadas regiões. Tanto o ICMBio quanto os comunitários terão acesso à informação e poderão responder rapidamente ao evento, com brigadistas externos e com pessoas da comunidade treinadas no combate a incêndios”, explica Joice.

“É da terra e do rio que tiramos o sustento. Se você acabar com a floresta e queimar, o que vai fazer depois? Não vai ter fruta, não vai ter caça, não vai ter mais floresta”, fala seu Pedrinho. Sua sabedoria rudimentar, talhada em roça e rio, em nada destoa das cobranças vindas do mercado global ao Brasil. Em junho último, gerentes de fundos de investimento estrangeiros, avaliados em 4 trilhões de dólares, cobraram do governo Bolsonaro o fim do desmatamento, e o Parlamento holandês rejeitou o acordo comercial entre o Mercosul e a União Europeia pelo mesmo motivo. Tal qual fogo e desmatamento na Amazônia, o futuro da floresta mais biodiversa do planeta e o da humanidade estão atrelados. Esta realidade, não há cortina de fumaça capaz de esconder.

Moradores de comunidades do Tapajós indicam pontos de queimadas durante oficina do Semflama. Foto: Flavio Forner.

* Esta reportagem foi produzida pela Ambiental Media com o apoio da Rainforest Journalism Fund, em parceria com o Pulitzer Center, e faz parte do projeto Cortina de Fumaça

Imagem do banner: Em Porto Velho, Rondônia, fogo intencional avança sobre uma área de pasto, colocando em risco a floresta ao redor. Foto: Flavio Forner. 

Matéria publicada por Xavier Bartaburu
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