‘Amazônia Sociedade Anônima’, documentário dirigido por Estevão Ciavatta, mostra como a exploração predatória ameaça a floresta e detalha iniciativas como a dos Munduruku para protegê-la.
Nesta entrevista exclusiva para a Mongabay, o criador da Pindorama Filmes — primeira produtora brasileira certificada por operar em carbono zero — conta como foi a experiência de filmar transitando entre grileiros e indígenas.
Amazônia Sociedade Anônima, documentário dirigido por Estevão Ciavatta, traz uma narrativa vertiginosa que detalha como a criminalidade ameaça a floresta e seus povos tradicionais. De um lado, as formas de exploração predatória, os esquemas criminosos e uma frágil estrutura social fazem funcionar a engrenagem que tem resultado nos crescentes e alarmantes índices de desmatamento na região. Do outro, floresta adentro, a articulação do grupo indígena Munduruku com seus vizinhos ribeirinhos na área próxima ao trecho Cuiabá-Santarém da rodovia BR-163 para a autodemarcação legal de seu território revela uma sofisticada capacidade de resistência e adaptação. A produção dá continuidade a um projeto de série para a televisão, de mesmo nome, realizado em 2014.
Ciavatta, criador da Pindorama Filmes — primeira produtora brasileira certificada por operar em carbono zero —, há pelo menos duas décadas se dedica a revelar realidades brasileiras à frente de produções audiovisuais como os televisivos Brasil Legal e Um pé de quê?. Para o diretor, lançar olhar atento e engajado sobre a Amazônia carrega um especial tom de seriedade e urgência: “O futuro do Brasil está realmente em risco, estamos passando por um momento extremamente perigoso. Essa foi, com certeza, uma das motivações para a realização do filme agora”, explica Ciavatta, que contou com a parceria do também cineasta Walter Salles como produtor associado.
As articulações para o lançamento, que ocorreu no último dia 21 de agosto na plataforma de streaming Globoplay, envolvem o uso das redes sociais e ações de reverberação que têm por intuito fazer com que as questões suscitadas no documentário gerem reflexão e ações em prol da floresta. “Eu estou envolvido em articulações que conversam com diferentes setores e sinto que existe um processo de conscientização acontecendo. Mas ainda não é proporcional à importância que o tema tem”.
O sufocamento apresentado no filme através das muitas vias de criminalidade a incidir sobre a floresta aponta um modo de estar no mundo que, para o cineasta, embora se diga avançado e civilizatório, ignora tecnologias sociais muito mais aptas a possibilitar a construção de um futuro digno para as próximas gerações. “É como o [antropólogo] Eduardo Viveiros de Castro questiona no filme: quem tem um pensamento realmente avançado? Quem tem que aprender com quem?”. A produção contou com imagens produzidas pelas mulheres do Coletivo Audiovisual Munduruku.
Nesta entrevista exclusiva para a Mongabay, Estevão Ciavatta conta como a experiência de fazer cinema na Amazônia fortalece a sua habilidade de transitar entre diferentes mundos. O diretor também explicita a centralidade do tema da grilagem e das florestas públicas e faz um paralelo entre a realidade social encontrada nas favelas dos grandes centros urbanos e a forma como a desigualdade social compõe um cenário temerário na região amazônica.
Estevão Ciavatta: Por que você escolheu iniciar o filme Amazônia Sociedade Anônima com a relação ancestral, de pelo menos 14 mil anos, do homem com a floresta?
Mongabay: Para mim é fundamental para que se compreenda e valorize todo o conhecimento desenvolvido por essas pessoas ao longo dos milênios, não em confronto mas em interação com a floresta. É algo que nós deveríamos aprender. Essa riqueza está presente no documentário principalmente com os índios Munduruku, e a forma como eles mobilizaram os ribeirinhos da região para a realização do processo de autodemarcação de suas terras. Um dia escutei Juarez, líder indígena, dizendo com ar triste diante das ameaças de degradação da área onde habita com seus parentes: “a gente não tem para onde ir”. Eles sentem que são a própria terra. O cuidado foi dar voz para que pudessem colocar, a partir de sua experiência de mundo, o impacto das ameaças que estão sofrendo e, também, como se organizam para continuarem existindo juntamente com o seu território.
Esquemas de grilagem, expansão pecuária irregular, corte ilegal de madeira e outras ações criminosas formam uma sobreposição de ameaças constantes à floresta e ao mundo habitado pelas populações tradicionais como os Munduruku. Como foi para você, que trabalha na Amazônia há aproximadamente duas décadas, reunir todas essas ameaças em um filme?
Em meu trabalho como documentarista na Amazônia, o primeiro tema a me chamar a atenção foi a questão da grilagem e da regularização das terras públicas, isso já há alguns anos — não por acaso é algo também abordado com ênfase no filme. Acredito que fui uma das primeiras pessoas a lançar uma certa luz a esse assunto, que vem crescendo de importância ao longo dos últimos anos. Hoje eu me sinto menos sozinho para tratar dele, o que acho muito bom. A questão fundiária ainda é a base para grande parte do desmatamento na Amazônia, e para muita violência também. Estamos falando de como grupos criminosos invadem terras públicas e destroem a floresta para lucrar financeiramente usurpando riquezas que pertencem a todos nós. Enquanto todos perdemos, um grupo pequeno de pessoas segue se favorecendo da naturalização de uma forma predatória e criminosa de usufruir dos recursos da Amazônia. Convivendo com as populações tradicionais e, ao mesmo tempo, tendo a percepção dessas forças externas destrutivas, eu realmente tenho a sensação de que se trata de uma guerra entre mundos.
E como é estar na posição de transitar entre esses mundos?
Eu me sinto muito irmanado quando estou na floresta, com aquelas pessoas. Elas me lembram uma parte da minha família nordestina, não saberia precisar exatamente, mas existe uma familiaridade que é suficiente para que todos se sintam à vontade e eu possa atuar de forma a permitir que eles tenham voz. Mais desafiador, por exemplo, é estar diante de um personagem que inicialmente poderia ser visto como alguém do lado oposto, um suposto inimigo, sem vilanizá-lo. No documentário existe um personagem que durante alguns trechos declara pontos de vista que poderiam ser vistos como controversos, mas de alguma maneira lógicos, até revelar uma teoria bastante absurda e negacionista no que se refere às evidências científicas sobre a importância da preservação da Amazônia. Transitar entre os mundos também requer a habilidade de estar diante de discursos deste tipo.
Um discurso bastante propagado atualmente — inclusive pelo presidente Jair Bolsonaro…
Exatamente. Na fala completa é possível encontrar vários pontos de alinhamento com esse discurso governamental que coloca em xeque a importância de se manter a floresta em pé —- e acaba incentivando ações ilegais, como invasões e queimadas.
Se a guerra também é narrativa, qual a importância de se fazer cinema documental na luta pela conservação da Amazônia hoje?
No nosso caso existe a compreensão de que lançar esse documentário neste momento é uma oportunidade de mobilização. Por isso a escolha de o filme estar à disposição em uma plataforma de streaming, mais acessível do que se aguardarmos para estrear nas salas de cinema. Também estamos promovendo uma forte campanha de impacto tanto nas redes sociais quanto nos circuitos de pessoas que possam proliferar o conteúdo. Eu acredito que a relação estabelecida com o cinema documental tem o poder de gerar reflexão crítica, de mobilizar, trazer a discussão para a pauta e favorecer o desenvolvimento de uma mentalidade mais aprofundada sobre a floresta e o que se passa nela — em um momento especialmente crítico.
Vale lembrar que existe um arco de tempo no filme. Isso revela como o destrato e o descuido com as políticas ambientais para a região amazônica não chegaram ao extremo que observamos de uma hora para a outra. É inegável que agora está tudo muito pior, que é uma tragédia o que está acontecendo. Mas não é possível afirmar que os governos anteriores tenham deixado um legado positivo — o que pode ser observado no filme com as dificuldades dos indígenas em relação à Funai e o projeto da construção de uma hidrelétrica, ainda em 2016.
Além da Funai, instituições de controle da criminalidade ambiental como o Ibama estão sendo desmanteladas pelo atual governo. Depois de acompanhar de perto as ações do Ibama que aparecem no filme, como você avalia essas mudanças?
Eu fiquei muito bem impressionado com as ações do Ibama que acompanhamos. Claro que todas as instituições têm as suas fragilidades, mas o que vi foram agentes dispostos a cumprirem com seriedade o seu papel, agindo como uma força tática fundamental para coibir as atividades ilegais que colocam a floresta em risco. É muito triste ver um desses servidores públicos sendo tratados como o agente Givanildo dos Santos Lima, que eu conheci atuando em campo e foi parar nos noticiários por ter sido agredido por uma garrafada na cabeça enquanto trabalhava, no Pará. É uma grande pena que esses profissionais sejam tratados dessa forma. Principalmente quando sabemos dos riscos reais que correm em cada ação e do quanto estão em número insuficiente na proteção da floresta. Enfraquecer essas instituições é fazer com que esses profissionais se tornem ainda mais vulneráveis.
Quando toca no uso da mão-de-obra para o desmatamento, o filme estabelece a relação desse processo com as condições precárias de trabalho e vida da população local. Nesse sentido, você acredita que a desigualdade social também é um dos fatores de destruição da floresta?
Com certeza. Até porque a floresta não é apenas formada por árvores, rios, animais, mas também por pessoas. Na Amazônia é possível fazer um paralelo com uma realidade que para muitos está presente apenas em territórios como as favelas. Basicamente: sobra opressão, falta Estado. Por outro lado, é possível encontrar opções de trabalho com certa facilidade na criminalidade — o que no contexto amazônico significa muitas vezes estar envolvido com ações ilegais ligadas ao desmatamento.
É por isso que eu acredito que seja tão importante a efetivação de políticas e parcerias que tenham como objetivo transformar a realidade das pequenas comunidades, de uma maneira que os produtos da região sejam consumidos, por exemplo, na merenda escolar. A ideia é que essa economia se estabeleça de tal maneira que não apenas evite a busca pela criminalidade como via de subsistência mas também conscientize sobre o valor financeiro da floresta em pé, de como os seus recursos são suficientes e abundantes e podem gerar uma renda digna. Além disso, é claro, existe toda a estrutura que se faz necessária, como escolas de qualidade, por exemplo — uma fragilidade que é escancarada por personagens do documentário envolvidos com o desmatamento.
Os áudios da Operação Castanheira utilizados no filme mostram em detalhes as articulações de uma organização criminosa ligada à grilagem de terras. Como foi o acesso a esse material?
Eu recebi o material do próprio Ministério Público Federal, que tinha interesse em divulgar essa história considerada altamente representativa sobre como se dão as negociações e como é possível lucrar com a invasão de terras públicas na Amazônia. Também achei que era um recurso narrativo interessante, porque acaba substituindo um narrador. É como se o espectador estivesse acompanhando ele mesmo da gravação da escuta.
Mesmo com todas essas dificuldades e os agravamentos atuais, a sua escolha foi a de terminar o filme indicando sinais de esperança. Você de fato tem essa perspectiva?
Eu acho que ainda há tempo, só que não é muito tempo. Sinto que neste momento o futuro do Brasil está seriamente em risco — além de todo o planeta, que também sofre os impactos com o avanço da destruição da floresta pelas mudanças climáticas. Vejo muita força na resistência dos povos tradicionais e, como o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro diz no filme, penso que essas populações é que estão avançadas e indicam um futuro possível a todos nós.
E tem algo que pode parecer contraditório, mas faz sentido no intrincado jogo de interesses envolvidos: no final das contas é possível que o agronegócio e o sistema financeiro também comecem a gerar mecanismos de proteção à floresta, já que está ficando cada vez mais claro que até para eles o desmatamento massivo tende a ser fonte de prejuízo.