Desde 2010, o Projeto Tatu-Canastra se dedica a pesquisar o maior tatu do mundo. Um gigante de 1,5 metro de comprimento que, apesar do tamanho e de habitar quase todos os países da América do Sul, é uma das espécies menos conhecidas. De tão tímido, é quase invisível. Entre as descobertas do projeto, está o papel fundamental do tatu-canastra nos ecossistemas. Suas tocas de até 5 metros de comprimento servem de abrigo contra extremos climáticos a pelo menos outras 70 espécies, incluindo aves, répteis e mamíferos. O tatu-canastra é considerado uma espécie “vulnerável”. Sua maior ameaça e o avanço do agronegócio, que, além de promover o desmatamento, constrói estradas que fazem do animal uma das maiores vítimas de atropelamento. Arnaud Desbiez (à esquerda) e sua equipe soltam um tatu-canastra após pesquisa. Foto: Projeto Tatu-Canastra/divulgação. O trabalho feito pelo biólogo Arnaud Desbiez e sua equipe faz lembrar o de paleontólogos. Caminhando ao longo da vegetação do Cerrado, da Mata Atlântica e do Pantanal, eles buscam indícios da presença de um animal raramente avistado, apesar do seu tamanho: o tatu-canastra. “Ele é praticamente um fantasma da floresta”, diz Desbiez. “Muitas pessoas sequer o conhecem. Toda nossa relação com o tatu-canastra é através de evidências indiretas. Achar um é como encontrar uma agulha em um palheiro”. E para o biólogo, nascido na França, mas radicado no Brasil há quase duas décadas, uma das principais ameaças da espécie é justamente o desconhecimento dela. Todavia, desde que criou, em 2010, o Projeto Tatu-Canastra, realizado pelo IPÊ – Instituto de Pesquisas Ecológicas e o Instituto de Conservação de Animais Silvestres (Icas), com o apoio da Fazenda Baía das Pedras, muitas descobertas já foram feitas sobre o comportamento e os hábitos desse animal, o Priodontes maximus, a maior entre as 20 espécies de tatu do mundo. É surpreendente que um bicho com o seu tamanho seja pouquíssimo avistado. Esse mamífero pode pesar até 50 kg e medir cerca de 1,5 metro (do focinho à cauda). Acontece que ele tem hábitos noturnos e vive a maior parte do tempo dentro dos engenhosos e imensos túneis que cava. Além disso, é um ser solitário, diferente de outras espécies que precisam de um grupo. Coberto por uma armadura feita de escamas, o tatu tem entre suas mais marcantes características as garras em forma de foice. A principal delas, no terceiro dedo, mede aproximadamente 14 cm. Ou seja, é maior do que a de um urso polar. “Ele é como um um fóssil vivo, remete a épocas passadas”, afirma o coordenador do projeto, um apaixonado pela espécie. “A primeira foto que fiz de um tatu-canastra mudou minha vida”. Foi há exatos dez anos, quando Desbiez conseguiu fotografar o animal usando uma armadilha, no Mato Grosso do Sul. Dentro de uma toca de tatu-canastra, a temperatura de mantém sempre em torno de 25 oC. Por isso, costuma ser usada por outros animais para se abrigar de frio e calor extremos. Foto: Projeto Tatu-Canastra/divulgação. Dados inéditos sobre a espécie Desde então, o time do Projeto Tatu-Canastra conseguiu compilar informações importantes, muitas ainda desconhecidas pela literatura científica. Elas foram obtidas por meio do trabalho em campo, aparelhos de GPS e câmeras fotográficas camufladas espalhadas pela mata. Foi com essa última ferramenta, por exemplo, que conseguiu-se fazer o registro inédito de um filhote de tatu-canastra na natureza. Depois dele, outros três tatuzinhos já foram flagrados pelas lentes das armadilhas escondidas. “Acredito que uma de nossas maiores descobertas foi em relação à sua reprodução. Percebemos que a fêmea que costumava trocar de buraco a cada uma ou duas noites de repente começou a ficar nele por 25 dias”, conta. “Depois do nascimento, ela levou o filhote para outra toca e ficou lá por mais 15 dias; após esse período, novamente mudou de buraco”. Graças ao projeto brasileiro, sabe-se hoje que a gestação do tatu-canastra leva cinco meses, com o nascimento de apenas um filhote. “Antes acreditava-se que seriam de um a dois filhotes, mas nossas observações mostraram sempre o nascimento de um, com um intervalo de três anos entre cada gestação”. Desde o final de 2019, os biólogos do Tatu-Canastra contam também com uma nova tecnologia que já possibilitou outra descoberta. Sete animais têm um implante intra-abdominal, que possui um sensor de atividade, e, com esse dispositivo, a equipe detectou que o tatu fica ativo por 5 horas durante a noite. A espécie anda, em média, 2 quilômetros nesse período. O resultado de todas essas pesquisas dos últimos dez anos gerou a publicação de cerca de 30 artigos científicos e a produção de um documentário pelo canal britânico BBC, Hotel Armadillo, que foi ao ar em 2017. O reconhecimento pelo trabalho também rendeu ao projeto o prêmio Whitley Awards, em 2015, considerado um “Oscar” da área de conservação. Engenheiro do ecossistema Umas das façanhas mais impressionantes do tatu-canastra está embaixo da terra. São as enormes tocas que ele cava — ou melhor, túneis, já que podem chegar a 5 metros de comprimento, de 1,5 a 2 metros de profundidade e 35 centímetros de largura. E com uma rapidez sem igual. Em cerca de 20 minutos, seu novo lar para os próximos dias está pronto. O que tem surpreendido os biólogos, entretanto, é a quantidade de outros animais que se beneficiam e compartilham o conforto desse lar. “Os buracos do tatu-canastra servem de abrigo para muitas outras espécies. Até agora já registramos 70 diferentes”, revela o coordenador do projeto. “As tocas são usadas quando há variações climáticas extremas no ambiente, pois sempre mantêm uma temperatura constante de 25 graus”. Muitos bichos são atraídos também para a toca em busca de comida. O tatu se alimenta de formigas e cupins, mas ao construir os túneis quebra raízes e remexe o solo. Roedores, carnívoros, répteis e até aves, como a seriema, foram vistas nesses esconderijos debaixo da terra. “Foi incrível descobrir que o tatu-canastra, uma espécie da qual não se sabia quase nada, tem um papel fundamental no ecossistema”. Com suas garras, um tatu-canastra é capaz de cavar um túnel de até 2 metros de profundidade em apenas 20 minutos. Foto: Projeto Tatu-Canastra/divulgação. Ameaças em biomas degradados Desbiez afirma que o Pantanal foi o lugar perfeito para o início dos estudos sobre o Priodontes maximus por ser uma região ainda bem preservada no Brasil. Todavia, para que se pudesse traçar estratégias de conservação era necessário conhecer a situação em outros biomas, daí a extensão do projeto para áreas de Cerrado (Mato Grosso do Sul), da Mata Atlântica (Minas Gerais e Espírito Santo) e do Chaco argentino. Um mapa de ocorrência do animal, elaborado pelo projeto, serviu como base para o planejamento do zoneamento econômico e ecológico, já que agora o tatu é um dos cinco principais mamíferos a serem usados como indicador para o estabelecimento de áreas protegidas e de corredores de conservação no Mato Grosso do Sul. De acordo com a Lista Vermelha das Espécies Ameaçadas da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN, na sigla em inglês), o tatu-canastra é considerado vulnerável, o que significa que a espécie tem chance de entrar em extinção na natureza. No Cerrado, uma das maiores ameaças a esse animal é a expansão agropecuária, que traz com ela o desmatamento e a construção de estradas para o transporte de sua produção. “Os mamíferos de grande porte, como o tatu-canastra, são os mais impactados pelas rodovias; uma vez que se deslocam em grandes distâncias – pela fragmentação do habitat – o que aumenta a possibilidade de travessia nas rodovias e, consequentemente, de atropelamentos”, destaca Aureo Banhos, um dos pesquisadores do projeto. Para localizar e monitorar o tatu-canastra, os pesquisadores do projeto usam aparelhos de radiotelemetria. Foto: Projeto Tatu-Canastra/divulgação. A ampliação do Projeto Tatu-Canastra Há três anos, percebeu-se que além das pesquisas científicas, era preciso investir também na educação ambiental, fazendo com o que o tatu-canastra ganhasse a empatia de crianças e comunidades locais. Com o apoio da startup Fubá, foram criadas atividades e ações, além de material para ser usado em salas de aula com estudantes desde o Ensino Infantil e Fundamental até o Médio. Com a pandemia do novo coronavírus, muitos desses recursos estão disponíveis online. “A reação das crianças é bem bacana porque trabalhamos com diferentes perfis, desde aquelas que moram em Campo Grande e acabam descobrindo o canastra através das nossas atividades e vão se interessando por ele, até aquelas que vivem em aldeias indígenas, em Aquidauana, por exemplo, quando ele é um bicho muito mais próximo”, conta Andréia Figueiredo, co-fundadora da Fubá. Segundo a educadora, em ambos os casos, há sempre um encantamento dos pequenos pelo animal tão enigmático. O Projeto Tatu-Canastra ampliou ainda seu foco para outra espécie, o tamanduá-bandeira. Infelizmente a covid-19 trouxe desafios à iniciativa, que perdeu alguns de seus financiadores. “Nossa grande prioridade agora é salvar o projeto e estendê-lo para a Mata Atlântica, na região do Parque Estadual do Rio Doce”, revela Desbiez. A ideia é que o tatu-canastra se torne cada vez mais conhecido por todos. “Nas escolas do Brasil há uma tendência a se falar muito dos animais da África e esquecer da nossa própria fauna”, diz o biólogo francês, mas de coração brasileiro. Mais reportagens da Mongabay sobre fauna brasileira aqui. Imagem do banner: Projeto Tatu-Canastra/divulgação.