Nova pesquisa afirma que grandes reservas protegidas legalmente são necessárias para que os povos indígenas mantenham seus meios tradicionais de subsistência.
Os autores ficaram surpresos ao encontrar altas densidades populacionais dentro de quase metade (295) das terras indígenas brasileiras.
Quase um quinto de todos os animais e plantas da Amazônia vive dentro das terras indígenas, que retêm 25,5% de todos os estoques de carbono no Brasil.
Alterar o status de proteção das terras indígenas ou abri-las a atividades econômicas são medidas que afetarão a integridade etnocultural e prejudicarão os compromissos do Brasil com a mitigação das mudanças climáticas e a proteção da biodiversidade.
“O nosso artigo refuta completamente a bandeira política anti-indígena, muitas vezes expressa no Brasil, de que há ‘muita terra para pouco índio’”, diz o coautor do estudo.Rodrigo Begotti, da Universidade de East Anglia, no Reino Unido.
Usando dados do censo e mapas de uso da terra de populações indígenas e não indígenas, os pesquisadores analisaram 587 terras indígenas demarcadas, que somam 1,9 milhão de km2 – uma área quase quatro vezes o tamanho da Espanha. As terras indígenas (TIs) representam 13,5% do território brasileiro e abrigam meio milhão de pessoas, que falam 280 idiomas diferentes.
Os autores do estudo ficaram surpresos ao encontrar altas densidades populacionais dentro de quase metade (295) das terras indígenas brasileiras. Apenas 208 TIs tiveram as baixas densidades populacionais típicas de sociedades tradicionais de caçadores-coletores, horticultores e seminômades.
“Esses resultados mostram a importância fundamental de garantirmos proteção jurídica a terras indígenas suficientemente grandes. Essas terras continuam sendo fundamentais para que o Brasil cumpra seus compromissos internacionais de proteger a biodiversidade tropical e mitigar as mudanças climáticas”, afirma o coautor do estudo, Carlos Peres.
As terras indígenas brasileiras proporcionam benefícios ambientais em escala global. Quase um quinto de todos os animais e plantas da Amazônia vive nessas reservas, que retêm 25,5% (cerca de 13 gigatoneladas) de todos os estoques de carbono no Brasil.
Segundo o estudo, quase 90% das terras indígenas analisadas têm uma proporção maior de cobertura vegetal nativa do que áreas próximas e protegem quase um oitavo do território brasileiro – mais de 1 milhão de km2 de florestas, campos e savanas.
“Também constatamos que os meios de subsistência tradicionais dos indígenas brasileiros estão intrinsecamente ligados a condições ambientais saudáveis e que as terras indígenas ainda são eficazes na prevenção do desmatamento”, diz Begotti.
Segundo os autores, modificar o status de proteção das terras indígenas ou abri-las a atividades econômicas, como mineração e agricultura voltada à produção de commodities, afetará a integridade etnocultural e prejudicará os compromissos do Brasil com a mitigação das mudanças climáticas e a proteção da biodiversidade.
“Atualmente, existe uma forte pressão política para integrar os povos indígenas à economia de mercado, estabelecendo cultivos de commodities e liberando a mineração em terras indígenas”, afirma Begotti . “A justificativa é que os povos indígenas querem ter acesso a bens de consumo e devem gerar receita monetária, independentemente dos riscos à sua diversidade etnocultural e a seus conhecimentos tradicionais”.
Em 1988, a Constituição Brasileira reconheceu os direitos dos povos indígenas à terra, em áreas chamadas legalmente de terras indígenas (TIs). A Funai, órgão federal responsável pela proteção e a demarcação dessas terras e por tribos isoladas, sofreu graves cortes orçamentários sob a gestão do presidente Jair Bolsonaro, tornando quase impossível demarcar novas terras indígenas ou garantir as proteções previstas na lei.
“Para os povos indígenas, a garantia de seus direitos à terra é fundamental para manter sua identidade coletiva e sua autodeterminação”, diz Begotti. “Infelizmente, o atual cenário legislativo do Brasil e a existência de um executivo federal hostil apenas estimularam conflitos de terra e violência rural contra esses povos, fazendo com que aumentassem os índices de desmatamento em terras indígenas.”
Os índices de suicídio e pobreza encontrados em grupos indígenas que ainda não tiveram seus direitos à terra reconhecidos são elevados. Esses direitos são fundamentais não apenas para a redução da pobreza, mas também para garantir um amplo leque de direitos humanos, como os direitos a comida, água, condições básicas de saúde e identidade etnocultural.
“Begotti e Peres apresentam uma compilação valiosa da enxurrada de retrocessos sofridos pela biodiversidade e os povos indígenas do Brasil desde que Bolsonaro assumiu a presidência, em janeiro de 2019”, diz Philip Fearnside, professor do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa).
Apenas algumas semanas após a publicação desse estudo, uma instrução normativa da Funai abriu 98 mil km2 de terras indígenas a estrangeiros, retirando a proteção de 237 áreas cujo processo de homologação ainda não havia sido concluído. Mais uma ameaça entre as já muitas que pairam sobre os territórios indígenas do Brasil, como a crescente presença de grileiros e garimpeiros dentro das reservas e o impacto causado por grandes obras de infraestrutura, como usinas e rodovias.
Sobre a mensagem que os autores gostariam de transmitir ao governo brasileiro, Begotti responde mencionando palavras de um grande defensor dos povos indígenas, Orlando Villas-Bôas. “Com base nesse argumento”, diz Begotti, “concordaríamos com Villas-Bôas ao afirmar que estamos cada vez mais próximos de extirpar uma história de pelo menos 8 mil anos de diversidade etnocultural de nosso estado-nação e todos os conhecimentos tradicionais associados a ele, assimilados durante um longo processo de tentativa e erro, que teve bastante êxito no trato com os ecossistemas naturais”.
Imagem do banner: Celebração tradicional do povo Tuyuka, no Amazonas. Foto: Xavier Bartaburu.