O quilombo Baião, no Tocantins, tenta preservar seu modo de vida no coração da nova fronteira do agronegócio. Cercados por uma grande fazenda de soja, seus moradores se veem vítimas de assédio, bloqueio de estradas e envenenamento das lavouras por agrotóxicos.
Os registros mais antigos do quilombo remontam ao século 19, mas só em 2010 foi que as 50 famílias que lá vivem conseguiram o certificado de reconhecimento da Fundação Palmares. A titulação, porém, é um sonho agora distante durante a gestão Bolsonaro. No Tocantins, das 45 comunidades quilombolas reconhecidas, nenhuma até hoje obteve o título.
O dono da Fazenda Ipiranga, que cerca o quilombo, também possui outras propriedades na região do Matopiba e está listado como um dos arrendatários do Agronegócio Estrondo, na Bahia, consórcio de fazendas que é considerado um dos maiores casos de grilagem de terras e violações de direitos no Brasil.
ALMAS, Tocantins— A vegetação do Cerrado se estende por quilômetros a fio até a entrada da Fazenda Ipiranga, ainda na divisa do Tocantins com a Bahia. Na região em queos estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia se encontram, conhecida como Matopiba, tudo é gigante, inclusive os problemas causados pelo agronegócio. Berço de importantes rios brasileiros, seus 73 milhões de hectares começaram a ser ocupados pelas lavouras e pela pecuária ainda na ditadura militar. A partir dos anos 2000, a presença de grandes fazendeiros explodiu.
Ali, partindo de Almas, uma das cidades mais antigas do Tocantins, nascida da exploração do ouro, dirigimos 25 quilômetros por estradas de asfalto e de terra dentro da Fazenda Ipiranga. À medida que avançamos, tocos de árvores ainda fumegando se apresentam no horizonte, indicando desmatamento e limpeza de área recente. Como é típico do Cerrado, a vegetação ao nosso redor demonstra estágios de crescimento variados.
Não há qualquer aviso de que entramos no quilombo Baião. A única sinalização por todo o caminho é a da Fazenda Ipiranga, um problema que está longe de ser mero simbolismo.
“Nós somos invisíveis”, explica Maryellen Crisóstomo de Almeida, jornalista nascida e criada na comunidade de Baião, agora cortada ao meio pela fazenda. “E estamos invisibilizados porque aqui o que manda é o agronegócio e existe um discurso de que não existem quilombolas no Matopiba. Mostrar que nós estamos aqui é um caminho para garantir a nossa subsistência”, acredita Maryellen.
AApesar de os registros mais antigos da comunidade do Baião remontarem ao século 19 e os primeiros documentos serem da década de 1920, somente em 2010 foi que as 50 famílias que hoje vivem no quilombo conseguiram o certificado de reconhecimento da Fundação Palmares, responsável pelo processo. O atual presidente da Palmares, Sérgio Camargo, indicado por Bolsonaro, nega que exista racismo no Brasil.
Siran Nunes de Souza, a atual liderança do quilombo Baião, conta que as terras da região foram passadas de pai para filho há gerações. O assédio começou na década de 1980, quando pessoas de fora enganaram muitos moradores e terras foram trocadas por nada, já que as pessoas não sabiam o real valor do que tinham em mãos. Nos últimos anos, o assédio do agronegócio aumentou, relata Siran, e muitas pessoas foram abordadas para vender suas propriedades.
Agronegócio altera o modo de vida das próximas gerações
Marcelo Carassa, dono da Fazenda Ipiranga, também possui outras propriedades na região do Matopiba e está listado como um dos arrendatários do Agronegócio Estrondo, na Bahia, consórcio de fazendas que é considerado um dos maiores casos de grilagem de terras e violações de direitos no Brasil.
O processo de ocupação das terras próximas e dentro do quilombo Baião começou a se intensificar uma década atrás, diz Eliene Fernandes Crisóstomo, outra líder da comunidade. Acessos de estradas foram bloqueados e o quilombo precisou brigar na justiça – e vencer – pelo seu direito de ir e vir.
Mesmo assim, isso não impediu o dono da Fazenda Ipiranga de continuar a cercar a comunidade. Marcelo Carassa construiu até uma estrada que divide o quilombo em dois.
Para Eliene Fernandes, a exemplo de outros moradores do Baião, uma das piores consequências que o avanço da Ipiranga trouxe é a ameaça ao modo de vida tradicional que ali persiste por gerações. Mãe de cinco filhos, Eliene não acredita que seus netos poderão viver do mesmo jeito que ela e outros parentes cresceram.
“O desmatamento está rapidamente nos impedindo de viver”, ela conta. “Hoje, as águas estão poluídas. E as nascentes começaram a secar. Nossas lavouras não conseguem produzir quase nada porque os agrotóxicos que vêm da Ipiranga tomaram conta e os insetos resistentes ao veneno também vieram todos pra cá.”
Os principais alimentos cultivados na comunidade, como milho, arroz, abóbora e maxixe, não crescem como antes. Sem alternativas, boa parte dos moradores mais jovens são obrigados a se mudar para cidades próximas para procurar emprego. “Agora nós temos que comprar coisas na cidade. Não podemos mais viver como sempre vivemos”, conta Eliene. A pressão do agronegócio “mudou o modo de vida e de alimentação de uma geração inteira”, lamenta.
Procurado pela reportagem, Marcelo Carassa se negou a comentar a situação relatada pelos quilombolas, os conflitos com a comunidade e todo o histórico dos seus empreendimentos na região.
Comunidades tradicionais podem salvar o que resta do Cerrado
A estrutura do Baião é semelhante à de muitos quilombos – parentes se espalham em casas próximas, cada um com a sua lavoura, compartilhando as mesmas práticas.
O quilombo elege um líder para representá-lo e as famílias se ajudam em todo o processo de plantio, colheita e trabalho diário da lavoura. Os laços tradicionais são profundos. E se estendem para as crenças religiosas, o modo de vida e as histórias que são passadas geração após geração.
É no boca a boca que a história é contada. A oralidade tem papel central na vida dos quilombolas. E a conexão com a terra é total. É a Constituição brasileira, no artigo 68, que garante aos quilombolas o direito à terra e o dever do Estado em emitir os títulos para cada comunidade.
Uma obrigação que o Brasil tem falhado sistematicamente em cumprir. Até hoje, apenas 9% das comunidades quilombolas vivem em áreas tituladas. São cerca de 1.700 processos tramitando no Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), 44% deles abertos há mais de 10 anos. 85% dos processos não conta sequer com o Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID), fase inicial que identifica os limites do território quilombola a ser titulado.
Enquanto isso, cerca de metade do Cerrado, a savana mais rica em biodiversidade do mundo, já foi eliminada. Entre agosto de 2018 e julho de 2019, foram 648 mil hectares desmatados, mais de quatro vezes o tamanho do município de São Paulo. Pior: apenas 20% da vegetação nativa restante está intacta o suficiente para ser preservada, o que faz do Cerrado um dos biomas mais ameaçados do mundo.
“A delimitação de terras para comunidades tradicionais é o canal para poder frear o desmatamento”, afirma Maryellen Crisóstomo. “Se fala em reciclar, em plantar novamente árvores, mas o que o planeta precisa de mais urgente é parar de desmatar. Sem parar o desmatamento e delimitar terra, não há solução”, defende.
Previstos na Constituição, direitos dos quilombolas são ignorados
Os direitos adquiridos pelos quilombolas na Constituição de 1988 raramente são respeitados. A lentidão na titulação de terras é um problema crônico que atravessa todos os governos desde a redemocratização.
A primeira titulação aconteceu somente no fim de 1995. E, desde a gestão de Fernando Henrique Cardoso, o governo federal titulou apenas 42 terras quilombolas. A grande maioria das titulações – 139 – foi feita por governos estaduais.
O trabalho do Incra costuma ser burocrático e levar anos. Dos 1.700 processos em andamento, somente dois conseguiram iniciar a titulação em 2019. No Tocantins, das 45 comunidades reconhecidas, nenhuma foi titulada pelo Incra até hoje. “O processo de regularização da comunidade do Baião não foi iniciado pela regional do Incra em virtude da insuficiência de recursos humanos e financeiros”, afirmou a assessoria do instituto em resposta à reportagem.
O orçamento total do Incra Tocantins em 2019 foi de apenas R$ 31 mil, o que inclui o pagamento de diárias e o gasto com combustível, por exemplo. A regional tem somente três servidores — dois antropólogos e um assistente social. O Incra ressaltou que a responsabilidade pela titulação é compartilhada com estados e municípios.
Segundo o instituto, para que a comunidade de Baião seja titulada, é obrigatório elaborar o Relatório Técnico de Identificação e Delimitação . Mas, conforme assumiu o órgão e Maryellen confirmou, o Incra até hoje não dispõe dos R$ 17 mil para fazer o estudo – mais da metade do minúsculo orçamento da regional.
O caso mais avançado de titulação de quilombo no Tocantins, informou o Incra, é o da comunidade Kalunga do Mimoso, situada nos municípios de Arraias e Paranã, a mais de 200 km de Almas. São aproximadamente 10 mil hectares desapropriados e transferidos ao Incra para titulação parcial do território, com área total de 57.465 hectares.
Com demarcações paralisadas, covid-19 avança sobre os quilombos
O processo extremamente lento de titulação das comunidades entra em contraste direto com a velocidade com que o agronegócio avança sobre as terras do Matopiba e coloca o Cerrado abaixo.
“No Tocantins, os posseiros que chegaram nos anos 1970 também são os mesmos que controlam os cartórios”, explica Paulo Rogério Gonçalves, da APA-TO, associação de trabalhadores rurais do estado. Não é surpresa que, nesse cenário, grileiros e fazendeiros tenham enorme facilidade em conseguir o título das terras, ao contrário das comunidades quilombolas, analisa Paulo.
Jair Bolsonaro nunca escondeu sua real intenção em relação aos quilombos e as terras indígenas. Durante a campanha, prometeu que “não demarcaria um centímetro de terra” para essas comunidades. E cumpriu. No primeiro ano de gestão, o reconhecimento de comunidades quilombolas caiu 91%. Questionado pela Mongabay, o Incra afirmou que “não recebeu do governo Bolsonaro determinação para suspender ou interromper a regularização de territórios quilombolas”.
Mas os fatos mostram o contrário. Uma das primeiras medidas do atual presidente foi interferir no Incra e tentar interromper a reforma agrária em todo o Brasil. Os quilombos também convivem com a violência e o racismo contra as comunidades, que aumentou nos últimos anos, de acordo com a Coordenação Nacional das Comunidades Quilombolas (Conaq).
No meio da pandemia de coronavírus, os quilombos também estão mais expostos. Com 5 milhões de idosos espalhados pelas comunidades do Brasil, 63 casos confirmados e 18 óbitos, as ações do poder público não chegam. Lideranças da Conaq se reuniram com representantes do Ministério Público Federal para tentar uma solução.
Na comunidade do Baião, a situação é a mesma. Em isolamento voluntário e sem estrutura de saúde local, as pessoas tentam se proteger como podem. Muitos ainda não conseguiram acessar o auxílio emergencial de R$ 600 prometido pelo governo. O Tocantins, até o momento, registra 747 casos e 12 mortes por covid-19.
Para Maryellen Crisóstomo, embora viver sob as condições do governo Bolsonaro seja uma experiência nova, a luta é antiga. Enquanto nos despedimos dos moradores do Baião e dirigimos de volta para a cidade de Almas, já com o sol se pondo no horizonte, Maryellen conclui: “O Brasil nunca foi pensado para quilombolas. A nossa história é de resistência, organização e sobrevivência. E as pessoas reconhecerem que os quilombos existem é um primeiro passo nessa luta”.
Imagem do banner: Moradora da comunidade quilombola de Baião. Foto: Sarah Sax.
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