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Justiça concede a indígenas Kinja direito de resposta inédito contra Bolsonaro

Terra indígena Waimiri-Atroari, onde os indígenas Kinja vivem em Roraima. A justiça federal determinou que sites oficiais do governo publiquem uma carta do povo indígena Kinja por 30 dias, como parte de seu direito de resposta à retórica racista do governo do presidente Jair Bolsonaro. Foto: Maiká Schwade / CPT Amazonas

Terra indígena Waimiri-Atroari, onde os indígenas Kinja vivem em Roraima. A justiça federal determinou que sites oficiais do governo publiquem uma carta do povo indígena Kinja por 30 dias, como parte de seu direito de resposta à retórica racista do governo do presidente Jair Bolsonaro. Foto: Maiká Schwade / CPT Amazonas

  • A Justiça Federal determinou que sites do governo publiquem uma carta do povo indígena Kinja por 30 dias como parte de seu direito de resposta à retórica racista do governo do presidente Jair Bolsonaro.

  • A decisão, emitida em 30 de março, é o resultado de uma série de declarações ofensivas de representantes do governo sobre a resistência do grupo indígena ao plano de construção de uma linha de transmissão de energia elétrica de 720 quilômetros que atravessará a Terra Indígena Waimiri-Atroari na floresta amazônica.

  • A decisão também determina que o governo brasileiro deve desenvolver um programa de combate à discriminação indígena e dissuadir, formalmente, todas as autoridades de incitar ou promover a discriminação racial.

  • Em comunicado, a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) questionou a competência da Justiça Federal para proferir uma decisão que envolve a Presidência da República e informou que vai recorrer da decisão.

Um tribunal brasileiro concedeu ao povo indígena Kinja um direito de resposta inédito a uma acusação racista, uma medida que especialistas em direito afirmam que poderia virar o jogo diante da crescente discriminação por parte do governo do presidente Jair Bolsonaro.

Em sua decisão, a juíza federal substituta Raffaela Cássia de Sousa, da 3ª Vara Federal de Manaus, determinou que sites oficiais do governo publiquem uma carta do povo indígena Kinja (também chamados Waimiri-Atroari) por 30 dias, entre outras medidas.

A decisão, emitida em 30 de março, é o resultado de uma série de declarações ofensivas de representantes do governo sobre a resistência do grupo indígena ao plano de construção de uma linha de transmissão de energia elétrica de 720 quilômetros que atravessará a Terra Indígena Waimiri-Atroari na floresta amazônica.

“Seria um momento inédito o espaço de resposta dentro da página da Presidência da República”, disse Jonas Fontelle, advogado da Associação das Comunidades Wairimi-Atroari . “Eles querem ser ouvidos.”

Povo indígena Kinja durante uma cerimônia na reserva Waimiri-Atroari em 2019 | Bruno Kelly/Amazônia Real.
Povo indígena Kinja durante uma cerimônia na reserva Waimiri-Atroari em 2019 | Bruno Kelly/Amazônia Real.

Em janeiro, Bolsonaro disse que os indígenas eram responsáveis pela paralisia do projeto: “A gente não consegue fazer o Linhão de Tucuruí, não consegue fazer porque (há) achaque de ONG, índio que quer dinheiro, tudo contra, e está lá o povo de Roraima sofrendo”, disse a jornalistas. Em abril de 2019, Bolsonaro disse a um canal de televisão local: “estamos com problema indígena ainda”, acrescentando que a linha de transmissão seria construída “independente da manifestação dos índios”.

Outras alegações de Bolsonaro atacam de maneira mais ampla os povos indígenas. O estilo de vida indígena tradicional, declarou ele no ano passado, era semelhante ao de “homens pré-históricos”. Em uma recente transmissão ao vivo no Facebook, ele disse: “Cada vez mais, o índio é um ser humano igual a nós”.

A decisão ocorre um mês depois que o deputado estadual de Roraima, Jeferson Alves, usou uma serra elétrica para destruir um bloqueio legal controlado pelos Kinja, dedicando o ato a Bolsonaro, o que é considerado uma consequência dos comentários do presidente.

Os ataques aos povos indígenas dispararam desde que Bolsonaro tomou posse no início de 2019, com um número recorde de assassinatos de líderes indígenas naquele ano.

“Essa decisão é muito importante porque ela reconhece a forma e o tom e o conteúdo discriminatório e ofensivo aos povos indígenas e especialmente ao povo Waimiri-Atroari”, disse Julio Araújo, um dos procuradores de Justiça federais responsáveis pelo caso. “Desde 2019, [Bolsonaro]compila falas, tuítes e abordagens que partem de uma premissa que não é autorizada pela Constituição, não é autorizado pela ordem jurídica… [de que]certos modos de vida que são superiores em detrimento de outros.”

A decisão de Sousa também determina que o governo brasileiro deve desenvolver um programa de combate à discriminação indígena e dissuadir, formalmente, todas as autoridades de incitar ou promover a discriminação racial.

O histórico de Bolsonaro sobre direitos indígenas levanta preocupações em todo o mundo. Em março, ONGs denunciaram Bolsonaro à Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas por promover o genocídio indígena. Pela mesma razão, um grupo de advogados e ativistas de direitos humanos pediu que ele seja indiciado no Tribunal Penal Internacional em novembro de 2019.

Batalha legal

Esse processo judicial, no entanto, pode durar anos no sistema judiciário brasileiro, pois um recurso já está em andamento.

Em comunicado enviado por e-mail, a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) disse: “A Procuradoria Federal Especializada junto à FUNAI pretende recorrer da decisão judicial prolatada pela Juíza Substituta da 3ª Vara Federal do Amazonas, seja pela flagrante usurpação de competência do STF em analisar direito de resposta a partir de fala presidencial, seja por confundir liberdade constitucional de expressão, reveladora de preocupação presidencial com certa política pública, com ofensas e discriminação a indígenas.”

Em julho de 2019, Bolsonaro nomeou um delegado da Polícia Federal e ex-consultor político da bancada ruralista como chefe da FUNAI. Críticos denunciaram a medida como parte de um plano mais amplo de colocar a decisão de questões indígenas nas mãos do lobby do agronegócio.

O deputado estadual Jeferson Alves usa uma serra elétrica para cortar uma corrente na Reserva Indígena Waimiri-Atroari | Imagem reproduzida do perfil do Facebook de Jeferson Alves/ Amazônia Real
O deputado estadual Jeferson Alves usa uma serra elétrica para cortar uma corrente na Reserva Indígena Waimiri-Atroari | Imagem reproduzida do perfil do Facebook de Jeferson Alves/ Amazônia Real

Como a recente decisão judicial envolve o governo federal, não o presidente pessoalmente, não é uma questão exclusiva do Supremo Tribunal Federal, diz Juliana Batista, advogada do Instituto Socioambiental (ISA), uma ONG que defende os direitos indígenas. “Traz um limite às autoridades públicas que têm incentivado atos discriminatórios, colocando os indígenas como um empecilho para o desenvolvimento.”

A FUNAI disse que pretende apelar da decisão com a ajuda da Advocacia-Geral da União (AGU). Em comunicado, a AGU disse que está analisando as medidas legais apropriadas; o governo federal não respondeu aos pedidos de resposta.

Apesar da longa batalha pela frente, Rafael Modesto, consultor jurídico do Conselho indigenista Missionário (CIMI), considerou a decisão “um precedente fantástico, uma inovação no âmbito jurídico para os povos indígenas poderem responder às agressões”.

A construção da linha de transmissão visa conectar o estado de Roraima ao Sistema Interligado Nacional (SIN) para que o Brasil interrompa as importações de energia da Venezuela, declarada inimiga do governo Bolsonaro.

As autoridades classificaram o projeto como uma questão de segurança nacional, à medida que aumentam as tensões com a Venezuela, e estão tentando burlar os protocolos que garantem o respeito aos direitos indígenas.

O líder Kinja Tuwadja Joanico, que se reuniu com líderes indígenas no Congresso Nacional no mês passado, disse que seu povo precisa ser consultado, pois um quinto da linha de transmissão passaria dentro da terra indígena, que foi formalmente demarcada em 1989. “[Queremos] falar do nosso direito, do povo Waimiri-Atroari, e mostrar o que é a nossa preocupação com a nossa terra”, disse em uma entrevista, acrescentando que os indígenas não se opõem à construção da linha de transmissão.

Imagem do banner: Terra indígena Waimiri-Atroari, onde os indígenas Kinja vivem em Roraima. A justiça federal determinou que sites oficiais do governo publiquem uma carta do povo indígena Kinja por 30 dias, como parte de seu direito de resposta à retórica racista do governo do presidente Jair Bolsonaro. Foto: Maiká Schwade / CPT Amazonas.

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