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Francisco Piyãko, líder Ashaninka: “Temos a responsabilidade de continuar defendendo aquilo que é mais sagrado para nós, nosso território protegido”

  • Em entrevista exclusiva à Mongabay, o líder dos Ashaninka relembra os anos de exploração de seu território por parte das madeireiras e comenta o acordo judicial inédito que assegurou indenização e pedido de desculpas.

  • “Não adianta só pedir desculpas aos Ashaninka de maneira isolada, esse pedido repercute de uma maneira maior”, diz Piyãko. “É uma forma de orientar e educar aquelas empresas que têm na exploração de madeira uma atividade, um meio de vida, e que tem que aprender que os direitos dos povos indígenas precisam ser respeitados.”

Francisco Piyãko tinha 13 anos em 1981, quando os madeireiros invadiram o território Ashaninka, na época ainda não reconhecido pelo Estado brasileiro. Guardou na memória as cenas de várias curvas do Rio Amônia, que dá nome à Terra Indígena, tomadas por árvores tombadas.

“O nosso trabalho de tirar madeira era artesanal, levava um ano para tirar três árvores. Eles, em uma semana, acumulavam uma produção que a gente não via em vinte anos. Era muito assustador”, recorda.

Filho mais velho da principal liderança Ashaninka na época, herdou do pai a responsabilidade de liderar seu povo. Sua atuação na comunidade lhe deu projeção política: foi Secretário Estadual dos Povos Indígenas do Acre e assessor da presidência da Funai. Nas eleições de 2018, concorreu a deputado federal pelo PSOL, mas não se elegeu. 

Agora, participou ativamente da negociação do acordo de indenização celebrado em abril, que comenta nesta entrevista à  Mongabay àquando Piyãko já estava de volta à sua comunidade, depois de passar por uma quarentena no retorno de Brasília.

Na conversa, ele explica a importância do acordo com os madeireiros para seu povo e avança, afirmando que é um momento histórico também na perspectiva dos direitos de todos povos indígenas: “Para nós, o que vale é o que o acordo representa para a causa Ashaninka e como isso pode repercutir para afirmar os direitos e valores dos povos indígenas em uma questão mais ampla”.

Mongabay: O senhor acompanhou o que ocorreu nos anos 80, com a entrada dos madeireiros na terra indígena? Lembra como foi?

Francisco Piyãko: Eu nasci em 1968. Na década de 80, já era pessoa grande, estava na frente de trabalho junto com meus pais, acompanhando a luta do nosso povo. Sendo o filho mais velho da liderança principal do nosso povo, eu já tinha clara a responsabilidade de saber o que estava acontecendo.

[Naquela época], a terra estava na mão do sistema capitalista. [Os donos] exploravam a região e decidiam quais produtos deveriam ser retirados: carne de caça, tracajás [uma tartaruga amazônica], madeiras, a borracha… Todo mundo seguia uma lógica de patrão e empregado e os indígenas, mesmo sem necessidade de produzir tanto, tinham que produzir porque era uma exigência de quem era dono dessa região. Não tinha muita opção: quem não quisesse, não se enquadrasse, não tivesse disposição para produzir, tinha que fugir para abrir espaço para outros.

Vocês presenciaram o desmatamento?

Lembro muito bem que a gente ouvia o barulho. Eu não estava diretamente no serviço, mas ouvia o barulho, sabia a região por onde os madeireiros estavam entrando, onde eram os acampamentos. A gente sentia uma destruição grande: via as madeiras em cima dos caminhões, os pátios cheios de madeira.

Eu tenho isso muito claro na minha memória, quando eles formavam um pátio e concentravam as madeiras todas [nesse lugar]. Em coisa de uma semana, você via um estoque de madeira que nunca imaginava na vida que era capaz de juntar.

O nosso trabalho de tirar madeira era artesanal, braçal. Levava um ano, dois anos para tirar três, quatro árvores e entregar pros patrões. E aquele sistema delesacumulava uma produção em uma semana que a gente não via em vinte anos, porque eles traziam uma árvore inteira para a beira do rio, puxada pelos tratores, pelos caminhões.

Como se sentiam diante disso?

É muito forte essa imagem, ver o rio lotado de madeira, as árvores empilhadas virando duas, três curvas do rio. E é muito assustador. A gente ficava imaginando que não tinha ninguém aqui na terra que tivesse força para resistir, para enfrentar um sistema desses. A gente se via muito pequeno diante da monstruosidade que era aquela pressão.

Essas árvores derrubadas eram valiosas para os Ashaninka?

A gente tem um entendimento de que essa exploração mexeu com outras espécies que tem valor para o nosso povo, além do mogno e do cedro. Como a cerejeira. A gente via que os madeireiros estavam buscando algumas [árvores específicas], mas a maneira de explorar mexia com as outras. Quando eles abriam um caminho para chegar até a espécie que queriam tirar, tombavam muitas outras.

Para nós, elas não tinham valor comercial, o valor era que elas estavam vivas e faziam parte de um conjunto, de uma cadeia. O valor não se define só por que a árvore tem um preço de mercado. Mas porque, para levar essas espécies, eles derrubavam outras centenas de árvores que estavam entre uma e outra e isso foi impactante para nós. Por ela ser visada, atrair os madeireiros, com ela iam muitas outras árvores de valor para nossa cultura e nossa tradição.

Além do desmatamento, os madeireiros trouxeram outros problemas para o povo Ashaninka?

Sim. Doenças e enfraquecimento da estrutura social, [nos] colocando [em] conflito. E também muita bebedeira e prostituição.

Porque o pedido de desculpas era uma parte tão importante para os indígenas nesse acordo?

O pedido formal [de desculpas] muda a repercussão de um processo como esse nosso. Ele deixa de ser isolado, só do povo Ashaninka, e vira mais amplo, nacional e até internacional. Acho que muitas comunidades [indígenas] têm que se ver dentro desse reconhecimento, porque tem coisas que não é o dinheiro que paga.

A nossa intenção é que esse pedido de desculpas seja o reconhecimento de um erro cometido e [uma promessa de] que, a partir daí, isso não vai se repetir mais por essa empresa. E que isso sirva de referência para outras empresas, porque existe uma legislação, existem direitos que precisam ser conhecidos e respeitados.

Acha que o pedido de desculpas pode ser educativo?

Eu acredito que o pedido de desculpas por esse dano causado ao povo Ashaninka vai refletir de uma maneira mais ampla, no sentido de educar, orientar – inclusive os madeireiros – para que sigam a legislação ambiental brasileira, respeitem as unidades de conservação, os povos indígenas. Não adianta só pedir desculpas aos Ashaninka de maneira isolada, esse pedido repercute de uma maneira maior. É uma forma de orientar e educar aquelas empresas que têm na exploração de madeira uma atividade, um meio de vida, e que tem que aprender que os direitos dos povos indígenas precisam ser respeitados.

Foi difícil chegar a um bom entendimento no acordo?

A gente só aceitou esse acordo porque ele foi [feito] pela via legal. Não é uma coisa entre os Cameli e o povo Ashaninka, ele tem segurança jurídica. Antes teve outras tentativas e foram feitas propostas absurdas ao nosso povo, pedindo que a gente assinasse um documento dizendo que a gente estava encerrando um caso em troca de uma fazenda de gado, um comércio, mercadorias. Nós não aceitamos isso, eles entenderam e levaram a sério o nosso não.

Agora, aceitamos dentro dessas condições que foram feitas, no âmbito das instituições competentes. Era esse o caminho que sempre acreditamos, para não parecer que estaríamos negociando por interesses isolados ou pessoais de alguma liderança. Porque, para nós, o que vale é o que [esse acordo] representa para a causa Ashaninka, e como isso pode repercutir para afirmar os direitos e valores dos povos indígenas em uma visão mais ampla.

Vocês já têm projetos onde investir o dinheiro da indenização?

A gente fica muito triste quando as pessoas, ou um jornalista, ficam dizendo que agora os Ashaninka são índios milionários. Para nós, o dinheiro tem um lugar na nossa vida: ele não é, nunca vai estar acima de outros valores. Nós somos um povo guerreiro, lutamos pela terra e conseguimos; lutamos por essa indenização e conseguimos. A gente tem uma responsabilidade de continuar defendendo aquilo que é mais sagrado para nós, que é nosso território protegido, com condições  de garantir a nossa reprodução física e de conhecimento. Por isso, a gente não negociou fora desse conceito. O dinheiro para nós é um meio para nos fortalecer, para crescer e ter mais resistência, mais força para defender aquilo que é a nossa história.

Como o dinheiro ajuda a fortalecer a resistência?

Nosso povo tem muito claro que esse dinheiro não vai empobrecer nosso conhecimento [e nem] distanciar nosso povo das tradições, dos valores. Pelo contrário, vai fortalecer os nossos projetos. A gente vai ter mais autonomia, vamos trabalhar para que nossas relações e parcerias continuem. A nossa experiência, o tempo de vida nosso, nossas relações e andanças pelo mundo inteiro já mostraram que tem casos que receberam indenização e depois de um tempo [acabou].

Nós não corremos risco de entrar por uma situação dessas, porque temos história, projetos, causas. Nossos recursos vão ser direcionados a manter e trazer de volta os nossos valores. Vamos estar articulando para que essa região seja cada vez mais respeitada e valorizada, colocando seus produtos no mercado com valor agregado, que vão servir também para ter uma relação de troca, para garantir a sustentabilidade. Isso é o que vamos fazer: não vamos parar.

Leia aqui a matéria sobre o acordo de indenização. 

Imagem do banner: Arison Jardim/Associação Ashaninka do Rio Amônia.

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