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Desmatamento zero: modelo sustentável inova a criação de gado na Amazônia

  • Um criador de Tefé, no Amazonas, fez de sua fazenda uma referência para a pecuária na floresta, em uma iniciativa do Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá. Além da rentabilidade maior, o sistema é mais produtivo, mesmo usando uma área menor de pastagem.

  • No sistema PRV, idealizado pelo pesquisador francês André Voisin, o gado fica confinado se alimentando em parcelas cercadas. Depois de consumir aquela pastagem, as cabeças são movidas para a próxima parcela – enquanto isso, o solo e a vegetação da primeira se recuperam.

  • Essa forma de criação dispensa a necessidade de que novas áreas de floresta sejam derrubadas para a abertura de pastos. Uma das mais importantes atividades da economia brasileira, a pecuária tem uma imagem ligada ao desmatamento na Amazônia.

  • Aproveitar áreas já degradadas e abandonadas é uma das soluções apontadas para a criação de gado na floresta. Um estudo publicado pela revista Science em 2019 mostra que o Brasil tem 50 milhões de hectares nessas condições disponíveis para a pecuária.

Criador de gado no Médio Solimões há quase 30 anos, Otacílio Soares Brito adotou o sistema de Pastoreio Racional Voisin (PRV). Sua fazenda Ágda tornou-se uma referência para criadores da região. Foto: Amanda Lelis.

Nos anos 90, Otacílio Soares Brito comprou uma área de 100 hectares na Amazônia, no Médio Solimões. Criar gado era um sonho de infância moldado pela falta de leite na região. Brito acomodou as suas 35 cabeças na área e tudo corria bem. Até que, em 2015, o jogo virou. Os animais começaram a morrer e o diagnóstico veio rápido: o pasto estava empobrecido de nutrientes, culpa do tempo e do mau uso do solo, uma situação comum no modelo da pecuária extensiva.

O pecuarista precisava pensar em alternativas – abrir e desmatar novas áreas não fazia parte dos seus planos. Era necessário encontrar uma forma sustentável de criação, que aliasse produtividade e respeito à floresta.

A agropecuária é uma das atividades mais importantes para a economia brasileira, tanto para abastecimento interno quanto pelas exportações. A criação de gado na Amazônia, contudo, está quase sempre atrelada ao desflorestamento ilegal.

Estudos apontam que até 80% do problema são atribuídos ao ciclo que envolve a derrubada de árvores, depois a queima do terreno e a inclusão de bois. Quase tudo ilegal. Áreas ocupadas e já degradadas – empobrecidas e sem serventia para pasto – costumam ser abandonadas e novos terrenos são ocupados. E o ciclo se repete.

Não precisa ser sempre assim. “O gado não é o vilão. A forma de produção é que pode ser maléfica ou não”, explica a engenheira agrônoma Jerusa Cariaga, do Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá, uma organização social que utiliza a ciência e a tecnologia a favor da sustentabilidade. Em dezembro de 2019, o Sistema de Alerta do Desmatamento, do Imazon (Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia) detectou 227 quilômetros quadrados de desmatamento na Amazônia Legal.

Aproveitar áreas já degradadas e abandonadas é uma das soluções apontadas para a criação de gado na floresta. Um estudo publicado pela revista Science em 2019 mostra que o Brasil tem 50 milhões de hectares nessas condições, uma área imensa que poderia perfeitamente ser regenerada para a agropecuária. Recuperar o pasto: estava aí a chave para Brito. Como fazer, ele não sabia, mas tinha consciência de que seria necessário quebrar paradigmas se quisesse se tornar um criador sustentável.

Os rebanhos brasileiros crescem à medida que a pecuária se firma como atividade fundamental para os números da economia do país. Foto: Leo Lopes.

Maior produtividade, mesmo em áreas menores

Ao pedir ajuda, Brito foi socorrido pelo Instituto Mamirauá, que já estudava implantar a técnica do sistema de Pastoreio Racional Voisin (PRV) junto aos criadores da Reserva de Desenvolvimento Sustentável Amanã, em Tefé, no Amazonas. Ali, as comunidades ribeirinhas criam bois e cultivam vegetais.

No sistema PRV, idealizado pelo pesquisador francês André Voisin, o gado fica confinado em parcelas cercadas para pastar e, depois de consumir aquela pastagem, é movido para a próxima parcela, enquanto o solo e a vegetação da primeira se recuperam. Essa forma de criação dispensa a necessidade de que novas áreas de floresta sejam derrubadas para servir de pasto. Além de rentável, o processo é sustentável e a produtividade é maior, mesmo usando uma área menor.

Brito foi convidado pelo instituto não só a implantar o sistema de manejo de gado, mas também a transformar sua área, a fazenda Ágda, em uma unidade demonstrativa para que demais criadores pudessem aprender e se inspirar. Além de uma mudança de pensamento, foi preciso investimento, acompanhamento técnico e disposição.

“O que a gente conhecia de técnica era criação extensiva, que em curto prazo exaure o solo e obriga o criador a abrir outras áreas, trazendo grande impacto ambiental. Com a tecnologia do Pastoreio Racional Voisin, os bezerros começaram a nascer novamente”, diz Brito.

No PRV, segundo especialistas ouvidos pela Mongabay, o comportamento do gado muda porque se antes ele precisava ir atrás do alimento – o que amplia a possibilidade de assoreamento dos rios –, comida e água agora ficam disponíveis em cada cercado, o que também diminui a energia gasta pelo animal. “Muda o princípio filosófico da criação”, diz Brito. “Isso facilita e é melhor para todo mundo. O consumidor vai comer uma carne de primeira, sem agrotóxico, com manejo correto.”

O gado da Amanã é importante para os criadores porque a produção tem alta liquidez, ou seja, é vendida rapidamente e durante todo o ano, diferentemente de recursos nativos e sazonais, como o pescado ou a castanha-do-brasil. “Serve como uma poupança, uma segurança para as famílias caso surjam emergências e eventualidades”, afirma Paula Araújo, veterinária do Programa de Manejo de Agroecossistemas do Instituto Mamirauá. Longe dos centros urbanos, as comunidades dependem da caça e da pesca para sobreviver e, nesse contexto, o gado torna-se uma opção a mais de fonte de proteína.

“A gente não está falando em aumentar a escala ou em incentivar a produção. O que a gente quer é que, dentro dessa escala de produção, eles consigam ter maior eficiência produtiva sem pressionar a floresta, sem ter que aumentar a área de pastagem. Trabalhar com aquilo que já tem, mas com mais eficiência”, diz Araújo.

A criação de gado tem história antiga na região. Grande parte das comunidades ribeirinhas do Médio Solimões foram formadas a partir de famílias advindas de outras partes do Norte depois do fim do ciclo da borracha. Esses mgirantes trouxeram também cabeças de gado. “Provavelmente imaginavam que as opções de proteína na região não seriam muitas”, diz Jerusa Cariaga.

Segundo Paulo Barreto, pesquisador sênior do Imazon (Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia), para os sistemas de criação que envolvem o pasto rotativo terem resultado positivo e as expectativas não terminarem em frustração, três fatores são fundamentais: investimento, capacitação e acompanhamento. Uma dica de Barreto é começar pequeno, com 5% da área para aprender e para analisar a viabilidade financeira, que tem a ver com quão degradado está o solo.

No sistema PRV, o gado esgota uma área de pastagem e é transferido para outra, enquanto a primeira se recupera. Foto: Amanda Lelis.

O desafio: criar em uma área naturalmente sensível

Atualmente, a reserva Amanã conta com cerca de 600 cabeças de gado, entre bois e búfalos, criados por cerca de 25 famílias. Três delas iniciaram o processo de criação pelo sistema PRV. A região é uma área de várzea e, portanto, altamente suscetível às chuvas e secas amazônicas.

Com grandes custos de produção e dificuldades logísticas para escoamento do produto, são poucas as famílias que encaram o desafio de criar gado em uma região cujo terreno oscila entre florestas de terra firme e várzea, limitações impostas pelo próprio ambiente. “As áreas inundáveis servem como limitador natural para a expansão de áreas de pastagem em um nível que possa causar desequilíbrio no ecossistema”, explica a veterinária Paula Araújo.

Funciona assim: na estação seca, quando o nível dos rios locais desce drasticamente, grandes porções de vegetação surgem onde antes havia apenas água. Esses “campos da natureza”, como são chamados ali, muito ricos em nutrientes, são facilmente aproveitados por criadores para a alimentação do gado.

A história é outra quando os rios estão cheios e pouca terra sobra acima da água. O gado, então, tem de ser movido para os “campos de terra firme”, espaços limitados que, sem o manejo adequado, tendem à rápida degradação do solo e à escassa disponibilidade de nutrientes para os animais.

Parte da área degradada de Brito, com o sistema PRV, já voltou a ser floresta e a produtividade, ele afirma, aumentou. E melhorar a produtividade, no caso da Amazônia, é sair da média de 1,26 cabeça por hectare para até três cabeças. De acordo com os dados do Censo Agropecuário 2017, 98% dos municípios da Amazônia (694 de 772) têm taxa de lotação igual ou inferior a 1,9 cabeça por hectare. E dentre esses, 70% têm taxa igual ou inferior a 1,26 cabeça por hectare.

“Acredito que o homem só tem capacidade de preservar o meio ambiente quando atinge a consciência da importância dele para todos os seres vivos. Com isso, ele coloca de lado a ganância e começa a agir pela luz da razão e da ciência para que possa desenvolver a sua atividade com menos impacto ambiental”, comenta Brito.

Imagem do banner: Leo Lopes.

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