Cientistas alertam que a próxima epidemia poderá ter origem na Amazônia brasileira se as políticas do governo Bolsonaro continuarem levando a floresta a índices cada vez mais altos de desmatamento. É consenso na ciência que novas doenças costumam surgir nas áreas de contato entre a floresta e frentes de expansão econômica, como o agronegócio e a mineração.
Uma das formas pela qual o desmatamento leva à emergência de novas doenças é por meio do fogo, como os incêndios que ocorreram na Amazônia em 2019. Após as queimadas na floresta, o habitat alterado em geral oferece menos alimento, levando os animais a procurar comida em comunidades humanas vizinhas, criando vetores de bactérias, vírus e parasitas zoonóticos (transmissíveis de um animal a um ser humano).
Um exemplo de catástrofe ambiental que provocou surto de doença foi o rompimento da barragem de mineração em Mariana em 2015. Cientistas acreditam que um grande aumento nos casos de febre amarela em Minas Gerais nos anos seguintes foi devido em parte ao desastre.
Já se sabe que perturbações severas no meio ambiente contribuem para a expansão de doenças como a malária. Estudo da Universidade de Stanford (EUA) detectou que o aumento de 10% no desmatamento levou a um crescimento de 3,3% na transmissão da malária.
O rápido avanço do desmatamento na Amazônia está criando condições para o surgimento de futuras pandemias, dizem especialistas.
É consenso na ciência que a perda de área de uma floresta pode levar à emergência de novos vírus e bactérias perigosos contra os quais a humanidade tem pouca defesa, levando a epidemias e pandemias.
“Vertebrados silvestres, especialmente roedores, morcegos e primatas, abrigam patógenos que são novos para o sistema imunológico humano. Se desmatarmos seu habitat e nos colocarmos em contato próximo com eles, podemos aumentar o risco de haver uma contaminação, introduzindo um novo patógeno”, diz Andy MacDonald, ecólogo especializado em doenças do Instituto de Geociências da Universidade da Califórnia.
Segundo Kate Jones, chefe de Ecologia e Biodiversidade da Universidade de Londres, cientistas sabem há muito tempo que doenças infecciosas originadas em animais são “uma ameaça cada vez maior e muito significativa à saúde, à segurança e à economia globais.” Em 2008, ela fez parte de uma equipe de pesquisa que revelou que pelo menos 60% das 335 novas doenças que emergiram entre 1960 e 2004 tiveram como origem animais silvestres.
Uma das principais causas dessa transferência de doenças é a destruição do habitat – sobretudo nas florestas tropicais.
“Não estou nem um pouco surpreso com o surto de coronavírus”, disse o ecólogo de doenças Tomas Gillespie, professor associado da Departamento de Ciências Ambientais da Universidade Emory, à revista Scientific American. “A maioria dos patógenos ainda estão para serem descobertos. Estamos bem na ponta do iceberg.”
John Scott, chefe de Risco à Sustentabilidade do Zurich Insurance Group, referindo-se ao ebola, Sars, Mers e outras epidemias recentes, oferece uma mensagem semelhante: “Os últimos 20 anos de surtos de doenças podem ser vistos como uma série de catástrofes por pouco evitadas, o que levou à complacência em vez de levar a um aumento da vigilância necessária para controlar surtos.”
Incêndios florestais são grandes detonadores de novas doenças
“Aproximadamente, um entre três surtos de novas doenças está ligado a mudanças no uso da terra, como o desmatamento”, explica Peter Daszak, presidente da EcoHealth Alliance, organização sem fins lucrativos baseada em Nova York. Daszak foi o autor principal de um estudo intitulado “Emergência de doenças infecciosas e economia de paisagens alteradas” (em tradução livre), publicado no ano passado.
O artigo observa que “moléstias ligadas à mudança no uso da terra incluem doenças letais como o HIV/Aids, ebola e o zika.” Pesquisas preliminares indicam que podemos provavelmente acrescentar a essa lista a covid-19, causada pelo novo coronavírus.
Uma forma pela qual o desmatamento leva à emergência de novas doenças é pelo fogo.
Em meados de agosto de 2019, um grupo de especialistas internacionais em zoonoses (ou seja, doenças transmitidas de animais para humanos) encontrou-se na Colômbia para analisar o impacto dos incêndios florestais em curso na Amazônia.
Em sua declaração, eles alertaram: “A região Amazônica do Brasil, endêmica para muitas doenças infecciosas e zoonoses, pode, depois de incêndios florestais, desencadear uma seleção pela sobrevivência e, com isso, mudar o habitat e os comportamentos de algumas espécies de animais. Estas podem ser reservatórios de bactérias, vírus e parasitas zoonóticos.”
O cenário de incêndios florestais já aconteceu em outros lugares. Em 1988, queimadas de grande proporção na Indonésia criaram as condições necessárias para a emergência do vírus Nipah, que tem uma taxa de mortalidade entre 40% e 70%.
Pesquisadores acreditam que os incêndios fizeram com que morcegos frugívoros fugissem de seus lares na floresta, buscando alimento em pomares. Os porcos, então, comeram as frutas que os morcegos beliscaram, infectando-se com o vírus, e por fim transmitindo a doença aos moradores locais, que começaram a morrer de hemorragias no cérebro.
Um efeito do desastre de Mariana: surto de febre amarela
O Brasil também tem exemplos recentes de desastres ambientais causando surtos de doença. Um desses episódios foi o rompimento da barragem de mineração em Mariana, Minas Gerais, em 2015, que matou 19 pessoas e causou uma avalanche de 62,3 milhões de metros cúbicos de lama e rejeitos de mineração sobre o Rio Doce.
A bióloga Márcia Chame, da Fiocruz, acredita que o grande aumento nos casos de febre amarela em Minas Gerais em 2016 e 2017 foi em parte resultado do desastre. Na ocasião, o governo estadual decretou estado de emergência.
Chame argumenta que o rompimento da barragem afetou severamente os animais na bacia circundante, tornando-os menos resistentes à doença.
“Uma mudança abrupta no ambiente tem um impacto sobre os animais, inclusive nos macacos. Com o estresse do desastre e a falta de alimento, eles se tornam mais suscetíveis a doenças, entre elas a febre amarela”, relata Chame.
Segundo a pesquisadora, muitos macacos na bacia do Rio Doce adoeceram de febre amarela. Esses macacos foram picados por mosquitos, que depois picaram os seres humanos, levando a doença às cidades da região.
De acordo com ela, os mosquitos – especialmente o Haemagogus leucocelaenus e o H. janthinomys — foram “atraídos pelas mudanças na paisagem, com fragmentos de florestas próximos a áreas periurbanas, permitindo interação suficiente [entre macacos, mosquitos e pessoas] para produzir a epidemia.”
Quase 10 mil casos de malária decorrentes do desmatamento
Processos similares podem estar acontecendo na Amazônia, embora em sua maior parte sem exame e detecção. Um estudo publicado no ano passado, intitulado “Desenvolvimento, degradação ambiental e disseminação de doenças na Amazônia Brasileira” (em tradução livre), concluiu que “pouquíssima atenção tem sido dada à emergência e reemergência de doenças transmitidas por vetores que impactam diretamente a população local, com efeitos de disseminação para outras áreas vizinhas.”
Já se sabe que severos danos florestais contribuem para a expansão de doenças conhecidas como a malária, diz MacDonald, da Universidade da Califórnia.
“O principal mosquito transmissor na América Latina se adapta muito bem em trechos recém-desmatados de floresta, nas margens de florestas remanescentes (onde há mais água parada para procriar, altas temperaturas que podem facilitar o desenvolvimento rápido do mosquito e do parasita da malária, bem como um aumento das taxas de picadas em humanos). Como há pessoas nesses trechos desmatados, isso pode aumentar a transmissão de malária.”
Comparando imagens de satélite e dados de saúde, MacDonald, junto com Erin Mordecai, da Universidade de Stanford, detectou que o desmatamento em toda a Bacia Amazônica ajudou a levar a um aumento significativo da incidência de malária.
A equipe de pesquisa calculou que, em 2008, um aumento de 10% no desmatamento, ou seja, cerca de 1.600 quilômetros quadrados adicionais de floresta derrubada, levou a um crescimento de 3,3% na transmissão da doença. Isso representou 9.980 casos a mais em toda a região.
Em 2019, o desmatamento na Amazônia brasileira atingiu seu nível mais alto em dez anos (9.762 quilômetros quadrados). É importante notar que, nas áreas protegidas das reservas indígenas, o desmatamento aumentou de modo ainda mais rápido, expandindo-se em 74% em 2019 durante o governo Bolsonaro, em comparação com 2018. As taxas de desmatamento na Amazônia continuam escalando em 2020.
Cura pode estar na floresta
Enquanto as taxas de desmatamento no Brasil aumentam, povos indígenas em toda a América Latina estão tentando atrair a atenção para a gravidade da crise ambiental global, que acreditam ter causado o surto da covid-19.
“O coronavírus está dizendo ao mundo o que os povos indígenas vêm dizendo há milhares de anos: se não ajudarmos a proteger a biodiversidade e a natureza, enfrentaremos ameaças como esta e ainda maiores”, disse Levi Sucre Romero, indígena da Costa Rica, numa entrevista coletiva organizada pela Covering Climate Now na cidade de Nova York em meados de março.
Outro líder indígena na reunião, Dinaman Tuxá, coordenador da Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil), ressaltou que a solução pode estar justamente na floresta: “A cura para a próxima pandemia, e até para esta, pode ser encontrada na biodiversidade de nossas terras indígenas”. “É por isso que precisamos proteger nossas terras e direitos, porque o futuro da vida depende disso.”
Imagem do banner: Fiscais do Ibama examinam uma área derrubada por madeireiras na Floresta Nacional do Jamanxim, no Pará. Foto: Ibama.
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