O desmatamento quase dobrou na Amazônia brasileira no ano passado: cresceu de 4.946 km2 em 2018 para 9.167 km2 em 2019. Especialistas sustentam que isso provavelmente se deva à crescente extração ilegal de madeira, e subsequente exportação, durante o governo do presidente Jair Bolsonaro.
Facilitando a extração ilegal de madeiras raras e valiosas, como o ipê, cujo metro cúbico pode ser vendido por até U$ 2.500 em terminais brasileiros de exportação, autoridades ambientais reverteram regulamentações que proibiam a venda para o exterior de madeiras suspeitas, tornando legal a maior parte das exportações do tipo.
Especialistas alegam que o afrouxamento de tais regulamentações protege grupos criminosos que cortam as árvores na Amazônia e blinda exportadores no Brasil e importadores estrangeiros, impedindo que eles sejam acusados de causar desmatamento via cadeias de fornecimento.
Ativistas temem que a revogação das regulamentações dê força a extrativistas ilegais, que irão aumentar invasões a terras indígenas e demais áreas protegidas. Mais de 300 pessoas foram assassinadas na última década como resultado de conflitos fundiários na Amazônia.
No final do ano passado, o ambientalista brasileiro Carlos Rittl fez uma impactante publicação no Twitter, acompanhada de um gráfico, mostrando que a degradação florestal já havia praticamente dobrado na Amazônia brasileira em 2019, primeiro ano do governo de Jair Bolsonaro.
A degradação florestal disparou a 9.167 km2 no ano passado, em comparação aos 4.946 km2 em 2018, com base em dados obtidos pelo Deter-B, o sistema de monitoramento por satélite usado pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) para detectar desmatamento quase em tempo real.
Na Amazônia e em outras regiões do Brasil, a degradação florestal frequentemente começa quando madeireiras abrem caminhos na floresta para cortar e remover madeiras valiosas. Embora a maior parte das árvores permaneça intocada, a floresta perde quase tanta biodiversidade quanto perderia se fosse totalmente desmatada. A área também se torna mais vulnerável a secas e a incêndios florestais.
Nos últimos anos, essa ação clandestina foi significativamente contida por rígidas regras do governo brasileiro contra exportações de madeiras suspeitas. O que mudou e o que causou esse súbito aumento em 2019? Foi a pergunta que Carlos Rittl se fez.
Mudanças nos regulamentos para exportação de madeira
O ambientalista teve a resposta para sua pergunta no início de março, quando a Reuters relatou que durante 2019 o Brasil exportou “milhares de cargas de madeira de um porto da Amazônia sem autorização da agência ambiental federal, aumentando o risco de que elas tenham sido extraídas de terras desmatadas ilegalmente”. Um funcionário do Ibama disse à Reuters, em condição de anonimato, que, em um porto no Pará, metade da madeira exportada no ano passado não era autorizada.
De acordo com uma reportagem publicada pelo Intercept Brasil, o escritório do Ibama no Pará tentou corrigir a revelação embaraçosa. No entanto, o escritório não intensificou seus procedimentos de monitoramento – em vez disso, relaxou as suas regras e transformou o que pareciam ser importações ilegais em envios legais ao exterior.
A reportagem revelou que, em fevereiro, Walter Mendes Magalhães Junior, policial militar paulista aposentado e nomeado em outubro superintendente do Ibama no Pará (mesmo sem nenhuma experiência em regulamentações ambientais), havia emitido licenças retroativas de exportação para cinco contêineres de madeiras supostamente ilegais que estavam detidos nos Estados Unidos, na Bélgica e na Dinamarca.
A madeira pertencia à Tradelink, uma empresa britânica que diz em seu site ter “27 anos de experiência” e descreve suas “linhas de produtos de alta qualidade”. A partir da ação de Magalhães Junior, a Tradelink resgatou cargas que somavam 795 mil reais. Em um documento escrito na época, Magalhães disse que sua ajuda à Tradelink não foi exclusiva, dado que uma “ação emergencial pode ser adotada a quaisquer empresas que estiverem em contexto semelhante”.
Quando questionado pelo Intercept Brasil, o superintendente disse que a Tradelink havia solicitado uma autorização para exportação, mas que o Ibama não havia sido capaz de lidar com o pedido no tempo correto. Ele explicou que, com “poucos funcionários”, o Ibama não conseguia responder adequadamente às “grandes demandas” enfrentadas. Como resultado, a supervisão investigativa da agência foi sumariamente ignorada.
Legalizando o desmatamento com uma canetada
As exportações irregulares de madeira não se limitam ao estado do Pará. Alexandre Saraiva, superintendente da Polícia Federal do Amazonas, soou um alarme em uma entrevista coletiva após duas operações de combate a fraudes em exportações em setembro do ano passado. Ele estimou que 90% da madeira que deixa a Amazônia Legal são extraídos de forma irregular.
Após diversos protestos no Pará, ambientalistas esperavam que Eduardo Bim, presidente do Ibama sob o governo Bolsonaro, destinasse mais funcionários para a fiscalização das exportações de madeira, a fim de garantir que infrações às regulamentações não ocorressem no futuro. No entanto, Bim reagiu de forma diferente: preferiu uma saída burocrática semelhante à adotada por Walter Magalhães.
Bim se aproveitou da desatenção da imprensa ao tema durante o Carnaval, no final de fevereiro, para revogar silenciosamente uma política de 2011 do Ibama que exigia uma autorização da agência antes que produtos florestais pudessem receber licenças para exportação. Agora, tais autorizações são exigidas apenas para espécies de árvores ameaçadas de extinção ou em outras circunstâncias especiais. Com a revogação, ficou aberto o caminho para que grandes remessas de madeira ilegal da Amazônia brasileira sigam ao exterior.
Com uma canetada, Bim garantiu que todas as futuras exportações não autorizadas de madeira, anteriormente classificadas como ilegais, se tornassem legais. Mas, apesar da manobra burocrática, continua mais alta do que nunca a possibilidade de que essa madeira agora considerada “legal” seja extraída de forma criminosa de terras indígenas ou áreas protegidas. A revisão da regra espantou alguns funcionários do Ibama. De acordo com a Reuters, Bim rejeitou a opinião de cinco especialistas do instituto.
Segundo o Intercept Brasil, Bim tomou a decisão em resposta às exigências da indústria madeireira brasileira. O Centro das Indústrias do Pará, um grupo lobista, celebrou a ação de Bim em um comunicado à imprensa, afirmando que a medida “colocou em ordem as exportações de madeira legal e autorizada do Brasil e, particularmente, da Amazônia”.
As ações de Eduardo Bim, no entanto, deixaram muitos funcionários do Ibama irritados. Um deles, que conversou com o Intercept Brasil em condição de anonimato, disse que funcionários começaram a rir quando Bim lhes disse que eles terão acesso “a posteriori” aos dados de exportação, que serão fornecidos pelas próprias empresas.
O que alguns funcionários do Ibama e ambientalistas temem é que essa manipulação nos regulamentos sirva para legalizar madeiras de origem duvidosa – protegendo assim madeireiras clandestinas na floresta e poupando o Brasil de acusações de desmatamento. Ao mesmo tempo, a medida blinda países e varejistas que recebem o produto no final da cadeia na União Europeia, no Reino Unido, nos Estados Unidos e em outras partes do mundo, impedindo que suas reputações como nações “verdes” sejam manchadas pela ligação com o desmatamento ilegal na Amazônia.
Bim foi a primeira grande nomeação anunciada em dezembro de 2018 por Ricardo Salles, que no mês seguinte se tornaria ministro do Meio Ambiente do governo de Jair Bolsonaro. Salles nunca escondeu seu alinhamento às madeireiras, mesmo quando extrativistas ilegais atacaram funcionários do Ibama. Seguindo as diretrizes do ministro, Bim dificultou que funcionários do Ibama falassem com a imprensa. E, depois das reportagens recentes da Reuters e do Intercept Brasil, ele repetiu sua exigência de que os agentes ambientais encaminhem todas as perguntas para o Departamento de Comunicação do instituto.
Para piorar, no início de abril, Ricardo Salles decidiu demitir um dos analistas ambientais que se opunham ao relaxamento das regras para a exportação de madeira: André Sócrates de Almeida Teixeira, coordenador-geral para o monitoramento do uso da biodiversidade e comércio exterior. Uma fonte do Ibama disse à Reuters que a troca de nomes no cargo tem motivo claro: é retaliação pela posição divergente.
Ameaça de violência
As novas regras do Ibama irão permitir que organizações extrativistas criminosas operem livremente na Amazônia, sem que nem mesmo precisem manter um ar de legalidade. É isso o que dizem ativistas dos direitos humanos que temem um aumento da violência no campo, à medida que as madeireiras invadam terras mantidas por comunidades indígenas e tradicionais.
No início de 2019, os ativistas Osvalinda e Daniel Pereira, que tiveram suas histórias contadas pela Mongabay, foram obrigados a deixar suas terras no assentamento de Areia, no oeste do Pará, por causa das ameaças de mortes feitas por operadores de madeireiras ilegais. “O número de caminhões transportando toras aumentou e, com isso, a pressão sobre a gente”, conta Osvalinda.
O casal vivia no centro de uma área de extração ilegal. Apenas no ano de 2017, e usando a estrada que passa pelo meio de Areia, madeireiras extraíram ilegalmente uma estimativa de 23 mil metros cúbicos de ipê, uma madeira muito valiosa, da Reserva Extrativista Riozinho do Anfrísio, de acordo com o Instituto Socioambiental (ISA). Os carregamentos foram avaliados em 208 milhões de reais.
O ipê está entre as espécies mais valiosas de árvores no mundo. Sua madeira — transformada em assoalho ou decks em lares ricos na Europa ou nos Estados Unidos — pode ser vendida por até 2.500 dólares por metro cúbico em exportadoras brasileiras. As madeireiras precisam penetrar o interior da floresta para cortar as árvores, abrindo vias que depois serão usadas por outros invasores.
Em um relatório sobre como a violência e a impunidade impulsionam o desmatamento na Amazônia brasileira, a Human Rights Watch analisou 28 assassinatos e 40 casos de ameaças de mortes na região, fornecendo fortes evidências de que criminosos veem ativistas e movimentos de resistência como obstáculos à extração ilegal. A HRW concluiu que uma das razões para o fracasso das autoridades na contenção da violência é o recente enfraquecimento da fiscalização de delitos ambientais.
Um indicativo desse enfraquecimento é a queda no número de multas impostas pelo Ibama por crimes do tipo. Em 2019, o número de multas ambientais caiu 34%: 9.745, o menor nível em 24 anos. O valor das multas caiu ainda mais, 43%, num total de 2,9 bilhões de reais. É o menor nível de multas desde 1995, quando o Brasil exibia recordes de desmatamento na Amazônia. Se o passado servir de indicativo, as multas seguirão sem serem coletadas – e serão eventualmente perdoadas.
Enquanto isso, durante a última década, mais de 300 pessoas, muitas delas ativistas e líderes de comunidades, foram assassinadas como resultado direto de conflitos por terras e recursos naturais na Amazônia, de acordo com a Comissão Pastoral da Terra (CPT).
Habitantes da floresta, em meio ao conflito brutal e com frequência longe do alcance da lei, se preocupam que o afrouxamento das regras para exportação de madeira por parte do governo Bolsonaro vai deixá-los à mercê de organizações criminosas mais poderosas.
Para Osvalinda, a tragédia humana poderá acompanhar os níveis recordes de degradação florestal do ano passado. “Com tantos indicativos de impunidade crescente”, diz ela, “só consigo pensar com tristeza que o próximo recorde a ser quebrado será o de número de mortes no campo”.
Imagem do banner: Operação de agentes do Ibama — conduzida antes do governo Bolsonaro — apreende madeira extraída ilegalmente em reserva indígena na Amazônia. Foto: Ibama.