Em janeiro, líderes indígenas de 47 povos participaram de um evento histórico em uma aldeia Kayapó de Mato Grosso. O encontro foi convocado pelo cacique Raoni Metuktire para articular uma resposta à retórica incendiária e às ações agressivas do governo Bolsonaro contra a população indígena do país.
As falas e os debates duraram quatro dias e resultaram no Manifesto do Piaraçu, documento de quatro páginas que denuncia o governo brasileiro pelo seu atual papel na ameaça contra os povos indígenas. O manifesto não só exige respeito do presidente Bolsonaro e do governo como também deixa claro que projetos prejudiciais ao meio ambiente não são bem-vindos em suas Terras.
Raoni, um dos principais líderes indígenas no Brasil, presidiu o evento já como um dos concorrentes ao Prêmio Nobel da Paz, candidatura anunciada em outubro de 2019 e agora incentivada por forte campanha nas redes sociais.
O forte sol de meio-dia brilha sobre a aldeia Mebêngôkre (Kayapó) de Piaraçu, em Mato Grosso. Dezenas de homens e mulheres indígenas estão sentados dentro da Casa dos Homens, uma grande estrutura de madeira e palha situada no meio da aldeia, próxima ao Rio Xingu. Eles estão aqui para o Encontro dos Povos Mebêngôkre e Lideranças Indígenas do Brasil, uma reunião histórica dos povos nativos do país para debater a situação crítica em que eles se encontram. Enquanto os participantes discutem e debatem pautas urgentes, Raoni Metuktire escuta atentamente às demandas e queixas dos presentes.
O líder Kayapó de 89 anos, melhor conhecido como Cacique Raoni, convocou o encontro para articular uma resposta à retórica incendiária e às ações agressivas do governo Bolsonaro contra a população indígena do país. O evento ocorre logo após um dos anos mais devastadores para a Amazônia na última década. Além da maior taxa de desmatamento nos últimos 11 anos, os assassinatos violentos de sete lideranças indígenas contribuíram significativamente para a hostilidade contra os povos nativos. As atuais intenções do presidente Jair Bolsonaro de abrir os territórios indígenas para o agronegócio e a extração mineral intensificam ainda mais a situação em que eles se encontram.
De 14 a 17 de janeiro, mais de 600 líderes indígenas pertencentes a 47 povos compareceram à aldeia, fazendo desta reunião uma das maiores em um território indígena no Brasil. Presididos pelo próprio Cacique Raoni, os debates se assimilaram às negociações oficiais de Estado, reservando tempo para as opiniões de líderes tradicionais, mulheres e jovens. Com a ajuda de seu sobrinho e tradutor, Megaron Txucarramãe, Raoni afirmou: “Essa reunião não é para nós planejarmos uma guerra ou um conflito. Nós estamos aqui reunidos para defender nosso povo, nossa causa, nossa terra. […] Eu nunca faria um encontro para atacar alguém. Eu estou reunindo nosso povo para se defender, é para isso que estamos aqui.”
Olympio Serra, indigenista, antropólogo e ex-diretor do Parque Indígena do Xingu, enfatizou o cunho histórico do evento. “Foi a oportunidade que estes povos tiveram para atender o apelo de Raoni para que se entendessem e organizassem uma reação urgente contra essa mentalidade colonialista [do governo brasileiro]”, afirmou.
As falas e os debates duraram quatro dias e, após várias revisões, resultaram no Manifesto do Piaraçu, um documento de quatro páginas que denuncia o governo brasileiro pelo seu atual papel na ameaça contra os povos indígenas. O manifesto não só exige respeito do presidente Bolsonaro e do governo como também deixa claro que projetos prejudiciais ao meio ambiente não são bem-vindos em suas terras. “Nós não aceitamos garimpo, mineração, agronegócio e arrendamento em nossas Terras, não aceitamos madeireiros, pescadores ilegais, hidrelétricas e outros empreendimentos, como o Ferrogrão, que venham nos impactar de forma direta e irreversível,” relata o documento.
Megaempreendimentos que sacrificam o meio ambiente em nome de desenvolvimento e lucro não são novidade para os povos indígenas do país. O próprio território Kayapó, onde o evento ocorreu, é atravessado por uma rodovia: a BR-080, que separa Piaraçu da aldeia vizinha, Pakaya. Caminhões imensos passam pela estrada todos os dias, geralmente carregados de grãos – uma representação visual de como o agronegócio diretamente afeta os povos indígenas. Durante sua fala no evento, Taphi Yawalapiti reforçou a importância da preservação da Amazônia: “Se a floresta desaparece, nossa cultura também vai desaparecer. Nossas línguas vão desaparecer. Nós precisamos lutar pela preservação da nossa terra. Precisamos unir nossas forças.”
Muitos representantes pediram união entre os povos indígenas durante este momento. Porém, o respeito foi a maior exigência durante o evento. “Queremos acima de tudo respeito às novas vidas, nossas tradições, nossos costumes e à Constituição Federal, que resguarda nossos direitos,” relata o manifesto. Raoni e outros líderes irão apresentar o documento final ao Congresso Nacional em Brasília numa data ainda não estipulada. O Instituto Raoni confirmou que o manifesto também estará disponível em inglês, espanhol e francês.
Prêmio Nobel da Paz
Os holofotes não são uma novidade para Raoni. O cacique Kayapó já é conhecido internacionalmente pela sua luta em prol da Amazônia e dos direitos dos povos indígenas. Sua batalha mais famosa talvez seja a campanha que liderou contra a represa hidrelétrica Belo Monte (antigamente chamada de Kararaô), no Pará. As manifestações contra sua construção foram dos anos 1970 até os 2010, mas o projeto acabou sendo executado em 2011 sob a presidência de Dilma Rousseff. Mesmo assim, a campanha transformou o Cacique Raoni em uma figura global.
Graças a seus esforços para a conservação florestal, era normal ver Raoni e seu botoque emblemático na mídia durante os anos 1980 e 1990. Seu ganho em popularidade durante esta época é em parte devida ao sucesso do 1º Encontro dos Povos Indígenas do Xingu. Este evento contra a construção da hidrelétrica Belo Monte recebeu muita atenção midiática graças à participação do músico inglês Sting. Desde então, Raoni tem levado uma vida mais reservada, longe das câmeras. Porém, os atuais acontecimentos levaram-no de volta ao palco mundial para continuar sua luta pelos direitos indígenas e pela Amazônia.
Ao longo de 2019, ele se reuniu com o presidente francês Emmanuel Macron, seguido por um encontro com Papa Francisco, no Vaticano. Essa volta aos olhos do público não caiu bem a Bolsonaro, que mencionou Raoni durante seu discurso de abertura na 74ª Assembleia Geral das Nações Unidas. Em sua fala, o presidente disse que “a visão de um líder indígena não representa a de todos os índios brasileiros. O monopólio do Sr. Raoni acabou”. Bolsonaro também aproveitou a oportunidade para promover Ysany Kalapalo, uma apoiadora indígena do governo, como uma alternativa para representar os povos nativos.
O discurso trouxe respostas e críticas ao redor do mundo e, pouco tempo depois, o nome de Raoni apareceu como um dos concorrentes ao Prêmio Nobel da Paz. O valor simbólico de ter o primeiro laureado brasileiro como um homem indígena não passou batido. A Fundação Darcy Ribeiro está promovendo uma campanha de apoio para o Nobel de Raoni.
Graças à campanha, Raoni já tem uma agenda cheia ao longo de 2020. No fim de janeiro, ele esteve na Universidade de Oxford para palestrar sobre proteção ambiental e direitos humanos. Ele também se reuniu com lideranças para apresentar-lhes uma cópia do Manifesto de Piaraçu e garantir apoio para a causa indígena no Brasil. “A melhor maneira de batalhar é pelo diálogo. Estou lutando desde que eles começaram a construir essa estrada (se referindo à BR-080),” explica Raoni. “Eu não luto com as minhas mãos, mas sim com os meus pensamentos”.
Imagem do banner: Guerreiros Tapirapé antes de uma apresentação durante Encontro dos Povos Mebêngôkre e Lideranças Indígenas do Brasil. Foto: Rafael Forsetto.
Mais reportagens da Mongabay sobre povos indígenas aqui.