Desde 2017, o governo de Minas Gerais avaliou a portas fechadas 108 projetos privados no estado. O objetivo: facilitar o licenciamento ambiental e reduzir a fiscalização. Desses, 25 projetos são da Vale, quase todos classificados como de alto risco – entre eles a mina do Córrego do Feijão, em Brumadinho, cuja barragem se rompeu em janeiro de 2019, matando 259 pessoas e deixando 11 desaparecidos até o momento.
A análise é feita por meio da Superintendência de Projetos Prioritários (Suppri), vinculada à Secretaria do Meio Ambiente. A criação do órgão não passou por grande debate e foi incluída dentro de uma lei aprovada em 2016. O financiamento de mineradoras pode estar por trás. O ex-governador Fernando Pimentel (PT) recebeu R$ 1,5 milhão de doação da Vale na campanha de 2014.
Além de Pimentel, nas eleições estaduais de 2014, as mineradoras financiaram 102 deputados federais e estaduais, cerca de 80% do total dos que conseguiram na Câmara Federal e na Assembleia Legislativa de Minas Gerais. Na assembleia mineira, sete de cada 10 deputados estaduais vitoriosos foram financiados pelo setor.
O lobby das mineradoras em MG resultou na criação de uma lei em 2016, com objetivo de “desburocratizar e dar celeridade aos processos de licenciamento ambiental em Minas”. As brechas que se abriram permitiram que a Vale, com o apoio do governo estadual, reduzisse a classificação da mina de Brumadinho do nível 6 (alto risco) para nível 4 (médio risco).
O governo de Fernando Pimentel (PT), em Minas Gerais, criou uma superintendência para atender aos interesses da Vale e de outras mineradoras. Dados obtidos via Lei de Acesso à Informação mostram que, desde janeiro de 2017, quando a “Superintendência de Projetos Prioritários” (Suppri) passou de fato a funcionar, vinculada à Secretaria de Meio Ambiente (Semad), a Vale foi contemplada com a análise de 25 projetos considerados de prioridade máxima pelo estado entre 108 projetos avaliados no total.
Dos 25 projetos da Vale na Suppri, em fases de licenciamento diferentes, 21 são de risco 5 ou 6, o mais alto possível em uma escala que vai de 1 a 6. Entre os projetos, está a mina de Córrego do Feijão, em Brumadinho, local do rompimento da barragem que matou 259 pessoas e deixou 11 desaparecidos até o momento.
Entre os empreendimentos que ganharam uma equipe exclusiva para a sua análise, com trâmites a portas fechadas e longe do crivo público, estão também minas fundamentais para a empresa, como a de Brucutu, em São Gonçalo do Rio Abaixo, a maior mina da Vale em Minas Gerais.
A mina foi interditada pela justiça em fevereiro e em maio, em uma disputa jurídica travada pela empresa e o Ministério Público. Em 19 de junho, a Vale anunciou que conseguiu reverter a suspensão parcial da exploração após decisão do presidente do Superior Tribunal de Justiça, retomando 100% das atividades. Em 2 de dezembro, a própria mineradora suspendeu novamente as operações da mina de Brucutu, o que demonstra a instabilidade das barragens.
“Não há justificativa técnica”
O doutor em geografia Klemens Laschefski, professor do Instituto de Geociências da UFMG com ênfase em ecologia política, é taxativo: a Suppri foi criada como um meio de interferir no Conselho Estadual de Política Ambiental (Copam) a mando do governador Fernando Pimentel. Para Klemens, os projetos foram escolhidos com um critério muito claro: o das empresas que financiaram as eleições.
“Não houve uma discussão sobre por que esses projetos deveriam ser prioritários. Uma discussão que tem que ser feita com a sociedade. Não há justificativa técnica para isso. É um escândalo”, afirma o professor.
Laschefski avalia que houve diversos alertas para o fato de que o licenciamento tinha que mudar, mas as mudanças foram feitas para pior, levando em conta somente o interesse das empresas. “Não há transparência nenhuma. A Suppri decide atrás de portas fechadas quais são os projetos prioritários e também decide como pode simplificar o licenciamento ambiental”, diz.
Para o pesquisador, é absolutamente inadmissível aceitar os critérios genéricos estabelecidos pelo estado de Minas Gerais, que não levam em conta a situação real dos projetos. “Você só pode avaliar a gravidade quando se faz um levantamento sério da situação socioambiental do local. Só assim sabemos quantas pessoas serão atingidas, por exemplo. O que foi feito na Suppri foi aplicar critérios absolutamente genéricos”, analisa Laschefski.
Mineradoras financiaram 7 de cada 10 deputados em MG
A extensão do poder financeiro das mineradoras em Minas Gerais impressiona: em 2014, último ano em que empresas privadas puderam realizar doações para campanhas políticas, as mineradoras financiaram 102 deputados federais e estaduais eleitos pelo estado, equivalente a 78% dos que conseguiram vagas na Câmara Federal e na Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG).
Na assembleia mineira, sete de cada 10 deputados estaduais vitoriosos foram financiados pelo setor. Foram eles, afinal, que aprovaram as mudanças nas leis que favoreceram a Vale e todas as mineradoras. Em todo o país, somente a Vale doou R$ 82 milhões a deputados, senadores, governadores e candidatos à presidência na campanha de 2014, com destaque para Minas Gerais e Pará. Já o ex-governador Fernando Pimentel recebeu R$ 1,5 milhão de doação da Vale, diretamente ou via comitê nacional.
Para Bruno Carazza, especialista em financiamento eleitoral e autor do livro Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro, criar uma estrutura no Estado para buscar vantagens competitivas é uma política legítima em muito países. No entanto, o problema é como isso pode se dar. Para o analista, é preciso avaliar se a forma como se desenvolve está viciada ou não.
“Se isso acontece via captura dos agentes do Estado de uma forma que seja levado em conta apenas os interesses das empresas em detrimento do bem comum, esse é o problema. Isso gera dúvida e é preciso ficar de olho”, diz Carazza.
O doutor em direito econômico pela UFMG lembra que empresas doaram valores muito expressivos para um número bem grande de parlamentares de forma a ter seus pleitos atendidos de forma mais rápida e benéfica, tanto no Legislativo quanto no Executivo, com o pico justamente em 2014.
“O financiamento de campanha pode ter levado à criação dessas estruturas capturadas tanto no Legislativo quanto no Executivo. Minha pesquisa mostra muito isso”, afirma. O número de comissões na Câmara que tem membros financiados por setores diretamente interessados no que é tratado por elas cresce ano a ano. “Isso acaba viciando o processo legislativo e a tomada de decisão dentro do Executivo”, lembra.
O caso da Comissão Especial da Câmara encarregada de analisar e propor mudanças no Novo Código da Mineração é emblemático. Estudo mostrou que boa parte dos deputados da comissão foram financiados por mineradoras, incluindo o relator, Leonardo Quintão. Reportagem também revelou que o código foi escrito em escritório de advocacia que atende a Vale.
Proibição não acabou com o financiamento de empresas
Desde que a doação empresarial para campanhas foi vetada pelo STF, algo que Carazza critica, as empresas que querem doar seguiram fazendo isso via caixa 2 ou uso de laranjas, na sua avaliação.
“Mesmo que o volume de doações tenha arrefecido com a proibição, com os efeitos da Lava Jato e com a crise econômica, a tendência é que, com o tempo, o caixa 2 volte a ter muita expressão no Brasil”, afirma.
Para Carazza, a proibição total acaba com o mecanismo de transparência direta no monitoramento entre a relação do setor público e privado, além de não impedir, na prática, que o financiamento empresarial aconteça. Uma saída seria aprovar um teto de doação por valor, candidato ou partido, acredita o economista.
Em vídeo, Ribas defende o risco reduzido para o projeto de Brumadinho
O lobby da Vale em MG, de acordo com documentos que mostram que a empresa chegou a ditar regras dentro da secretaria de Meio Ambiente (Semad), faz parte do processo que resultou na Lei Estadual no 21.972/2016, promulgada pelo governador Fernando Pimentel e na Deliberação Normativa 217, publicada em dezembro de 2017, que entrou em vigor em março de 2018. O objetivo era “desburocratizar e dar celeridade aos processos de licenciamento ambiental em Minas”.
Com as mudanças, passaram a existir duas modalidades de licenciamento ambiental: o Licenciamento Ambiental Simplificado (LAS) e o licenciamento convencional, que pode ser em três fases ou concomitante. A mudança foi exatamente a brecha aproveitada pela Vale em Brumadinho e em outros projetos.
Com as regras aprovadas de acordo com os seus interesses e a Suppri criada, a Vale conseguiu rebaixar o risco atribuído a seu projeto em Brumadinho do nível 6 para nível 4 e reduzir o licenciamento para uma fase só.
Isso contou com a anuência de Germano Vieira, atual secretário de Meio Ambiente de MG e Rodrigo Ribas, superintendente da Suppri. No vídeo abaixo, exclusivo, Ribas afirma, durante reunião da Câmara de Atividades Minerárias (CMI) em 30 de novembro de 2018, que a informação de que o empreendimento estava listado como de classe 6 no Sistema Integrado de Informação Ambiental (Siam) e na pauta da reunião “estava errado”.
Para o superintendente, o correto seria de classe 4, de risco menor, como foi alterado pela Deliberação Normativa 217 e aprovado após análise técnica da Suppri que autorizou o licenciamento “3 em 1”. Segundo Ribas, tudo estava dentro das leis – já modificadas, lembre-se.
Mais: Ribas reforça que, de acordo com a Subsecretaria de Gestão Regional (Suger), vinculada à Semad, a secretaria de Meio Ambiente não precisa dar publicidade no Diário Oficial sobre as reorientações, que essa informação é obrigatória somente para o empreendedor, a Vale. “Então nós estamos tranquilos para fazer a apresentação e a discussão do mérito dos processos”, conclui. Em 25 de janeiro de 2019, a barragem da Vale em Brumadinho rompeu.
Superintendência tenta fugir da responsabilidade
Em depoimento para a CPI da Barragem de Brumadinho na Assembleia Legislativa de MG, Rodrigo Ribas tentou eximir completamente a superintendência de qualquer responsabilidade.
Segundo Ribas, a Suppri é “hierarquicamente menor que uma Supram” (superintendências regionais do estado), por ser vinculada ao gabinete do subsecretário e não do secretário da Semad.
O superintendente disse que a escolha dos projetos não passa pela Suppri, sendo de competência exclusiva do Grupo de Coordenação de Política Pública de Desenvolvimento Econômico Sustentável – GCPPDES, uma reunião de diversas secretarias de MG, que inclui a Semad, e também a Cemig, de energia, e BDMG, Codemig e Indi, órgãos de desenvolvimento econômico do estado.
De acordo com o depoimento, a Suppri também não acompanha os projetos depois da licença de operação e não verifica o cumprimento das condicionantes, que ficam a cargo da Supram de origem.
Pelo depoimento de Ribas, fica a impressão de que a Suppri não tem nenhuma autonomia técnica, nem responsabilidade efetiva pela escolha dos projetos e pela análise e até importância dentro da estrutura montada pelo governo de MG.
Na avaliação de Jeanine Oliveira, representante do Gabinete de Crise da Sociedade Civil, uma articulação de diversos movimentos sociais, pesquisadores e ativistas, essa pulverização da responsabilidade foi feita justamente para evitar que a Suppri pudesse ser responsabilizada de qualquer maneira pelos projetos que escolhe, as análises que faz e a fiscalização que não realiza.
“A certeza que temos, pelos projetos que passam lá e a própria criação da superintendência, é que ela é um lugar para licenciar a toque de caixa, sem nenhum controle e fiscalização para não ter como cobrar essas pessoas depois, inclusive judicialmente. O discurso sempre é de que estão lá somente para cumprir ordens”, diz Oliveira.
Segundo a ativista, que participa das reuniões do Copam, Ribas nunca respondeu sobre de quem foi a demanda para a criação da Suppri, se apenas do governador, se partiu do secretário de Meio Ambiente ou outra pessoa. Questão que sempre fica no ar, inclusive sem debate público relevante, considerando que a criação da superintendência não recebeu muita atenção durante o processo de debate e aprovação da Lei Estadual no 21.972/2016.
A própria qualificação técnica da equipe é questionável, lembra. Ribas foi, até entrar na Semad em 2009, professor de geografia e turismo em faculdades privadas. Hoje, o superintendente da Suppri recebe um salário maior inclusive que o do próprio secretário de Meio Ambiente, Germano Luiz Gomes Vieira.
Segundo o Portal da Transparência, Ribas tem uma remuneração bruta de R$ 14.344 enquanto Germano recebe R$ 10.959 de base. “O que esse cargo tem de tão relevante para receber mais que o próprio secretário?”, pergunta Oliveira.
Apesar do discurso oficial de quase irrelevância da Suppri, a resposta talvez esteja no fato de que passam pela superintendência todos os projetos privados considerados estratégicos pelo estado, ou seja, aqueles que envolvem muito dinheiro. Projetos com valor de investimento acima de R$ 200 milhões, por exemplo, serão considerados automaticamente relevantes.
No processo de licenciamento em Minas Gerais, hoje, a Suppri ocupa papel central e decisivo, influindo diretamente em questões essenciais, afirma Oliveira.
Vale e governo de MG dizem que obedecem a critérios técnicos
Em resposta à reportagem, o governo de Minas Gerais/Semad/Suppri alega que “o processo de definição de projetos prioritários é de responsabilidade exclusiva do GCPPDES a partir da rigorosa observância dos critérios definidos” e que, portanto, “a Suppri não participa da definição de prioridade dos projetos que são submetidos à sua análise”.
Em relação às críticas de que as escolhas desses projetos e a própria criação da Superintendência se dariam por motivação política, lobby de mineradoras, financiamento de campanhas por essas empresas e proximidade com a FIEMG, o governo de Minas Gerais respondeu que “a criação da Suppri se deu pela Assembleia Legislativa do Estado de Minas Gerais após um amplo debate com a sociedade, não sendo, portanto, uma ação isolada do Executivo. As ações da Secretaria não são pautadas por motivações políticas”.
Sobre as alegações de Rodrigo Ribas para alterar a classificação de classe do projeto da Vale em Brumadinho, citado no vídeo, o governo alega que tudo foi feito seguindo critérios técnicos de acordo com as leis e normativas em vigor e que o risco associado às barragens de mineração são determinados pela Agência Nacional de Mineração. “Desse modo, nenhuma alteração na classificação de risco é possível ao órgão ambiental”, afirmam.
Procurada, a Vale afirmou que “atendeu todos os critérios definidos pelo Grupo de Coordenação de Política Pública de Desenvolvimento Econômico Sustentável de Minas Gerais, critérios esses previstos na Lei Estadual 21.972.2016”.
Esta reportagem foi desenvolvida pela Transparência Internacional – Brasil e pela Organized Crime and Corruption Reporting Project (OCCRP). Ambas as organizações não-governamentais sem fins lucrativos têm entre seus pilares de atuação o apoio ao fortalecimento do espaço de atuação da sociedade civil no controle social da corrupção no mundo, com destaque para as contribuições que o jornalismo investigativo e independente traz a essa pauta. A Mongabay mantém total independência editorial em relação às matérias produzidas por essa parceria.