Só em janeiro, três indígenas Miranha foram assassinados em Coari, uma cidade rica em óleo e gás no Amazonas, enquanto dois agricultores foram mortos no Maranhão – acredita-se que todos os cinco morreram por disputas de terra.
A violência deste mês segue a tendência de aumento dos assassinatos rurais e da intimidação na Amazônia e em todo o Brasil vistos em 2019. Segundo muitos analistas, a situação está sendo catalisada pela retórica inflamada do presidente Jair Bolsonaro e das políticas do governo de enfraquecimento das proteções aos povos indígenas e tradicionais.
Uma grande preocupação, dizem os analistas, é que as novas políticas de Bolsonaro – incluindo a MP 910, medida provisória que fornece ampla anistia a grileiros; e uma proposta de lei que abriria as terras indígenas à mineração – poderiam resultar num aumento ainda maior dos conflitos de terra e da violência este ano.
Pelo menos cinco pessoas foram mortas até agora este ano em conflitos de terra no Brasil, deixando ativistas temerosos de que seja um ano violento, já que o presidente Jair Bolsonaro está disposto a apoiar medidas que reduziriam ainda mais as proteções aos indígenas e às florestas.
“2020 começou com uma série de situações que mostram que será um ano muito difícil”, diz Antônio Cerqueira, secretário-executivo do Conselho Indigenista Missionário (Cimi).
Menos de uma semana após o início do ano, três indígenas Miranha foram assassinados no município de Coari, uma cidade rica em óleo e gás nas margens do rio Amazonas, a 363 km de Manaus (AM). Dois outros assassinatos aconteceram no Maranhão, na borda da Amazônia.
De acordo com um relatório policial visto pela Mongabay, o professor indígena Joabe Marins foi morto a tiros em sua casa dentro da Terra Indígena Cajuhiri Atravessado por um grupo de cinco homens não-indígenas.
Francisco Alves, presidente da Associação de Comunidades Indígenas de Coari (Acic), diz que mais de cem não-indígenas vivem na reserva. “Os não-indígenas que vivem na comunidade trazem outros não-indígenas para coletar castanhas, retirar madeira, pescar, caçar. Isso gera conflito”, diz ele.
A polícia confirmou que o conflito atual foi motivado por uma longa disputa de terra, que tornou-se violenta quando uma espingarda foi supostamente roubada de um dos não-indígenas. Uma fonte da polícia envolvida com a prisão disse que o homem que disparou o tiro fatal afirmou que Joabe apareceu armado à janela de sua casa. O assassino é aparentemente casado com uma indígena da comunidade.
Os irmãos da vítima, Marcos e Francisco, tentaram se vingar da morte e subiram num barco em busca dos assassinos ao longo do rio. Mas os dois grupos se cruzaram, e os indígenas, que estavam em menor número, foram obrigados a pular na água e se afogaram. Três não-indígenas mais tarde foram presos e acusados de homicídio.
De acordo com Alves, a Fundação Nacional do Índio (Funai), deveria retirar os não-indígenas de dentro da reserva de 12.500 hectares, oficialmente reconhecida pelo governo brasileiro como território indígena no final de 2015.
Mas, ao longo dos últimos três anos, a agência sofreu profundos cortes orçamentários, paralisando sua missão, primeiro sob o governo do presidente Michel Temer e, desde janeiro de 2019, sob o de Bolsonaro.
No ano passado, Sydney Possuelo, um dos mais respeitados indigenistas e presidente da Funai nos anos 1990, disse que o órgão está “morto” e “extinto”.
A equipe técnica da Funai (CTL) em Coari, que atua como intermediária entre os indígenas e o Estado brasileiro – realizando registros de nascimento, assistência jurídica e ajudando na proteção territorial –, não teve coordenador ou equipe por pelo menos um ano, deixando as populações indígenas vulneráveis a conflitos com grileiros, madeireiros ilegais e outros.
“Estamos totalmente abandonados”, diz Alves, que teme mais violência na Reserva Cajuhiri Atravessado, e afirma que queixas oficiais anteriores foram ignoradas pelas autoridades.
Ele também diz que a população indígena de Coari vem sendo cada vez mais assediada por “piratas do rio”: grupos armados que roubam carregamentos de cocaína e maconha hidropônica que descem o rio Amazonas vindos da Colômbia e do Peru. “Eles roubam motores, gasolina, comida… há muita violência”, diz.
Já em Arari, no Maranhão, área de transição entre Cerrado e Amazônia, Celino Fernandes e seu filho Wanderson foram executados por quatro homens encapuzados dentro da comunidade rural do Cedro na primeira semana de 2020.
De acordo com a Comissão Pastoral da Terra (CPT), os camponeses assassinados queixavam-se regularmente às autoridades de que a família de um juiz local havia privatizado e cercado, de forma ilegal, terras do governo onde a comunidade rural costumava pescar e criar animais de forma sustentável – um direito de uso da terra garantido aos povos tradicionais por lei federal.
“É o tipo de conflito que acontece historicamente na região”, diz Diogo Cabral, advogado da Sociedade Maranhense de Direitos Humanos. Ele diz que o problema piorou este ano.
“Por um lado, os recursos para a reforma agrária e os quilombolas estão sendo cortados [pelo governo federal], enquanto existe um estímulo para fazendeiros e grupos armados”, diz Cabral.
Também no começo de janeiro de 2020, no município de Dourados, no Mato Grosso do Sul, a mídia local informou que um homem indígena levou um tiro no rosto e outros ficaram feridos – inclusive uma criança que perdeu os dedos brincando com uma granada não-letal deixada por seguranças particulares. Os seguranças atacaram os índios porque eles tinham ocupado fazendas locais numa tentativa de retomar o que, segundo eles, são suas terras ancestrais.
A região é um foco de conflitos violentos com os povos indígenas – que vivem acampados dentro de uma reserva minúscula, tentando retomar a terra que veem como sua por direito.
Além disso, na remota região do Vale do Javari, no Amazonas, seis crianças indígenas morreram de gripe, diarreia e outras doenças comuns que teriam contraído durante longas viagens com suas famílias para receber o Bolsa Família, tudo isso durante os últimos quarenta dias. Grupos de defesa atribuem as mortes ao desmantelamento do sistema de saúde indígena pelo governo federal.
No ano passado, Bolsonaro tentou reduzir as proteções às florestas e aos povos indígenas, o que, segundo analistas, levou a um aumento do desmatamento e das invasões de terras indígenas por grileiros, garimpeiros e madeireiros ilegais.
Nos primeiros nove meses de 2019 houve 160 invasões desse tipo em comparação a apenas 109 no ano anterior, de acordo com dados compilados pelo Cimi, enquanto o número de líderes indígenas mortos foi o mais alto em onze anos.
O assassinato de Paulo Paulino Guajajara em novembro por invasores na Reserva Indígena Arariboia, no Maranhão, chegou às manchetes internacionais.
Especialistas apontam uma série de medidas em 2020 que poderão aumentar ainda mais a violência contra os povos indígenas, populações tradicionais e pequenos agricultores.
Isolete Wichinieski, coordenadora nacional do CPT, citou uma medida provisória assinada por Bolsonaro no ano passado, a MP 910, que, segundo os críticos, facilita a grilagem. Embora já esteja em vigor, a medida ainda precisa ser aprovada pelo Congresso em 120 dias ou será anulada.
A MP 910 anistia aqueles que ocuparam e desmataram até 2.500 hectares de terras públicas antes de dezembro de 2018, uma medida que encoraja ainda mais a grilagem, dizem especialistas. A anistia pode entregar extensos trechos de terras públicas a grandes proprietários particulares, provavelmente aumentando os conflitos com indígenas e comunidades tradicionais que utilizam essas terras.
Juliana Batista, advogada da ONG Instituto Socioambiental (ISA), diz que a lei pode deixar as terras indígenas que aguardam demarcação especialmente vulneráveis a invasões, o que pode levar a conflitos.
O governo Bolsonaro também diz que está finalmente pronto para lançar uma lei há muito aguardada para permitir a mineração em terras indígenas, uma prática proibida pela Constituição de 1988. O esboço dessa lei está circulando pelo Parlamento da União Europeia, para liderar uma possível reação pública da UE, um dos principais parceiros comerciais brasileiros.
Dúvidas sérias persistem em relação à aprovação da lei de mineração em terras indígenas, que, segundo especialistas, viola normas internacionais. O presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, diz que não a colocará em votação.
Mas Alessandra Korap, líder indígena Munduruku da bacia do Rio Tapajós, no Pará, epicentro da atual corrida do ouro brasileira, diz que a retórica de Bolsonaro a favor da mineração nos territórios indígenas já incentivou mais garimpeiros a invadirem terras.
“O presidente diz ‘vamos legalizar’, então as pessoas dizem ‘vou pegar meu espaço lá’”, disse numa entrevista a este repórter no ano passado.
Imagem do banner: Madeira extraída ilegalmente e confiscada em Rondônia. Foto: Sam Cowie.
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