O artista visual Denilson Baniwa e a cantora Djuena Tikuna estão levando a Amazônia para galerias e palcos ao redor do mundo, revelando a diversidade socioambiental da floresta e suscitando reflexões sobre seu futuro.
Denilson Baniwa, nascido em uma aldeia no Médio Rio Negro, mistura elementos da cosmologia Baniwa e da estética contemporânea para criar pinturas, fotografias e performances que denunciam a violência contra os povos indígenas brasileiros.
Djuena Tikuna, natural do extremo oeste do Amazonas, faz da língua Tikuna um instrumento de resistência: em 2017, fez história ao se tornar a primeira cantora indígena a se apresentar no Teatro Amazonas, em Manaus, símbolo máximo da elite seringalista.
A imagem é impactante: uma cruz que representa a Primeira Missa no Brasil está fincada sobre uma pilha de pacotes de açúcar da marca Guarani, espalhando sangue pelo chão. Em cima da mancha vermelha, a inscrição “Eu sou Guarani Kaiowá”.
A instalação, uma metáfora sobre a violência contra os indígenas no Brasil, esteve por três meses exposta no Centro Cultural São Paulo (CCSP), na capital paulista, ao lado de uma grande faixa onde se lia “DECOLONIZE”. Assim mesmo, sem o S, indicando o posicionamento adotado por alguns antropólogos e militantes das questões indígenas, indicando uma transgressão aos estudos que trazem o ponto de vista do colonialismo e da suposta supremacia dos países colonizadores sobre os povos originários.
“A arte é para isso mesmo. Provocar”, lembra Denilson Baniwa, autor da obra e representante dos Baniwa, povo que vive entre o Médio e Alto Rio Negro, no Amazonas, até a fronteira do Brasil com a Venezuela. Para ele, a arte pode ter um efeito tão forte quanto protestos e chamar “a atenção para as questões indígenas até chegar a um cidadão comum”.
A menção aos Guarani Kaiowá é representativa em seu trabalho. Denilson Baniwa conheceu a situação desse povo em 2017, no Mato Grosso do Sul, um dos estados brasileiros que mais registra casos de violência contra indígenas no Brasil, segundo o relatório anual do Conselho Indigenista Missionário (Cimi). Só nesse estado, 14 lideranças Guarani Kaiowá foram assassinadas de 2001 a 2018, a maioria em represália à tentativa de acesso aos territórios tradicionais, diz o relatório. “Armam emboscadas contra indígenas, jogam veneno sobre as aldeias… e isso ainda é pouco divulgado na mídia”, lembra o artista.
Além da cruz simbólica, havia na exposição do CCSP uma série de fotografias que Denilson chamou de Relacionamento (agro) Tóxico. Meu Coração é Orgânico. Expondo imagens em que segura frutas e legumes na altura do coração, ele alerta para uma questão que afeta diretamente a população Kaiowá: a contaminação por agrotóxicos. O tema dialoga, também, com a recente aprovação de 290 novos produtos pesticidas pelo governo Bolsonaro.
Baniwa também critica, por meio de sua arte, outras posições do atual presidente sobre questões ambientais como a mineração em terras indígenas. Seu trabalho Azougue 80 traz um vídeo no qual o artista se alimenta de iscas artificiais de pesca, ao lado de um copo supostamente cheio de mercúrio (ou azougue, como também é conhecido), metal tóxico utilizado nas atividades de garimpo e que contamina rios como os do território Yanomami. Como trilha sonora de fundo, a voz do presidente Bolsonaro defende a atividade do garimpo e a compara com uma pescaria.
Obras de Denilson Baniwa: Gioconda Kunhã (2019) / Relacionamento (agro)Tóxico. Meu coração é orgânico (2018) / Flato Verídico (2019) / Primeira Missa no Brasil (2019) / Natureza Morta (2016-2019) / Terra Indígena (2018) / Arqueiro Digital (2017)
Conectando causas indígenas e ambientais
Publicitário de formação, Denilson Baniwa conheceu de perto as lutas do movimento indígena desde cedo. Nascido em uma aldeia no município de Barcelos, no interior do Amazonas, chegou a trabalhar no setor de comunicação da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), em Manaus, ainda adolescente, e até hoje atua nessa área como um dos fundadores da rádio Yandê, um projeto de mídia colaborativa da qual participam vários indígenas brasileiros.
Nos últimos anos, Denilson tem ocupado espaços que vão de exposições a residências artísticas em vários lugares do mundo. Em setembro de 2019, por exemplo, ao lado de artistas indígenas como Jaider Esbell (do povo Macuxi), participou do Arctic Amazon Symposium 2019, reunindo nativos do Ártico e da Amazônia que dialogaram sobre estratégias comuns para o enfrentamento das questões ambientais da atualidade. Além disso, ele mantém atualizado um banco de dados sobre artistas indígenas.
Seu trabalho traz grafismos, animais e referências da cosmologia do povo Baniwa, mas também a pegada da arte urbana, presente em técnicas como a impressão em lambe-lambe. Por onde ele anda, deixa como rastro cartazes como os que ele denomina Terra Indígena. “Não me coloco como um artista de galeria ou de museu. Chego a espaços [de exposição], mas prefiro ocupar a cidade com arte urbana e manifestações”, diz o artista.
Questionado sobre se seu trabalho surte efeito, Baniwa responde que sim: “As pessoas se preocupam em querer saber mais, entender o que quero dizer com as obras”. Para ele, interessam as conexões entre as causas indígenas e ambientais em pauta, e que as pessoas reflitam sobre essas conexões.
Morando há alguns anos no Rio de Janeiro, Denilson Baniwa diz que ouve as pessoas falarem em salvar a Amazônia e enviar dinheiro aos indígenas, mas ressalva que “de certa forma, muitos continuam alimentando a monocultura que mata os Guarani Kaiowá”. Ao questionar o senso comum, seja por meio de declarações como essa ou de suas obras, ele acredita que pode ajudar as pessoas a enxergar as questões indígenas com outros olhos.
O canto e a língua como resistência
Pela primeira vez, em 2017, uma cantora indígena se apresentou no Teatro Amazonas, em Manaus. Símbolo maior do período em que a produção de borracha aqueceu a economia do território amazônico, no final do século 19, o teatro foi palco para a voz potente de Djuena Tikuna, da etnia Tikuna – cuja população indígena de aproximadamente 50 mil pessoas é a maior em toda a Amazônia brasileira, estendendo-se para além das fronteiras com o Peru e a Colômbia.
Não foi um feito qualquer. Com a produção da própria Djuena, o espetáculo de lançamento de seu primeiro CD, Tchautchiüãne (em Tikuna, “Minha Aldeia”), trouxe ao palco grupos de música e dança de várias etnias amazônicas, além de pelo menos 300 convidados indígenas na própria plateia. Também subiram ao palco lideranças como Nara Baré, primeira mulher a assumir a Confederação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), que fez um pronunciamento em clima de “Demarcação Já”.
Embora situado no estado mais indígena do Brasil, o espaço simbólico do Teatro Amazonas carrega um longo histórico de negação aos povos originários, conforme lembrou a cantora Marlui Miranda na ocasião do lançamento, convidada a subir ao palco para cantar com Djuena. Marlui contou que, em 1979, foi vaiada ao interpretar uma canção na língua da etnia Suruí (Rondônia) nesse mesmo teatro.
“Muita gente pensa que o índio é só aquele que está no mato isolado”, afirma Djuena. “Estou realizada porque pude deixar a mensagem de que nós, povos indígenas, temos que lutar pelo espaço, lutar pelos nossos direitos. Cantar no Teatro Amazonas é uma forma de estar lutando e resistindo”, declarou a cantora, à época, em um vídeo feito por jovens mulheres indígenas que vivem no Parque das Tribos, em Manaus.
O espetáculo de 2017, porém, não seria o único: Djuena continuou – e continua – se apresentando regularmente no Teatro Amazonas. Em uma ocasião, chegou a cantar o Hino Nacional Brasileiro em língua Tikuna.
“O índio tem que estar onde ele quiser”
Djuena Tikuna se formou jornalista e tem como um de seus sonhos escrever ainda muitas reportagens em seu site, recém lançado. Uma grande conquista para a menina que nasceu no interior do município de Tabatinga, na tríplice fronteira do Brasil com a Colômbia e o Peru, e que veio aprender bem o português somente aos dez anos de idade.
Assim como Denilson Baniwa, Djuena também define sua trajetória como artista a partir da militância e da resistência indígena frente às agressões do homem branco. A língua Tikuna é a base de seu trabalho, cujo repertório tem músicas tradicionais e letras de sua autoria tanto no primeiro quanto no segundo CD, Wiyaegü (“O povo pescado”, em português), projeto que inclui também um livro e um documentário. “Eu não canto só por cantar”, diz ela. “É muito mais que isso. É tentar mostrar que a gente tem que valorizar o que a gente é, o que nossos ancestrais nos ensinavam.”
Cantar, segundo ela, é também uma forma de militância – por saúde, educação, território e acesso à cultura. Há cinco anos, ela marca presença no Acampamento Terra Livre, manifestação que reúne milhares de indígenas de todo o país em Brasília. Na última edição, além de cantar, Djuena também participou da cobertura colaborativa do movimento Mídia Índia, onde indígenas produzem reportagens, vídeos e fotografias. “É aí que se percebe como o movimento indígena está fortalecido, apesar da luta”, diz.
Mas é espalhando sua música que ela prefere encampar as questões indígenas. Além de uma turnê pela Europa em 2019, passando pela França, Bélgica e Portugal, Djuena também está circulando pelo Brasil junto a outros artistas indígenas como parte do projeto Sonora Brasil, do Sesc. A série de shows, realizada entre 2019 e 2020, está abrindo importantes espaços para o debate sobre a Amazônia e a diversidade de povos que nela vivem. “Visibilidade é ocupar espaços”, afirma Djuena. “O índio tem que estar onde ele quiser.”
Imagem do banner: trecho da performance Pajé-Onça, na 33ª Bienal de Artes de São Paulo (novembro de 2018)