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Risco na reserva Chico Mendes coloca em xeque projeto socioambiental na Amazônia

  • Fazendeiros e ocupantes irregulares da Reserva Extrativista Chico Mendes, no Acre, alcançam poder político inédito e pressionam pela redução dos limites da primeira unidade de conservação desse tipo no país, que completa 30 anos em março.

  • Projeto de lei na Câmara Federal propõe retirar de seu perímetro áreas usadas irregularmente para pecuária de corte, legalizando a atividade. Associações de moradores são contrárias.

  • Ícone de um modelo de ocupação territorial que alia trabalho e renda de populações tradicionais à manutenção da floresta em pé, ambientalistas temem que intervenção abra caminho para mudanças em outras áreas.

  • Conflito reproduz enfrentamento de modelos durante a ditadura militar, do qual os seringueiros saíram vitoriosos, mas amargaram a morte de lideranças como o próprio Chico Mendes, que dá nome à reserva.

Em 1990, Reserva Extrativista Chico Mendes, no sudeste do Acre, inaugurou um modelo até então inédito de aliança entre povos tradicionais não indígenas e preservação ambiental. Às vésperas de completar 30 anos, essa mesma reserva vive seu pior pesadelo – capaz, inclusive, de pôr em risco seu próprio modelo de existência.

Os primeiros alertas chegaram em meados de 2019, quando satélites do Instituto Nacional de Pesquisa Espacial (Inpe) detectaram um desmatamento muito acima do usual na área. No acumulado do ano, já chegou a 74,5 km². Isso é três vezes mais do que a média dos últimos cinco anos: 22 km² ao ano – por sua vez o dobro das cifras registradas nos anos anteriores, de 2013 para trás, que não passava dos 10 km² anuais.

Em novembro, mais um sinal de perigo foi emitido: dessa vez, proveniente do gabinete do Ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles. Um encontro ocorrido no dia 6, registrado em agenda oficial como uma “reunião com a bancada do estado do Acre”, teve a participação de cinco infratores ambientais cujos crimes foram cometidos dentro da Resex Chico Mendes. Eles estavam lá para pedir proteção contra o que consideravam “abusos” da fiscalização e angariar apoio ao projeto de redução dos limites físicos da reserva, cujo texto já tramita na Câmara Federal. Segundo apuração do jornal Folha de S. Paulo, o ministro assentiu em ambas as demandas.

Queimada para abertura de pasto na Resex Chico Mendes, no Acre. Foto: Katie Maehler / Mídia NINJA [CC-BY-NC]

A luta contra o desmatamento e o avanço de invasores não são questões novas na Reserva Extrativista Chico Mendes. A própria unidade de conservação nasceu como consequência dos “empates”, ações de resistência pacífica organizadas por seringueiros nos anos 1970 para salvar as árvores da derrubada promovida por madeireiros. Liderados pelo próprio Chico Mendes e por Wilson Pinheiro, os moradores da floresta se abraçavam às árvores, ou davam as mãos entre si para impedir o avanço de tratores e motosserras sobre a vegetação.

Era um contraponto ao modelo de desenvolvimento impulsionado desde a ditadura militar no Brasil, que, partindo do falso pressuposto de que a Amazônia era desabitada e improdutiva, estimulou a implantação de grandes projetos agropecuários, mineradores e madeireiros.

Organizados em sindicatos, os seringueiros defendiam seu direito ao modo de vida tradicional – assim como os indígenas, eles também viviam da floresta e queriam que ela permanecesse em pé. “Como forma alternativa à ocupação do território amazônico foi construído um novo modelo denominado ‘Reserva Extrativista’, onde as terras pertencem à União, mas com o usufruto dos que nela habitam e trabalham”, registra o plano de manejo da Resex Chico Mendes.

A conquista, entretanto, custou a vida dos líderes: Chico Mendes foi assassinado na porta de casa, em 22 de dezembro de 1988. Pinheiro tombou bem antes, em 1980, quando os empates pacíficos já não eram a única forma de enfrentamento na região.

Primeira do seu tipo a ser concebida no país, a Resex Chico Mendes acabou, por alguma razão, adiada pela burocracia de Brasília, que  decretou antes a criação da Resex Alto Juruá, também no Acre, em janeiro de 1990, que se tornou de fato a pioneira no Brasil. O documento legalizando a reserva que homenageia o líder dos seringueiros saiu só três meses depois, no dia 12 de março. Está completando 30 anos em 2020.

Mas o papel timbrado da presidência da República nunca foi suficiente para garantir a posse e a paz de seringueiros, castanheiros e ribeirinhos que lá habitam. Sendo uma unidade de conservação com ramais em quase toda sua extensão, além de duas estradas (ao norte, a AC-90 e ao sul, a BR-317), a pressão de invasores sempre foi elevada. Saindo da capital, Rio Branco, por exemplo, em duas horas de carro chega-se à sua entrada.

Desde o segundo mandato de Dilma Rousseff (2015-2016), a tensão vem crescendo paulatinamente, na proporção inversa às ações de apoio aos extrativistas e de fiscalização contra grileiros, que só diminuíram desde então.  A chegada à presidência de Jair Bolsonaro acabou mudando de vez a relação de forças em favor dos infratores.

“O plano Amazônia Sustentável (de desenvolvimento para as populações da floresta) não teve continuidade na intensidade necessária, as ações foram se enfraquecendo, e no último governo Dilma estavam totalmente desidratadas”, afirma Marina Silva, nascida em um seringal como os que Chico Mendes defendia e também ela ex-participante do movimento sindicalista de seringueiros. “Temer nunca teve nenhuma identidade com o assunto e agora Bolsonaro abandonou tudo. Para ele, essas populações não podem ser estimuladas, elas precisam ser assimiladas ou eliminadas”, conclui a ex-ministra do Meio Ambiente durante o governo Lula.

Hoje, lideranças extrativistas e servidores públicos temem se manifestar contra essas medidas. Em novembro, uma disputa fundiária por um seringal em Xapuri terminou com a morte do presidente do PSOL local. Uma das filhas de Chico Mendes, Ângela Mendes, diz que os fazendeiros estão andando com segurança armada para intimidar assentados.

“Fomos a uma audiência pública recentemente e o representante do Ministério do Meio Ambiente ameaçou as pessoas que queriam fazer denúncias. Sempre que era um pequeno posseiro ou um assentado, essa pessoa lembrava que tudo estava sendo gravado, que poderiam ter que responder judicialmente por isso”, relata a filha do líder seringueiro.

Memória de Chico Mendes em casa da reserva extrativista que leva seu nome. Foto: Criação de gado na Resex Chico Mendes, no Acre. Foto: Katie Maehler / Mídia NINJA [CC-BY-NC]

Conflito redivivo

O novo momento político brasileiro levou ao parlamento representantes cujos discursos – e projetos – abraçam ideias que fragilizam o controle e a preservação ambiental. Senador pelo Acre em primeiro mandato, Marcio Bittar (MDB), por exemplo deixou registrado em um requerimento de audiência pública que “muitas comunidades amazônicas foram obrigadas a abrir mão da atividade agropecuária em nome da ideia da florestania e do extrativismo como modelo de desenvolvimento”.

Também estreante no Congresso Nacional, a deputada federal Mara Rocha (PSDB), propôs como “saída mais viável, para acabar de vez com esse conflito, que se arrasta há anos”, o projeto de lei que reduz em 190 km² a área protegida – é o equivalente a 2% do total da reserva. “Antes que o Acre seja palco de uma tragédia, com derramamento de sangue (…), aproveito para pedir o bom senso de todos os órgãos envolvidos (Ministério Público Federal, Ibama, ICMBio e Exército) para a construção de uma saída pacífica para esse impasse”, enfatizou em seu discurso durante o pequeno expediente do dia 31 de outubro.

Na justificativa para seu projeto de lei, Mara Rocha alega que há moradores da Resex Chico Mendes que “não conseguem encontrar sustento nos produtos extrativistas da região e encontram barreiras para permanecer nas atividades em que sempre laboraram, a saber: a criação de gado e a agricultura”. Embora em seu texto a deputada insista que “visa, apenas, retirar da área da Resex aquelas pequenas propriedades rurais que já eram ocupadas antes da criação” da unidade de conservação, moradores, técnicos ambientalistas e documentos da justiça apontam o contrário.

Estrada dentro dos limites da Resex Chico Mendes, no Acre. Foto: Pedro Saldanha Werneck / Mídia NINJA [CC-BY-NC]

Pelo menos alguns dos casos que Rocha menciona como exemplos de habitantes da reserva em busca da sobrevivência e ameaçados pela fiscalização do ICMBio – órgão ambiental federal responsável pela gestão das unidades de conservação, cujo título é uma homenagem a Chico Mendes: Instituto Chico Mendes de Conservação de Biodiversidade – são, de fato, invasores.

Por exemplo: em uma decisão liminar sobre a queixa de quatro ocupantes da reserva que teriam sido notificados para deixar a área em 48 horas, o juiz federal Herley da Luz Brasil observa que todos eles tinham “endereço na cidade”: “nenhum dos autores foi notificado pessoalmente, mas através de interpostas pessoas nas áreas da reserva extrativista, de modo que não se sabe se efetivamente residem na Resex”, apontou.

Os quatro participaram da reunião com o ministro Salles – dois deles possuem embargos de terras registrados no sistema do Ibama: Maria de Fátima de Abreu Sarkis foi notificada em três ocasiões, em 2006, 2008 e 2009. Ela possui um haras na reserva e é pecuarista. Gutierri Ferreira da Silva já responde a um processo judicial por “crimes contra a flora” e tem embargo em seu nome no Ibama desde 2009.

Atual vice-presidente da Associação dos Moradores e Produtores da Resex Chico Mendes em Brasileia e Epitaciolândia (Amoprebe) – dois dos sete municípios abrangidos pela reserva –, Luiza Carlota da Silva Caldas condena o projeto de lei por favorecer apenas invasores da reserva. “As áreas que estão em discussão no PL são muito povoadas, com uma grande quantidade de pecuária, mas são pessoas ilegais, não são moradores tradicionais da reserva. Os parlamentares não fizeram seu dever de casa: ouviram 30 famílias com interesse específico, quando somos mais de 3 mil contrários a essa redução”, afirma.

“A maioria, 90% população da reserva, rechaça categoricamente a diminuição da reserva. Concordar com isso é menosprezar, desprestigiar e matar pela segunda vez nosso herói Chico Mendes”, reitera Raimundo Mendes de Barros, o Raimundão, primo de Chico Mendes e seu companheiro na linha de frente contra os madeireiros.

O texto proposto pela deputada Mara Rocha traz ainda um segundo ponto polêmico: mudar a classificação do Parque Nacional da Serra do Divisor, hoje vedado à exploração econômica, para uma Área de Proteção Ambiental. “É a única região do estado que possui rochas que podem ser extraídas e utilizadas na construção civil, de maneira a fomentar o desenvolvimento econômico do estado e baratear as obras públicas que o povo do estado tanto necessita”, justifica a deputada.

Raimundo Mendes de Barros, o Raimundão, primo de Chico Mendes e líder local, extraindo látex da seringueira. Foto: Katie Maehler / Mídia NINJA [CC-BY-NC]

Divergências no movimento

Assim como ocorreu nos anos 1970, os moradores agora organizam uma reação ao que consideram uma afronta aos seus direitos e ao modo de vida tradicional. Está previsto para o início de 2020 uma Marcha Extrativista para barrar a tramitação do projeto de lei. “Ainda estou esperando as últimas respostas dos núcleos de base, depois das reuniões que fizemos”, revela Caldas.

Será preciso, porém, encontrar alguma convergência entre duas visões distintas dos moradores tradicionais. Enquanto a turma de Raimundão, vinculada umbilicalmente ao Conselho Nacional dos Extrativistas e ao movimento de resistência de Chico Mendes, defende a manutenção da reserva exatamente nos parâmetros em que foi criada, a Amoprebe vê com simpatia uma revisão do plano de utilização da área que conciliasse o extrativismo com a criação de gado.

Atualmente a pecuária não é proibida dentro da unidade de conservação, mas sim limitada a uma porção pequena de terra, com rebanhos reduzidos voltados para a subsistência. Muitos moradores tradicionais, entretanto, desrespeitam essa norma. No último levantamento socioambiental, o ICMBio encontrou gado em 97% das colocações – que é como são chamados os lotes nos seringais, que não têm um tamanho padrão. A estimativa é que hoje o rebanho supere facilmente 50 mil animais – e onde entra o pasto, a floresta desaparece, razão pela qual há seringais onde o desmatamento já atinge a marca de 50%. Pelas regras atuais, apenas 10% da reserva pode ser derrubada para atividades complementares.

Com apenas cinco servidores para cuidar da reserva – cuja extensão exige de dois a três dias para cruzar toda a área em automóvel –, o ICMBio não consegue fiscalizar como deveria. Outros instrumentos legais, como a proibição de comércio de animais oriundos de área desmatada, não têm funcionado. Na Resex Chico Mendes é muito fácil “esquentar” o boi em propriedades que estão nas bordas, mas fora da unidade: pouco antes do abate, o animal é retirado da reserva e recebe documentação de origem fria.

O problema é tão grave que em 2010 o Ministério Público Federal lançou um amplo programa de ajustamento de condutas para regularizar o mercado de carne bovina na Amazônia. Mas, em setembro de 2019, o Acre era o estado com maior volume de frigoríficos que não aderiram às normas de verificação da origem dos rebanhos abatidos.

Ficou fácil criar gado e o boi se consolidou como alternativa econômica. “A castanha está valendo 25 reais a lata, é bom o preço mas nem todo mundo tem produção de castanha. A borracha hoje está melhorzinha, oito reais o quilo, mas recebe parcelado. Então tem muita gente sem condições de sobreviver do extrativismo, por isso criam porco, galinha, pecuária”, argumenta Caldas, da Amoprebe.

Apesar da invasão do gado, ainda restam áreas de extrativismo onde as famílias vivem conforme os usos tradicionais da floresta. E há outras atividades possíveis, além da extração de látex e da castanha: óleos, frutas e cipós são produtos que começam a ser valorizados na lógica da bioeconomia e mesmo o turismo científico ou ambiental poderia agregar renda às famílias.

“Mas é preciso dar a essas atividades o mesmo suporte financeiro, tecnológico, político e de assistência técnica que tem a pecuária e a agricultura. As pessoas querem que a reserva dê um mesmo resultado, tenha a mesma liquidez de um modelo predatório de mais de 300 anos. A comparação é muito injusta”, argumenta Marina Silva.

Desmatamento no seringal São Bernardo, próximo aos limites da Resex Chico Mendes, no Acre. Foto: Pedro Saldanha Werneck / Mídia NINJA [CC-BY-NC]

A Amoprebe, apesar de ser contrária à redução da área da reserva extrativista, entende que o uso da terra precisa ser flexibilizado para legalizar esses criadores de gado. Quer que os desmatadores cadastrados no ICMBio como habitantes tradicionais tenham suas infrações perdoadas, e em troca, assinem um termo se comprometendo a “não mexer mais na mata”, explica Caldas.

A associação vai ainda mais longe: defende uma auditoria do desmatamento. Propõe que, se os 10% da área total da reserva previstos para atividades complementares não tiver sido atingido até agora, sugere que os moradores que ainda não desmataram ganhem uma taxa extra para promover derrubadas.

Raimundão repele a ideia: “O infrator sempre vai querer fazer as coisas pelo nariz dele, mas os moradores conscientes estão organizados. Não tem que ter anistia, tem que ter punição: ou essas pessoas precisam ser retiradas de dentro da reserva ou devem se comprometer a recuperar a floresta que botaram abaixo”, cobra.

Para Ângela Mendes, filha do seringueiro que dá nome à reserva extrativista, a “estratégia por trás desse movimento é abrir precedentes” em outras regiões da Amazônia. “O perigo é esse: começa tirando uma comunidade [de projetos sustentáveis], depois outra, e daqui a pouco a ideia de reserva perdeu o sentido de existir”, lamenta.

Criação de gado na Resex Chico Mendes, no Acre. Foto: Pedro Saldanha Werneck / Mídia NINJA [CC-BY-NC]

Imagem do banner: desmatamento no seringal São Bernardo, próximo aos limites da Resex Chico Mendes, no Acre. Foto: Pedro Saldanha Werneck / Mídia NINJA [CC-BY-NC].

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