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“O ponto de inflexão chegou, é agora”, alertam especialistas

  • Em pesquisa inédita, os cientistas Carlos Nobre e Thomas Lovejoy relatam evidências tanto na atmosfera quanto no solo de que a Amazônia chegou ao seu ponto de não retorno. O aumento do desmatamento, combinado com as mudanças climáticas globais, podem resultar na rápida conversão da floresta em savana – liberando, com ela, grandes quantidades de carbono justo quando o mundo menos precisa dele.

  • Sua base é um análise de satélite da Nasa que revela uma Amazônia cada vez mais seca nos últimos anos – que os cientistas da agência espacial americana dizem ser uma das “primeiras indicações de mecanismos positivos de feedback climático”. Um estudo de 2018 descobriu que as espécies de árvores amazônicas adaptadas a climas úmidos estavam morrendo em taxas recorde, ao passo que as árvores adaptadas ao clima seco prosperavam.

  • É urgente, dizem os cientistas, que o Brasil se afaste das culturas não-sustentáveis de gado e soja, além de lançar um grande projeto de reflorestamento em terras já degradadas no sul e no leste da Amazônia, ações que podem ajudar o Brasil a manter seu compromisso climático firmado no Acordo de Paris.

Área de Floresta Amazônica primária no Pará. Foto: Ideflor-Bio/Fotos Públicas

O ponto de não retorno da Amazônia chegou, afirmam Carlos Nobre, um dos principais cientistas climáticos do mundo, e Thomas Lovejoy, renomado biólogo, em editorial publicado em 20 de dezembro na revista Science Advances. A chegada ao ponto de inflexão pode significar uma rápida extinção da Floresta Amazônica — e, com ela, a liberação de grandes quantidades de carbono, justo quando o mundo precisa de menos gases tóxicos na atmosfera.

Há mais de meio século, pesquisadores e cientistas sabem que a Amazônia cria seu próprio ciclo hidrológico: as árvores da floresta tropical regulam a evaporação, a transpiração e as chuvas da região. No entanto, quanto maior a perda de cobertura vegetal, mais intensos ficam os períodos de seca. E quando a floresta não recebe mais chuva suficiente para se sustentar, as árvores passam à forma de savana ou mato degradado.

É a Amazônia em modo de autodestruição, um evento cuja chegada foi acelerada não apenas pelo aumento das taxas de desmatamento nos últimos anos, mas também pelas mudanças climáticas globais.

Os cientistas Carlos Nobre e Thomas Lovejoy alertam a comunidade científica sobre o ponto de inflexão da Amazônia há anos, mas agora eles atualizaram o aviso: “O desmatamento atual é substancial e assustador: 17% em toda a Bacia Amazônica, e quase 20% na Amazônia brasileira”, relatam os pesquisadores.

“Somos cientistas que estudam a Amazônia e todos os seus maravilhosos ativos há muitas décadas. Hoje, estamos em um momento decisivo: o ponto de inflexão chegou, é agora.” Um reflorestamento ambicioso, que eleve a qualidade de vida nas cidades amazônicas e desenvolva uma bioeconomia baseada na ideia da floresta em pé, dizem eles, é a chave para barrar essas mudanças. Isso e o redução do agronegócio não-sustentável e das monoculturas de gado e soja.

Imagem de satélite da Nasa com fumaça emergindo da Amazônia, registrada a 400 km da Terra, no dia 24 de agosto de 2019, pelo astronauta Luca Parmitano, da Agência Espacial Europeia. Foto: ESA/NASA – L. Parmitan/Fotos Públicas.

No passado, as previsões para o ponto de não retorno eram baseadas em modelos climáticos matemáticos. Mas suas primeiras manifestações reais estão começando a aparecer no bioma amazônico: pesquisas científicas recentes já detectaram sinais do processo de desertificação no solo e na atmosfera.

“O que previmos antes agora está sendo observado na vida real. Não é mais uma previsão teórica sobre o futuro”, pontua Carlos Nobre, pesquisador da Universidade de São Paulo (USP).

Em outubro de 2019, cientistas da Nasa, liderados por Armineh Barhordarian, registraram imagens de satélite de uma Amazônia cada vez mais seca – o que eles chamaram de “os primeiros indícios de um mecanismo positivo de feedback climático”.

Outro estudo de 2018 combinou as descobertas feitas por 103 cientistas, revelando que espécies de árvores adaptadas a climas úmidos estavam morrendo a taxas recorde, enquanto as árvores adaptadas a climas secos prosperavam. “Uma lenta mudança rumo a uma Amazônia mais seca está em andamento”, afirma o relatório. Árvores resistentes ao fogo e com casca mais espessa correspondem a algumas das espécies mais bem-sucedidas até o momento; no passado, a Amazônia era mais resistente à propagação de chamas devido à sua umidade natural. “A vulnerabilidade da floresta ao fogo está aumentando. Intocada, ela é quase impenetrável”, diz Nobre.

“Estiagens periódicas. Estação seca mais longa. Temperaturas mais altas na estação seca — tudo isso está acontecendo sem precedentes”, comenta Lovejoy, biólogo que, inclusive, cunhou o termo biodiversidade. “Uma vez que há mais áreas secas, há mais fogo e o processo passa a ser cumulativo. Agora é a hora de fazer algo, não mais tarde.”

Há um ano, a dupla de pesquisadores publicou uma atualização do estudo de 2007, reduzindo pela metade o limite de 40% de desmatamento previsto anteriormente como ponto de inflexão da Amazônia — hoje, ele é calculado entre 20% e 25% de desmatamento.

Lovejoy e Nobre destacam que as consequências da mudança de floresta tropical para savana degradada são graves: um súbito colapso na biodiversidade, a liberação de grandes quantidades de carbono na atmosfera devido à morte das árvores (tornando o objetivo do Acordo de Paris de limitar o aquecimento global a 1,5°C impossível) e uma drástica perturbação regional no ciclo natural da água — o que provavelmente impactaria de maneira forte os aquíferos brasileiros, o agronegócio e o suprimento de água das principais áreas urbanas.

Todos os biomas mudaram no passado, diz Lovejoy, mas as mudanças acontecem historicamente em uma escala de tempo mais longa, de centenas de milhares a milhões de anos. As espécies, portanto, têm tempo para se adaptar à medida que o paradigma climático muda. Porém, nesse cenário de inflexão, se nada for feito, a mudança provavelmente ocorrerá em algumas décadas — será como o estalar de um dedo no tempo geológico, ele conclui.

Enquanto o presidente Jair Bolsonaro lança frequentes ataques à proteção ambiental, as esperanças para o futuro da Amazônia chegam ao limite. Especialistas agora concordam que é improvável que o Brasil alcance suas metas no Acordo de Paris sob este governo. “Bolsonaro não dá atenção a isso e está completamente alinhado com aqueles que negam a mudança climática”, diz Monica deBolle, economista do Instituto Peterson de Economia Internacional.

De acordo com o Observatório do Clima, em relatório lançado na COP25, em Madri, “o pior ainda está por vir”. A entidade se refere à taxa de desmatamento no Brasil entre 2018 e 2019, a mais alta em uma década — totalizando 9.762 km².

Floresta preservada no Pará. Foto: Ideflor-Bio/Fotos Públicas

Nobre e Lovejoy, no entanto, oferecem soluções: “A boa notícia é que podemos recriar uma margem de segurança por meio de reflorestamento imediato, ativo e ambicioso, particularmente nas regiões desmatadas, que são grandes fazendas de gado abandonadas e antigas áreas de cultivo, equivalentes a cerca de 23% do território florestal destruído.” Eles acrescentam que “o único caminho sensato a seguir é lançar um grande projeto de reflorestamento, especialmente no sul e no leste da Amazônia. Ações que poderiam fazer parte dos compromissos do Brasil no âmbito do Acordo de Paris”.

Outros cientistas também estão pedindo urgentemente uma revisão da política do governo. “Nós realmente precisamos reduzir as clareiras, começar a combater incêndios e acelerar a recuperação”, diz Daniel Nepstad, presidente do Earth Innovation Institute (Instituto de Inovação da Terra). “Temos tudo o que precisamos saber para agir agora, urgentemente, para impedir um incêndio em grande escala e um déficit causado pela seca”. Ele adverte que, como muitos incêncios hoje ocorrem sob o dossel das árvores da Amazônia, impossíveis de serem identificados, os sistemas de monitoramento e detecção de incêndios precisam ser imediatamente aperfeiçoados.

Nepstad teme que a previsão do ponto de inflexão possa enviar “a mensagem errada”, fazendo com que as pessoas pensem que não há como voltar atrás. “Não acho que haja um ponto sem volta para toda a Amazônia”, comenta. “É tudo uma questão de quão frequentes e intensas são essas secas realmente severas. E, quando elas ocorrem, existem fontes de ignição” que podem ser rapidamente combatidas. O pesquisador ressalta ainda a importância do combate eficaz a incêndios na Amazônia. Sob Bolsonaro e o ex-presidente Michel Temer, o orçamento do Ibama, agência encarregada de combater incêndios florestais, foi drasticamente reduzido.

Após declarar a chegada ao ponto de inflexão, Nobre e Lovejoy observam que o futuro não está gravado em pedra: “Os povos e líderes dos países amazônicos têm o poder, a ciência e as ferramentas para evitar um desastre ambiental em escala continental. Juntos, precisamos de vontade e imaginação para virar a direção da mudança em favor de uma Amazônia sustentável”, escreveram eles.

O mundo tem tempo suficiente para responder com sucesso? Ninguém sabe com que rapidez as coisas podem mudar quando se atinge um ponto crítico, diz Lovejoy: “Será um longa queda ou as mudanças que já estão sendo vistas começarão a acontecer com maior magnitude?”, ele pergunta. “Não vamos descobrir se não encararmos os fatos.”

Imagem do banner: Incêndio em agosto de 2019 no município de Candeias do Jamari, em Rondônia. Foto: Victor Moriyama/Greenpeace.

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