“A gente sofre e luta pela nossa sobrevivência”

As palmeiras de babaçu crescem naturalmente ao longo do arco de convergência entre a Amazônia e o Cerrado, cobrindo mais de 25 milhões de hectares, principalmente nos estados do Piauí, Maranhão, Tocantins e Pará. Há várias gerações, mulheres como Maria Antônia têm dependido dessa árvore para garantir o sustento e preservar sua identidade.

Embora algumas palmeiras cresçam e tenham seus frutos coletados em áreas pertencentes a pequenos produtores agrícolas, a maioria frutifica em terras de uso comum, cada vez mais reivindicadas por fazendeiros.

As quebradeiras são reconhecidas nacionalmente como um dos povos e comunidades tradicionais do Brasil, uma designação reconhecida juridicamente que se aplica a grupos cujo uso tradicional e sustentável da terra e dos recursos naturais é uma condição para sua existência cultural, social, religiosa, ancestral e econômica.

No entanto, em um país onde a agricultura representa quase um quarto do Produto Interno Bruto, e a concentração de terras entre as elites rurais é sempre alta, as reivindicações do agronegócio sobre as terras de uso comum estão cada vez mais em conflito com os usos de longa data das comunidades tradicionais.

A forte expansão do agronegócio no Brasil, plantando culturas destinadas à exportação, não apenas reduziu a quantidade de babaçuais na área de transição entre Amazônia e Cerrado como também cercou parte das terras onde crescem as palmeiras, restringindo o acesso das 400 mil quebradeiras de coco, reduzindo sua renda e ameaçando sua forma de vida tradicional em uma das regiões mais pobres do Brasil.

“Em menos de dez anos não teremos mais babaçuais para retirar o fruto e garantir a nossa sobrevivência”, afirma Cledeneuza Maria Bizerra Oliveira, coordenadora regional do Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu, ou o MIQCB.

O desmatamento e o cercamento das terras de uso comum não são as únicas ameaças crescentes; as mulheres relatam também aumento da intimidação física, agressão sexual, poluição por pesticidas e até mortes por choques em cercas elétricas.

“A gente sofre e luta pela nossa sobrevivência”, diz Maria dos Santos, 67 anos, quebradeira de coco babaçu no território quilombola Camaputiua, em Cajari, no Maranhão. “Há cercas elétricas no campo e na mata. Para juntar o coco, tem que se arrastar no chão, passar por baixo do arame e passar de volta na cerca. É árduo, uma luta muito grande e sofrida que as quebradeiras enfrentam contra os fazendeiros.”

De acordo com reportagens de jornais e testemunhos coletados pela reportagem, várias mulheres foram mortas ou ficaram incapacitadas devido a choques em cercas elétricas instaladas pelo agronegócio para impedir que as quebradeiras de coco entrem em terras outrora de uso comum.

Em resposta à Mongabay, o governo do estado reconheceu que “o Maranhão é um estado de grandes proporções territoriais e historicamente marcado por conflitos de terra”. No entanto, “o governo do Maranhão, no âmbito da sua competência constitucional, tem buscado a proteção das comunidades tradicionais existentes no estado com o desenvolvimento de políticas na área de prevenção e combate a conflitos, valorização da produção rural da agricultura familiar, preservação dos saberes populares e promoção da igualdade racial.”

De acordo com o governo maranhense, existem políticas e iniciativas para lidar com os conflitos, incluindo a Comissão Estadual de Prevenção à Violência no Campo e na Cidade (COECV), a Tabela Quilombola para Questões Fundiárias e Territoriais do Instituto de Colonização e Terras do Maranhão (Iterma) e uma subdivisão policial especializada em crimes raciais, crimes de intolerância e conflitos agrários. O Maranhão também lançou a “Operação Baixada Livre”, que inspeciona e remove cercas elétricas ilegais dentro da Área de Proteção Ambiental da Baixada Maranhense que cobre 1.775.035 hectares em 32 municípios no norte do estado.

A Federação da Agricultura e Pecuária do Estado do Maranhão (Faema), que representa agricultores e produtores rurais e é integrante da Confederação Brasileira de Agricultura e Pecuária (CNA), não respondeu aos comentários.

Conflitos se multiplicam em Matopiba

Enquanto a atenção do público há muito se concentra no desmatamento da Amazônia causado pela invasão da fronteira agrícola do Brasil, pouca atenção foi prestada à perda impressionante de vegetação nativa no Cerrado, que avançou a uma taxa muito mais alta à medida que sua biodiversidade foi sendo reduzida, queimada e lavrada para dar lugar a soja, milho, eucalipto, gado e outros produtos agropecuários. Entre 2000 e 2014, o Cerrado perdeu 2,5 vezes mais vegetação nativa que a Amazônia. Nos últimos anos, comparando-se os dois biomas, essa taxa foi até 5 vezes maior. Mais da metade dos 200 milhões de hectares do Cerrado já se foram.

Embora os meios de subsistência das quebradeiras de babaçu estejam sob ameaça do agronegócio há décadas, a pressão foi sentida de forma mais severa nos últimos anos em grande parte devido aos esforços do governo para desenvolver o trecho de Cerrado conhecido como “Matopiba”. Essa área – cujo nome é um acrônimo derivado das siglas dos estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia – contém alguns dos últimos grandes remanescentes da savana tropical mais biodiversa do mundo, porém poucas unidades de conservação para protegê-los. A expansão da soja em Matopiba foi maior do que em qualquer outra parte do Cerrado nas últimas décadas: um aumento de 253% entre 2000 e 2014.

É ao longo do limite noroeste de Matopiba que a maioria do babaçuais está localizada –  uma área estimada em 18 milhões de hectares, de acordo com Alfredo Wagner,  antropólogo da Universidade do Estado do Amazonas (UEA).

Defensores das quebradeiras de coco argumentam que tanto a destruição dos babaçuais pelo agronegócio quanto a proibição do acesso às terras de uso comum são, em grande parte, ilegais. “Por conta do processo de privatização da terra que ocorreu lá, ao longo do tempo essas mulheres foram impedidas de acessar áreas que elas costumeiramente já acessavam para desenvolver suas práticas”, disse Anny Linhares, coordenadora da Comissão de Territórios Tradicionais do Instituto de Colonização e Terras do Maranhão (Iterma), em entrevista para o programa Globo Rural.

Como o babaçu pode sobreviver a uma grande variedade de distúrbios, como incêndios, é comum encontrar as palmeiras crescendo sozinhas, dominando a paisagem. No passado, os produtores costumavam integrá-las às pastagens ou a sistemas agroflorestais, mas a chegada do cultivo mecanizado fez sumir essa prática.

A região de Matopiba, referida pelo Governo Federal como “a última fronteira agrícola do mundo”, atualmente concentra 10% das lavouras do Brasil – um índice que deve subir se o governo conseguir o que quer. Em maio de 2015, um decreto presidencial oficializou o Plano de Desenvolvimento Agropecuário de Matopiba (PDA-Matopiba), uma iniciativa de Kátia Abreu, ex-presidente da Confederação Brasileira de Agricultura e Pecuária (CNA) e governadora do Tocantins até 2014, quando se tornou ministra da Agricultura. O Plano foi criado para orientar projetos e ações federais na região, com foco específico no desenvolvimento agrícola.

No entanto, o PDA-Matopiba tem sido fortemente criticado por não atender aos requisitos de acordos globais, como os direitos de consulta previstos na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), e por não incluir em seu órgão de governança nenhuma representação ambiental ou social dos diversos grupos tradicionais do Cerrado, incluindo as quebradeiras de coco babaçu.

Em novembro de 2015, um grupo de 40 organizações da sociedade civil, incluindo o MIQCB, escreveu uma Carta Aberta à Sociedade Brasileira e à Presidência da República, argumentando que o PDA-Matopiba “promoverá ainda maior destruição da vida e exclusão de povos do Cerrado, vindo reforçar o crescimento do êxodo rural, o aumento da pobreza e a invisibilidade das populações existentes no território”.

O Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) respondeu dizendo que as quebradeiras de babaçu fazem parte do programa Bioeconomia Brasil – Sociobiodiversidade, que promove a geração de renda e a melhoria da qualidade de vida por meio de seus esforços em bioeconomia: “No caso especifico do babaçu, uma parceria com a Fundação Osvaldo Cruz (Fiocruz) permite a inserção dos povos e comunidades tradicionais nas cadeias de valor das plantas e produtos medicinais e fitoterápicos com o óleo de babaçu. São realizadas ações de mapeamento das oportunidades, além da capacitação de agricultores em processos produtivos.” Na mesma declaração, o Ministério acrescentou que “é importante destacar que não cabe ao Mapa fiscalizar questões trabalhistas e de segurança mencionadas pela reportagem”.

Suzano: um  estudo de caso

Não é apenas soja e gado que devoram o Cerrado: o plantio de árvores, principalmente o eucalipto, também é uma forma de cultivo que entra em conflito com as comunidades tradicionais.

Uma das lutas mais divulgadas entre os povos tradicionais e o agronegócio em Matopiba envolve a fábrica de papel e celulose da Suzano em Imperatriz, a segunda maior cidade do Maranhão. A planta foi inaugurada em 2014 e tem uma capacidade de produção anual de 1,65 milhão de toneladas de celulose e 60 mil toneladas de papel higiênico. Essa demanda levou à rápida conversão da vegetação nativa em plantações de eucalipto na área circundante.

“A Suzano, com seus plantios, devora o babaçu para plantar aquela árvore, que não é sustentável para nada”, diz Maria do Socorro Teixeira Lima, que mora ao sul da Reserva Extrativista do Ciriaco, criada para preservar os babaçuais que servem de sustento às comunidades tradicionais: “A palmeira, sim, é sustentável. Foi a natureza que fez.”

De acordo com Rosalva Gomes, quando a fábrica de papel foi construída, muitas quebradeiras de coco não apenas perderam o acesso aos babaçuais como também foram impactadas pelo aumento das taxas de violência sexual decorrente ao afluxo de trabalhadores da empresa, na sua maioria homens.

A Suzano nega essas alegações. Em um e-mail enviado à Mongabay, respondeu que “tais alegações são improcedentes e não correspondem às práticas adotadas pela Suzano”. Na mesma declaração, a empresa ressaltou que “preza também por atuar estritamente dentro da legislação vigente, esta que garante às quebradeiras de coco e às suas famílias o direito de livre acesso e de uso comunitário dos babaçus.”

De acordo com uma investigação da Mongabay publicada no ano passado, grande parte das plantações de eucalipto no Brasil ou pertence à Suzano ou vende suas árvores à empresa. Recentemente, a Suzano adquiriu a Fibria, tornando-se assim o maior produtor de celulose de eucalipto do mundo, a cargo de uma área plantada do tamanho de Sergipe.

E a produção brasileira de eucalipto só deve aumentar. No Acordo de Paris, o governo brasileiro prometeu 12 milhões de hectares em reflorestamento. No entanto, um novo artigo publicado pela revista científica Nature mostrou que grande parte dessas  novas florestas não virá como vegetação natural, e sim por meio de novas plantações, incluindo o eucalipto, o que equivaleria a 82% da meta brasileira de reflorestamento.

Um grande comprador da celulose brasileira é a Kimberly-Clark, que compra eucalipto da Fibria e da Suzano para produzir lenços e papéis-toalha sob marcas como Scott e Kleenex. O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), por sua vez, possui participações consideráveis tanto na Suzano quanto na Fibria – influência que coloca as quebradeiras de coco em grande desvantagem.

Procurada, a Kimberly-Clark não enviou resposta até o fechamento desta reportagem.

Frutos de babaçu no alto de uma palmeira, prontos para a coleta. Foto: Eduardo Rodrigues / ISPN.

“Ela é a mãe de todo o mundo, a guardiã da floresta”

O eucalipto, nativo da Austrália, é uma planta sedenta, que suga grandes quantidades de água do solo e dos aquíferos e gera enormes lucros à balança comercial, mas oferece pouco em troca. Ande por uma plantação de eucalipto no Brasil e você notará um silêncio peculiar: a falta de água e de biodiversidade – além das folhas, que tóxicas para muitos animais – resulta em um ambiente onde habitam poucas aves, insetos ou plantas nativas.

O uso restrito do eucalipto – destinado essencialmente à produção de papel-toalha e papel higiênico – empalidece quando comparado às muitas utilidades que as comunidades tradicionais dão ao babaçu. Uma palmeira em geral começa a dar frutos entre 15 e 19 anos e não para de produzir até os 50 anos. “É como se fosse uma mulher”, explica a quebradeira Maria dos Santos. “A gente tira a amêndoa, faz o azeite e o leite para o café de manhã dos filhos e netos. Da casca, faz o carvão. Do entrecasco [a parte carnuda da fruta], faz a farinha do mesocarpo. Tudo isso é tirado do coco babaçu.”

Mais do que isso, o babaçu é emblemático da luta das quebradeiras para manter sua identidade, seu modo de vida tradicional, seus meios de subsistência e o próprio ambiente em que vivem – com especial ênfase em seu papel como mulheres: “A palmeira não é mãe só das quebradeiras, não. É da população brasileira”, declara Maria do Socorro Teixeira Lima, que quebra cocos de babaçu desde criança. “O último ar que nós respiramos são as folhas dela que trazem. Ela é mãe de todo o mundo, a guardiã da floresta.”

Quebradeiras unidas

Hoje, as quebradeiras são protegidas nacionalmente pelo Decreto 6.040/2007 – a lei que garante a proteção de muitas comunidades e povos tradicionais do Brasil, incluindo quilombolas, seringueiros e comunidades pesqueiras artesanais. E, como outros grupos agroextrativistas tradicionais, as quebradeiras de coco construíram sua identidade social e política em torno de sua atividade econômica.

“A gente luta pela preservação [do babaçu] contra os fazendeiros que querem tomar as terras”, diz Maria dos Santos. “Sem terra não temos palmeira. E sem a palmeira não podemos viver.” A maioria das quebradeiras se organiza por meio do MIQCB, fundado em 1991 – movimento que rapidamente se tornou uma voz para essas mulheres, numa época em que elas nem sequer tinham o direito de votar em sindicatos ou discutir demandas trabalhistas específicas.

Uma das maiores conquistas do MIQCB foi a criação da Lei do Babaçu Livre. De abrangência municipal, essa lei foi implementada pela primeira vez em Lago do Junco, no Maranhão, em 1997, e posteriormente adotada em outros 15 municípios do estado. Nos municípios onde a Lei do Babaçu Livre se aplica, as mulheres podem entrar em fazendas privadas sem negociação e os agricultores são proibidos de cortar, queimar ou usar pesticidas nas palmeiras.

Mas o sucesso dessa iniciativa permanece limitado, já que são apenas 15 os municípios do Maranhão que adotam leis de acesso livre às quebradeiras de coco. O objetivo do MIQCB é tornar a Lei do Babaçu Livre nacional. A Comissão de Meio Ambiente da Câmara dos Deputados aprovou um projeto de lei em 2007, mas sua que acabou sendo arquivado em 2015.

“O presidente [Bolsonaro] vem e diz que não mexe, só atua para o agronegócio”, diz Maria Antônia Trindade Mendes. “Vai esperar o quê? A terra era toda comum, a gente vivia solto, trabalhava e fazia o que queria. Ia onde queria. Agora não. Agora é preso mais do que o gado.”

Hoje, o MIQCB está monitorando mais de mais de 30 conflitos relacionados ao acesso aos babaçuais. E é provável que essas batalhas se multipliquem, já que o investimento global em Matopiba se concentra quase exclusivamente em culturas comerciais para a exportação. Mas essa realidade apenas fortaleceu a determinação das quebradeiras em sua luta por garantir o sustento, a identidade e os direitos constitucionais.

“Eu converso com os mais novos e digo: ‘Quais os direitos que vocês vão ter?’ Eles estão tirando tudo. Hoje nós quase não temos mais nada, só mesmo a luta”, diz Maria Antônia Mendes. Mas para ela, assim como para as outras quebradeiras de coco babaçu, desistir não é uma opção. Maria dos Santos confirma: “Nascemos quebrando coco e vamos morrer quebrando coco”.

Imagem do banner: Quebradeira descascando o coco do babaçu. Foto: Peter Caton / ISPN.

Matéria publicada por Xavier Bartaburu
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