Fragmentos do petróleo que já atingiu 354 localidades no litoral de nove estados do Nordeste brasileiro chegaram ao Parque Nacional Marinho dos Abrolhos no dia 2 de novembro, mobilizando uma grande força-tarefa para minimizar seus impactos.
A boa notícia é que os corais da região aprenderam a se defender: eles realizam movimentos musculares para retirar o piche de cima de si. Sua predileção por crescer em ambientes de águas revoltas também contribui para a proteção, porque dificulta que o óleo se prenda às estruturas.
Cientistas também descobriram que alguns micro-organismos que habitam os recifes de Abrolhos conseguem degradar os componentes tóxicos do petróleo que ficam dissolvidos na água.
As 20 mil baleias-jubartes que todo ano visitam a região também escaparam do petróleo: a maioria chegou antes do início da temporada e já foi embora da área, evitando qualquer contato com a mancha.
Foi no último sábado, dia 2 de novembro, que os primeiros fragmentos de petróleo tocaram a Ilha de Santa Bárbara, dentro do Parque Nacional Marinho dos Abrolhos. A constatação da presença da substância em rochas da unidade de conservação materializou os piores pesadelos da comunidade científica: Abrolhos protege a mais extensa área de recifes de coral do Atlântico Sul, suas águas são o principal sítio reprodutivo das baleias-jubarte e sua biodiversidade abriga 48 espécies ameaçadas de extinção, entre invertebrados, peixes, répteis e mamíferos.
A chegada de um grande volume de petróleo poderia ter consequências desastrosas para esse ecossistema tão complexo. Entretanto, a longa distância do local provável do vazamento, operações de contenção bem-sucedidas, um pouco de sorte e, sobretudo, adaptações e sistemas naturais muito particulares da região podem fazer com que o impacto em Abrolhos seja bem menor do que o esperado.
“Aparentemente, estão chegando menos fragmentos. E não constatamos nenhum fragmento grande”, revela Fernando Repinaldo Filho, analista ambiental do ICMBio e chefe do Parque Nacional Marinho dos Abrolhos. “Os maiores têm o tamanho de um palmo, e a maioria mede entre 3 e 5 centímetros. Temos um grande o esforço de monitoramento e limpeza acontecendo para tentar minimizar os impactos.”
Até a quarta-feira, 6 de novembro, já havia sido registrada a presença de petróleo em três das cinco ilhas – além de Santa Bárbara, a substância apareceu grudada nas rochas de Redonda e Siriba. E, apesar de as áreas de coral serem pelo menos 70 vezes mais extensas do que os territórios insulares, até agora os mergulhadores não detectaram nenhum vestígio de óleo aderido aos recifes.
“A excelente notícia é que não há um só caso de corais em contato com óleo em nenhum dos estados do Nordeste atingidos”, celebra o oceanógrafo Miguel Mies, coordenador de pesquisas do Projeto Coral Vivo, vinculado ao Museu Nacional e financiado pela Petrobras.
Não é sorte, esclarece o pesquisador. Segundo experimentos que Mies e sua equipe conduziram, os corais possuem proteções naturais contra a contaminação do petróleo, que, em outro contexto, facilmente os levaria à morte.
Mas os corais de Abrolhos sabem se defender. Primeiro, por uma característica do ambiente onde se desenvolvem, de grande movimento de águas – ou hidrodinâmica, como a ciência classifica. As águas revoltas tornam mais difícil que uma mancha de petróleo consiga se prender a um coral. O mais impressionante, porém, é a descoberta de que os corais conseguem se proteger ativamente desse piche.
“Algumas espécies são adaptadas a fazer movimentos musculares para retirar o óleo de cima”, revela Mies. É uma luta pela sobrevivência que obriga o coral a essa reação: caso a mancha se depositasse sobre o recife, ele morreria em quatro dias.
Outro problema são as substâncias químicas que se dissolvem na água quando há um vazamento de petróleo – elas poderiam matar os corais em apenas dez dias. E é aí que entra outro achado animador da equipe do Projeto Coral Vivo – e publicado em um artigo na revista científica Nature. Alguns micro-organismos que habitam os corais são capazes de degradar componentes tóxicos do petróleo (os hidrocarbonetos) de maneira muito eficiente, minimizando os efeitos deletérios da substância sobre esses ecossistemas e contribuindo para sua sobrevivência mesmo quando atingidos.
De qualquer forma, Mies acha improvável que haja contaminação química em Abrolhos nessa situação, uma vez que o provável ponto de vazamento de petróleo está a mais de 1.500 quilômetros de distância, o que faz com que dificilmente os contaminantes cheguem lá em concentração suficiente para causar danos.
“Essas características naturais acabam protegendo não apenas os recifes, mas toda a biodiversidade que os habita. Os corais constroem esse ambiente que depois é utilizado por outras espécies”, complementa o oceanógrafo.
Proteção institucional favorece a resiliência dos corais
A ciência também já conseguiu comprovar que o ambiente preservado do Parque Nacional Marinho dos Abrolhos – a mais antiga unidade de conservação brasileira no mar, criada em 1983 – favorece a capacidade de regeneração dos enormes bancos de corais da área.
Entre junho e julho deste ano, por exemplo, pesquisadores documentaram a morte massiva de corais na região dos Abrolhos – que é uma área que se estende para além dos limites do parque nacional, abrangendo da foz do Rio Jequitinhonha, no sul da Bahia, à foz do Rio Doce, no litoral norte do Espírito Santo. O fenômeno, conhecido como branqueamento dos corais, é causado pelo aquecimento da água dos oceanos, uma das facetas do aquecimento global.
“Afetou também o parque, mas aqui várias espécies conseguiram se recuperar. Não houve mortandade”, explica Fernando Repinaldo Filho, do ICMBio. “O fato é que os corais do parque têm maior resiliência do que outros e esse é o principal papel de unidades de conservação marinhas. Algumas pessoas chamam de ‘zonas tampão’: são locais que mantêm melhor qualidade ambiental mesmo quando há degradação no entorno. Por isso, os impactos se diluem nessas localidades.”
Foi justamente a criação do Parque Nacional Marinho dos Abrolhos que levou à descoberta de um grupo remanescente de baleias-jubarte na área. Consideradas praticamente extintas pela caça, que era permitida até 1986, ano em que de fato o parque começou a ser implementado, os cetáceos foram localizados pelas equipes da unidade de conservação em suas viagens regulares até as ilhas.
Naquele momento, restavam apenas 10% de jubartes no Brasil. Mas de lá para cá, a população vem se recuperando a uma taxa anual de 12% graças ao Banco dos Abrolhos (uma área de 48 mil km² onde o fundo do mar é mais raso e, por isso, cheio de corais).
“Estimamos que cerca de 20 mil baleias venham se reproduzir aqui a cada ano”, explica Eduardo Camargo, coordenador-geral do Projeto Baleia Jubarte. “São as mesmas 20 mil todos os anos, que fazem esse movimento: elas vêm no inverno acasalar e voltam no ano seguinte para dar à luz os filhotes, que vão repetir o mesmo ciclo depois.”
Este ano, as baleias foram precoces: a maioria chegou antes do início da temporada e já foi embora da área, evitando qualquer contato com o petróleo. Como elas não se alimentam nesse local, utilizado apenas para reprodução, não há risco de contaminação química na próxima temporada de acasalamento.
Resposta eficiente reduz o risco
O ambiente hidrodinâmico que protege os corais no mar é o oposto do que ocorre em manguezais, onde a principal característica é a água parada, pantanosa, que favorece a deposição do petróleo e é fator de altíssimo risco a esses ecossistemas – tão ricos quanto os recifes. “O impacto físico desse óleo aderindo aos organismos vai matando diretamente por falta de luz ou de oxigênio”, explica Guilherme Dutra, diretor de estratégia costeira e marinha da ONG Conservação Internacional.
Por essa razão, ao identificarem as primeiras evidências de que o petróleo havia chegado à região dos Abrolhos, uma força-tarefa unindo governos, forças armadas, sociedade civil, ONGs, empresários e pescadores instalou uma barreira de contenção de 250 metros de extensão na Barra de Caravelas, a última praia antes do início dos manguezais. A barreira se mostrou eficiente, impedindo que os fragmentos de petróleo seguissem curso e jogando-os para a “praia de sacrifício”, onde são facilmente coletados.
“Estamos tendo uma forte mobilização da comunidade. Estão todos muito atentos, empregando todos os esforços possíveis para tentar minimizar os impactos. No meio do processo, chegamos a ter onze navios aqui no parque realizando monitoramento”, observa o chefe do parque nacional.
Ainda é cedo para assegurar que o pior já passou, embora os sinais sejam positivos. Sem saber com precisão onde o vazamento aconteceu de fato e por quanto tempo houve derramamento de petróleo no mar, é muito difícil prever se atrás dos fragmentos virão manchas maiores. Seu controle pode ser mais complexo porque, embora sejam mais fáceis de ver, elas podem conter material tóxico em seu interior, que pode se solubilizar na água caso se rompam, aumentando o nível de risco para o ecossistema.
“Quando se trabalha com esse nível de incerteza, não se pode se descartar nenhum cenário, desde a não chegada até a chegada completa do óleo [à região]”, pontua Francisco Barros, oceanógrafo da Universidade Federal da Bahia.
Assim como todos os outros entrevistados para esta reportagem, ele salienta o impacto social da tragédia, em uma localidade dependente da pesca artesanal e do ecoturismo, duas atividades econômicas altamente afetadas pelo derramamento de óleo.
“A discussão moderna hoje é em termos de quanto vale um sistema natural como manguezais e recifes, em termos de serviços ambientais prestados”, aponta o oceanógrafo, referindo-se a um artigo científico que estima que 1 hectare de coral equivaleria 352 mil dólares por ano. “São berçários da vida marinha, protegem a linha de costa da erosão e geram alimento para os seres humanos”, ressalta.
Legenda da foto do banner: Vista do Arquipélago de Abrolhos. Foto: Xavier Bartaburu