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Investigação revela esquema de corrupção entre juízes e ruralistas no oeste da Bahia

  • Batizada de Operação Faroeste pela Polícia Federal, a investigação deflagrada em 19 de novembro mira a grilagem de terras no oeste da Bahia, região que é uma das maiores produtoras de soja do Brasil, em um esquema de corrupção que envolve juízes, desembargadores e servidores do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia, além de advogados e produtores rurais, que agiam para garantir a venda de decisões judiciais que legitimavam terras roubadas na região. O total de área grilada chega a 800 mil hectares.

  • O alto escalão do Judiciário baiano está envolvido: foi afastado o presidente do Tribunal de Justiça da Bahia, Gesivaldo Britto, outros três desembargadores e dois juízes. Sérgio Humberto Sampaio, um dos juízes afastados, está envolvido em decisão que beneficia o Agronegócio Estrondo contra comunidades tradicionais geraizeiras em Formosa do Rio Preto. Sampaio reduziu a área reivindicada pelas comunidades de 43 mil para 9 mil hectares em 2018.

  • O advogado Márcio Duarte Miranda, genro da desembargadora Maria do Socorro Barreto Santiago, igualmente afastada e ex-presidente do TJ-BA, é citado como um dos integrantes do esquema que favorece a Estrondo.

  • Walter Horita, o principal arrendatário da Estrondo, também é citado na investigação por ter pagado propinas milionárias e movimentado R$ 22 bilhões entre 2013 e 2019, sendo R$ 7,5 bilhões sem origem e destino. Horita teria tentado se reunir com o vice-governador da Bahia, João Leão.

Silo da Bunge para armazenagem de grãos situado dentro do condomínio da Estrondo. Foto: Agronegócio Condomínio Cachoeira do Estrondo/divulgação.

Listado pelo Incra como um dos maiores casos de grilagem de terras no Brasil, o Agronegócio Condomínio Cachoeira do Estrondo ocupa, no oeste da Bahia, uma área total superior a 444 mil hectares – o equivalente a três vezes o município de São Paulo.

Com um longo histórico de conflitos com comunidades tradicionais, autuações do Ibama por desmatamento ilegal, casos de trabalho escravo análogo à escravidão e de fraude, pela primeira vez a Estrondo é citada em uma investigação federal que revela uma rede de corrupção envolvendo juízes, desembargadores, advogados e produtores rurais para a compra de decisões judiciais que garantem a posse de terras roubadas. A investigação leva o nome de Operação Faroeste.

A decisão do Superior Tribunal de Justiça obtida pela reportagem lista nominalmente o juiz Sérgio Humberto Sampaio – que em novembro de 2018 proferiu decisão favorável à Estrondo, reduzindo uma área requisitada por 120 famílias de geraizeiros –; Walter Yukio Horita, um dos maiores fazendeiros da Estrondo; e Márcio Duarte Miranda, preso temporariamente, advogado e genro da desembargadora Maria do Socorro Barreto Santiago, ex-presidente do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia (TJ-BA) de 2016 a 2018, agora afastada do cargo.

Em sua decisão, o ministro Og Fernandes afirma que Miranda e outros investigados, “não satisfeitos com o esquema nas terras na região de Coaceral, integram organização criminosa que molda, atualmente, idêntica investida na região de Estrondo, em dimensão superior a 800 mil hectares”. O tamanho de área grilada é a soma da Fazenda São José, de 360 mil hectares, com a Estrondo, cerca de 444 mil, ambas citadas no texto. 800 mil hectares é o equivalente a 11 vezes o tamanho do município de Salvador, capital do Estado.

As famílias de geraizeiros lutam na justiça há anos para que seja reconhecida a área em que vivem desde o século 19: cerca de 43 mil hectares remanescentes de Cerrado, que a Estrondo alega serem parte da reserva legal do condomínio, dentro dos 20% de preservação do bioma que todo produtor precisa assegurar de acordo com o Código Florestal.

Imagem do Vale do Rio Preto, área remanescente de Cerrado por cujo direito de uso lutam as comunidades geraizeiras no entorno da Estrondo. Foto: Agronegócio Condomínio Cachoeira do Estrondo/divulgação.

Fazendeiro da Estrondo movimentou R$ 22 bilhões

O Agronegócio Condomínio Cachoeira Estrondo é um condomínio de fazendas administrado por diversas empresas. Entre os 41 arrendatários estão os irmãos Walter Yukio Horita e Wilson Hideki Horita.

Tido como “produtor modelo” pelo agronegócio há muitos anos, Walter Horita movimentou, de acordo com a investigação, R$ 22,2 bilhões de reais de janeiro de 2013 até o presente momento. Desse montante, R$ 7,5 bilhões não apresentam origem e destino.

O valor movimentado coloca Walter Horita facilmente entre os homens mais ricos do Brasil. No Top 10 da Forbes, os irmãos Batista da JBS, por exemplo, têm fortuna estimada em R$ 14,7 bilhões cada.

De acordo com a decisão do STJ, Walter Horita é “um dos produtores rurais supostamente beneficiados pela organização criminosa” e apresentou, nas suas conversas, “livre trânsito entre diversas autoridades baianas e atuação na defesa dos interesses criminosos ora investigados, sendo evidente a sua relação com outros investigados”. Horita teria pagado milhões de reais a alguns dos envolvidos.

Em diálogos transcritos, Horita combina viagem de avião a jato de Barreiras a Salvador para ver “o negócio da discriminatória” – referente à ação da Procuradoria Geral do Estado em favor das comunidades de geraizeiros de Formosa do Rio Preto –, ter uma audiência com um desembargador do TJ-BA e também tentar viabilizar “um almoço ou janta” com o vice-governador da Bahia, João Leão (do partido Progressistas, antigo PP).

Em uma das transcrições, Walter Horita comenta com o interlocutor Sergio Pitti que iria a Salvador e que um amigo em comum “mandou uma mensagem para João Leão. Disse que tá com saudade sua e minha também”. Depois, acrescenta: “A gente vai lá conversar com ele [João Leão], tá bom?”.

Procurado para se pronunciar, a assessoria do vice-governador não comentou se a reunião aconteceu ou não, se Horita e Leão se reuniram em outras oportunidades e se esse encontro foi divulgado na agenda oficial e ainda qual o relacionamento entre os dois.

Em resposta à reportagem, a assessoria da Estrondo afirmou que “não cabe à administração do empreendimento Cachoeira do Estrondo fazer comentários sobre qualquer operação policial. No entanto, é importante esclarecer que o grupo Horita nunca fez parte do empreendimento, uma vez que comprou algumas fazendas e opera com administração própria, tendo vínculo somente como arrendatário de áreas”.

Horita está listado no próprio site da Estrondo como um dos arrendatários – a administração do empreendimento funciona como um condomínio – e tem cerca de 100 mil hectares dentro do complexo da Estrondo, adquiridos em 2011. No total, o grupo Horita cultiva 150 mil hectares no oeste baiano, entre soja, milho e algodão. Episódios de violência contra os membros das comunidades tradicionais de geraizeiros vizinhos à Estrondo são constantes.

A decisão do STJ também cita que Walter Horita teria pagado R$ 1,3 milhão para a advogada Rosimeri Martins, que repassou R$ 931 mil para Júlio Cesar Ferreira, sendo que dois depósitos no valor de R$ 400 mil ocorreram quando Júlio Cesar ainda atuava como assessor de desembargador do TJ-BA. Os endereços residenciais e profissionais de Walter Horita foram alvo de busca e apreensão na operação da Polícia Federal.

Mapa do Agronegócio Condomínio Cachoeira do Estrondo, conjunto de fazendas formado por 41 arrendatários com área de total de 444 mil hectares – equivalente a três vezes o município de São Paulo.

Longa teia de corrupção

Nomeado para a comarca de Formosa de Rio Preto pela desembargadora Maria do Socorro Barreto Santiago, também investigada, o juiz Sérgio Humberto Sampaio, atualmente afastado do cargo por 90 dias, foi quem reduziu de 43 mil para 9 mil hectares a área requisitada pelas comunidades geraizeiras da região.

Após longa batalha judicial com diversos recursos, pressão social e audiências públicas até na Câmara dos Deputados, além de parecer do Ministério Público da Bahia a favor das comunidades, a área foi novamente reconhecida com o tamanho requerido em outubro de 2019. O despacho para cumprimento de posse está nas mãos do oficial de Justiça, o que pode acontecer a qualquer momento.

Os 43 mil hectares foram definidos por técnicos do Ministério Público da Bahia e já representam quase a metade dos 82 mil hectares que as comunidades reivindicavam originalmente como suas áreas efetivas de uso para agricultura, extrativismo e pecuária.

Quanto a Sérgio Sampaio, a ação do STJ registra movimentação de R$ 14 milhões feita pelo juiz entre janeiro de 2013 e agora. Do crédito total de R$ 7 milhões recebidos, R$ 1,7 milhão foi em pagamentos de salários, “o que indica um volume de ganhos totalmente incompatível com os vencimentos recebidos como servidor público pelo investigado”, diz o texto. O STJ destaca ainda a vida luxuosa do juiz e sua esposa, que se deslocam em aviões próprios pelo país e moram em mansão avaliada em R$ 4,5 milhões.

De acordo com resposta enviada pela Associação dos Advogados dos Trabalhadores Rurais da Bahia (AATR), que representa as comunidades, a desembargadora Maria do Socorro teria determinado o fechamento da Vara Regional de Conflito Agrário e Meio Ambiente justamente para que as decisões pudessem ir para as mãos de Sampaio em Formosa do Rio Preto, facilitando o esquema revelado pela operação.

“O juiz Sergio Sampaio tomou decisões absolutamente ilegais, visando proteger os grupos econômicos que compõem o condomínio. Nossa expectativa é que os responsáveis, tanto corruptos quanto corruptores, sejam responsabilizados e que o Poder Judiciário adote medidas efetivas para evitar que casos semelhantes se repitam”, diz a nota.

O Tribunal de Justiça do Estado da Bahia se disse “surpreendido pela ação da Polícia Federal”. Em nota, o Tribunal afirmou que “a investigação está em andamento, mas todas as informações dos integrantes do TJ-BA serão prestadas posteriormente com base nos Princípios Constitucionais”.

Já o Ministério Público da Bahia afirmou que havia solicitado participação na qualidade de fiscal da ordem jurídica no caso das comunidades, mas o pedido foi negado pela Justiça, que citou que a causa seria particular e não teria interesse público. “O MPBA recorreu desta decisão, mas o agravo não chegou a ser julgado pelo Tribunal de Justiça da Bahia”, respondeu, em nota, à reportagem. Por usa vez, o TJ-BA se negou a comentar o motivo pelo qual o pedido do Ministério Público não foi julgado.

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