Sob a administração de Jair Bolsonaro, a Amazônia experimenta conflitos crescentes, à medida que madeireiros e grileiros – inspirados pela retórica incendiária do governo – intensificam suas invasões a terras indígenas e tradicionais.
Ao longo do rio Mamuru, no Pará, indígenas Sateré-Mawé e ribeirinhos resistem juntos às incursões.
Madeireiros e forasteiros reivindicam a área localizada entre a Terra Indígena Andirá-Marau e o Projeto Estadual de Assentamento Agroextrativista Mamuru, que engloba 18 comunidades ribeirinhas. De acordo com os Sateré, esse trecho é parte de seu território ancestral e foi erroneamente excluído no processo de demarcação.
A esses conflitos, soma-se uma nova lei do Pará que facilita legalização de terras públicas ilegalmente apropriadas.
No início deste ano, uma equipe da Mongabay visitou comunidades indígenas e tradicionais nos rios Andirá, Mamuru e Mariaquã, entre os estados do Pará e do Amazonas. A viagem foi financiada pelo The Rainforest Journalism Fund, em parceria com o Pulitzer Center e a Mongabay.
VALE DO RIO MAMURU, Pará, Brasil – Ao chegar a essa remota região da Bacia Amazônica, a equipe de reportagem da Mongabay foi surpreendida por um ruído constante, que ecoava ao longo do trajeto pelo rio: o som de tratores e motosserras vindo das matas.
Esse ruído é o aspecto mais perceptível de um conflito local que representa uma disputa sobre o tipo de desenvolvimento que se pretende para a Amazônia. Está em questão se grandes extensões de floresta devem continuar como terras de uso comum, utilizadas por comunidades ribeirinhas e indígenas como meio de subsistência; ou se devem ser cortadas e transformadas em propriedade privada para exploração madeireira, agronegócio ou mineração.
Num momento em que o mundo discute formas de evitar uma catástrofe climática, a resolução desse tipo de conflito assume relevância para além das fronteiras nacionais.
Um choque de culturas ao longo do rio Mamuru
Durante décadas, a relação entre indígenas e ribeirinhos nessa região foi tensa e pontuada por desconfianças. A historiadora Bárbara Weinstein, professora de História da América Latina e do Caribe na Universidade de Nova York, explica em um de seus livros que os seringais normalmente eram instalados em territórios indígenas, mediante violentas expulsões realizadas pelos barões da borracha. Essas áreas foram reocupadas por trabalhadores vindos do Nordeste a partir da segunda metade do século 19 para explorar a borracha. E os ribeirinhos de hoje são descendentes desses imigrantes nordestinos.
Foi após o declínio da economia da borracha no início do século 20 que se iniciou uma interação mais harmoniosa. De acordo com a professora de História da Universidade Federal de Santa Catarina, Cristina Wolff, a sobrevivência dos descendentes desses imigrantes foi possível graças à aquisição de tecnologias indígenas no complexo manejo da floresta.
Agora, diante de uma ameaça comum, a relação parece estar evoluindo para uma fase de cooperação: comunidades indígenas e ribeirinhas entenderam que precisam trabalhar juntas para proteger os recursos naturais de que dependem para sobreviver.
Primeiro, os invasores retiram a madeira
A atividade madeireira vem se alastrando rapidamente no vale do rio Mamuru, tornando a floresta mais suscetível a incêndios. De acordo com os moradores de Monte Carmelo, uma das comunidades do Projeto Estadual de Assentamento Agroextrativista (Peaex) Mamuru, a extração ilegal de madeira tem gerado sérios impactos. “Antes, andávamos um pouco e logo conseguíamos matar uma caça; agora elas sumiram. Que bicho fica perto de um barulho desse?”, questiona Francisco Caetano da Silva, uma das lideranças da comunidade.
Atualmente, os madeireiros estão autorizados a atuar apenas na margem leste do rio Mamuru, onde há muitas áreas de exploração madeireira licenciadas para atender às empresas detentoras de concessões florestais – um sistema em que o Estado leiloa grandes porções por períodos de até 40 anos.
Na margem oeste, onde ainda não há atividade madeireira autorizada, os empresários se esforçam para convencer os moradores a licenciar planos de manejo. Isso possibilitaria aos madeireiros comprar dos ribeirinhos o direito de exploração dessas florestas.
Junto dos planos de manejo, viria a abertura de ramais para o transporte da madeira. E, comumente, “essas muitas vias abertas na floresta abrem caminhos para a exploração clandestina em áreas não licenciadas”, explica James Fraser, professor da Universidade de Lancaster, que pesquisa a região. “Isso possibilitaria utilizar os documentos emitidos pelo plano de manejo para dar verniz de legalidade à madeira roubada”, acrescenta.
Recursos cada vez mais escassos
Quando a equipe da Mongabay chegou à comunidade de Forca, também no Peaex Mamuru, Darielma Bezerra esperava o retorno do marido, há uma semana metido na floresta com outros três parentes em busca de óleo de copaíba. “Meu sogro conta que antes tinha muita copaibeira aqui perto. Mas agora as madeireiras estão desmatando muito, e quem fica sofrendo somos nós”, lamenta.
“Eles precisam ir longe para conseguir uma boa quantidade”, diz Darielma. O óleo é vendido em Parintins a 40 reais o litro. “Muito pouco para tanto tempo, trabalho e risco”, desabafa, depois de contar a saga do sobrinho picado por uma pico-de-jaca – uma variedade de jararaca – na mais recente incursão em busca das copaibeiras.
Cientes de que as chances de convencer as comunidades a adotar planos de manejo crescem à medida que diminuem os recursos que asseguram a sobrevivência da população local, os madeireiros aproveitam-se dessa vulnerabilidade.
Em Monte Carmelo, o líder Samuel Mendes de Souza confirmou que as empresas madeireiras oferecem entre 50 e 300 reais por cada metro cúbico de madeira nobre. Se comparado ao que o marido de Darielma adquire com o óleo de copaíba, o valor é bastante atrativo. Mesmo assim, está longe de ser um preço justo: o metro cúbico do ipê, por exemplo, serrado e pronto para exportação, é vendido por cerca de 7 mil reais no porto de Belém. Ainda que se descontem as despesas dos madeireiros, eles obtêm um lucro colossal às custas das comunidades.
As negociações, hoje, são mediadas pela Associação dos Produtores do Rio Mamuru. Mas existe um impasse sobre quem deve representar a instituição. Francisco Caetano de Souza foi eleito no final de 2018 e até hoje não tomou posse. Quem segue à frente da associação é Raimundo Costa dos Santos que, após perder o pleito, recorreu à Justiça e obteve uma liminar para continuar na presidência por mais um ano. Sob condição de anonimato, alguns ribeirinhos acusam o atual dirigente de atuar em favor de madeireiros e grileiros.
Raimundo Costa dos Santos recebeu a equipe da Mongabay para uma entrevista em sua casa, uma moradia que destoa das demais localizadas às margens do Mamuru, com água encanada, uma ampla varanda e duas lanchas ancoradas numa pequena praia particular. Durante a conversa, ele defendeu o pacto com o empreendimento madeireiro como forma de as comunidades se beneficiarem com uma atividade mais rentável.
No entanto, muitos moradores locais – particularmente aqueles que assistiram a acordos semelhantes feitos em outras partes da Amazônia – relutam em assinar um contrato. Samuel Mendes é um deles e explica suas motivações: “Enquanto não houver licença dos órgãos ambientais para se fazer extração de madeira deste lado do rio, a abertura de estradas ou portos pode ser identificada como atividade ilegal. Mas, se fizermos os planos de manejo, vai ficar muito difícil controlar se os madeireiros estão tirando apenas o que podem e, principalmente, só dos locais autorizados”.
A reportagem teve acesso a um “Termo de intenção para contrato de parceria”, firmado entre uma empresa e os ribeirinhos do Mamuru. O documento apresenta uma ênfase notável, não no quanto se pagaria pela madeira, mas nas “benesses” que os madeireiros ofereciam: doação de um notebook por comunidade, instalação de internet, perfuração de quatro poços artesianos e uma voadeira. Ou seja: comunicação, saneamento básico e transporte.
O pesquisador James Fraser considera a situação preocupante: “Em primeiro lugar, a negociação parece uma renovação do Brasil colônia, em que europeus distribuíam espelhinhos e levavam ouro. O notebook ou a voadeira são os novos espelhinhos que se entregam em troca de um montante imenso de recursos naturais. Além disso, há outro problema grave: saneamento básico, comunicação e transporte são direitos civis. É um caminho perigoso as comunidades deixarem de exigir aquilo a que têm direito para receber isso como uma ‘cooperação’ de empresas privadas. No mundo todo, máfias nasceram assim”, conclui.
Grilagem de terras, a etapa seguinte
Enquanto as comunidades lutam para lidar com os madeireiros, outra ameaça surge: a grilagem. A área localizada entre a TI Andirá-Marau e o Peaex Mamuru é uma faixa de terras públicas utilizada tanto pelos indígenas Sateré quanto pelas famílias ribeirinhas para atividades como caça e coleta de produtos florestais, mas seu direito de explorá-la nunca foi oficialmente reconhecido.
A área abriga também algumas aldeias fora da terra indígena. Na aldeia Ipiranga, por exemplo, tem sido frequente a presença de pessoas que se identificam como “proprietários” das terras e mostram documentos do Cadastro Ambiental Rural (CAR) – um instrumento de controle ambiental – para tentar expropriar os ocupantes do local. “Eles vêm entrando, atrás de madeira. E hoje esse governo que está aí parece que facilita pra eles”, comenta Ladaiudo Almeida, líder em Ipiranga.
Em junho, Ladaiudo fez uma denúncia à Fundação Nacional do Índio (Funai) e pediu ajuda para retirar os invasores da área indígena. “Eles eram seis. Ofereceram 50 mil reais para retirar madeira e abrir uma estrada dentro da reserva”.
Como a ajuda não veio, os próprios indígenas se encarregaram de expulsar os invasores. Um grupo de guerreiros fez uma investida contra um acampamento que havia sido montado em seu território com objetivo de fazer as medições e colocações de marcos – um passo obrigatório no processo de grilagem de terras. Os indígenas destruíram o acampamento e ainda apreenderam um sofisticado aparelho de GPS, usado para medição de terras, que custa em torno de 5 mil dólares. E avisaram: “Se for preciso, vamos partir para a guerra”.
Uma possível solução
James Fraser acredita que a terra disputada deve ser dividida entre a Terra Indígena Andirá-Marau e o Peaex Mamuru. “O limite leste da terra indígena deveria abranger aldeias que ficaram de fora. Da mesma forma, o território dos ribeirinhos é limitadíssimo. Há comunidades que ficaram com uma faixa de 500 metros entre o rio e o limite do assentamento. E elas usam quilômetros além, com caça e coletas de diversos produtos”, explica.
Ao indicar no mapa a porção de terras públicas estaduais em disputa, o pesquisador levanta uma preocupação: “Deixar essa faixa (que é ocupada por indígenas e ribeirinhos) como terra “disponível”, automaticamente faz da região um alvo de grileiros e madeireiros”.
Além de sua importância social, a faixa em questão é um maciço florestal que conecta um importante corredor de áreas protegidas, como o Parque Nacional da Amazônia, a Reserva Extrativista Tapajós-Arapiuns e a Terra Indígena Andirá-Marau.
Comunidades ribeirinhas resistem juntas
Na aldeia Ipiranga, Ladaiudo observava as crianças brincarem com um caititu, criado ali como animal de estimação.
“Esses meninos, eles vão precisar dessa floresta para sobreviver”, comenta. “Ainda vivemos praticamente da caça e da pesca. Mas tendo essa barulhada nesse mato, as caças vão embora, e vamos viver de quê?”, indaga.
Proteger os descendentes da privação que a atividade madeireira e a grilagem de terras podem gerar é o principal motor da resistência de indígenas e ribeirinhos da região. Diante da equipe da Mongabay, Ladaiudo Almeida e Samuel Mendes firmaram o compromisso de impedir a entrada de grileiros e madeireiros nas terras. “Juntos nós vamos ter mais força para proteger o que é nosso”, afirma Ladaiudo. “Só entrarão se passarem por cima do nosso cadáver”, completa Samuel.
Um revés e uma vitória para os povos da floresta
Em julho deste ano, a situação ficou ainda pior para indígenas e ribeirinhos no Pará. O legislativo estadual aprovou e o governador sancionou a Lei 8.878, de 8 de julho de 2019, que altera as regras para regularização fundiária no estado, premiando grandes invasores de terras.
Pela legislação anterior, grupos como aqueles em conflito com os Sateré-Mawé teriam que comprovar residência permanente na terra para conseguir o título dos lotes requeridos. A nova lei, entre outras facilidades, elimina essa exigência. O requerente à titulação não mais precisa viver na terra ou praticar ali qualquer atividade, bastando declarar a pretensão de fazê-lo.
Segundo nota técnica emitida pelo Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), a legislação beneficia “alguém que invadiu terra pública ilegalmente, controla a área por meio de terceiros e nunca implementou qualquer atividade considerada agrária, o que é uma característica da grilagem de terras com fins especulativos”. Ainda segundo o Imazon, 21 milhões de hectares de terras poderiam ser ilegalmente privatizados por meio dessa legislação. Em carta, outras 62 entidades criticaram a nova legislação, que obteve amplo apoio apenas dos setores ruralistas.
Apesar da mudança nas regras, os grileiros sofreram um revés nas áreas visitadas pela reportagem, e não conseguiram comprovar a “posse mansa e pacífica”.
Com base no material publicado por esta série de reportagens – enviado diretamente para promotores de Justiça –, o Ministério Público do Estado do Pará (MP-PA) recomendou a suspensão de todos os processos de regularização fundiária individuais que se sobrepõem às ocupações indígenas e ribeirinhas nas bacias dos rios Mamuru, Ipiranga e Mariaquã. A recomendação, assinada pela promotora de Justiça Ione Nakamura, solicita a paralisação dos processos por meio dos quais fazendeiros e empresários tentam privatizar terras ocupadas por comunidades e aldeias.
“Um freio à manobra dos grileiros, nesse momento, pode ser considerado uma grande conquista”, comentou Benito Miquiles, liderança da aldeia Campo Branco, uma das áreas ocupadas pela etnia Sateré-Mawé, mas que ficaram de fora dos limites demarcados em 1986.
O documento expedido pelo MP-PA também solicitou ao Instituto de Terras do Pará (Iterpa) que declare ciência sobre o interesse dos Sateré-Mawé de corrigir os limites da TI Andirá Marau para, finalmente, englobar a área onde ocorre o conflito, impossibilitando, assim, a transferência da terra aos grileiros sob o pretexto de “não saber” que a área é ocupada pelos povos da floresta.
Imagem do banner: barcaças de exploração de madeira ancoradas na margem leste do rio Mamuru, onde existem concessões legais de exploração de madeira. No lado oeste, onde as invasões estão aumentando, não há planos de manejo autorizados. Foto: Matheus Manfredini
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