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Amazônia brasileira é um dos piores lugares para se construir hidrelétricas, conclui estudo

  • Classificada como energia limpa, eletricidade gerada a partir do aproveitamento de rios amazônicos pode emitir até dez vezes mais gases de efeito estufa do que as termelétricas quando as barragens estão mal projetadas.

  • Algoritmo desenvolvido por cientistas permite encontrar localização mais favorável para instalação de empreendimentos, combinando aproveitamento energético máximo com baixa emissão de carbono.

  • Aplicado a projetos já existentes e futuros, cálculo associou menor potencial de emissão a barragens situadas em áreas altas da floresta e em rios menores – condições que tornam a floresta equatorial brasileira a mais inadequada para hidrelétricas entre os países amazônicos.

Centenas de milhares de troncos retorcidos e secos emergem do lago da hidrelétrica de Balbina, a 100 quilômetros de Manaus. São uma espécie de mausoléu da floresta porque sinalizam que ali jaz, submersa, uma área natural maior que o município de São Paulo. Além de ter provocado um desequilíbrio ecológico grave, com extinção de espécies de mamíferos, aves e tartarugas, o imenso reservatório de 2,3 mil km² faz de Balbina uma hidrelétrica mais poluente do que uma termelétrica a carvão em razão da grande quantidade de matéria orgânica terrestre em decomposição debaixo d’água. Tudo isso para gerar uma quantidade ínfima de energia – apenas 2% da capacidade instalada de Itaipu.

Preocupados com a possibilidade de surgimento de novas Balbinas na bacia amazônica, cientistas da Universidade de Cornell desenvolveram uma ferramenta baseada em Inteligência Artificial capaz de apontar usinas potencialmente problemáticas para a natureza e sugerir conjuntos de hidrelétricas que causem o menor dano ambiental em um determinado cenário de produção energética.

“Balbina é a pior hidrelétrica do mundo: se dividirmos sua emissão de gases de efeito estufa pela energia que ela gera, é dez vezes pior do que uma termelétrica. Por outro lado, há hidrelétricas na Amazônia que podem ser tão eficientes como uma eólica. Nosso trabalho foi estudar quais tendem a repetir o caso de Balbina, e quais são avanços”, explica Rafael Almeida, brasileiro que liderou a primeira publicação do grupo, focada nas emissões de gases de efeito estufa desse tipo de empreendimento.

O trabalho de Almeida, resultado do pós-doutorado que ele desenvolve nos Estados Unidos, foi publicado em um dos braços da revista científica Nature, a Nature Communications, em setembro. A má notícia é que alguns dos 351 projetos de novas hidrelétricas na bacia do Rio Amazonas são tão ou mais prejudiciais do que a malfadada usina de Balbina em termos de emissão de gases de efeito estufa.

“Algumas hidrelétricas propostas para a Amazônia brasileira, peruana e boliviana podem resultar em emissões semelhantes às de fontes fósseis. Fazer as escolhas erradas pode trazer resultados muito indesejáveis”, aponta o pesquisador.

Basta lembrar que as 158 barragens existentes na bacia amazônia têm emissões coletivas muito superiores ao limite considerado sustentável pela ONU: algo entre 90 kg e 200 kg de CO2 por MWh. O máximo previsto na Agenda 2030, de acordo com a ONU, é de 80 kg de CO2 por MWh.

A boa notícia, segundo o estudo, é que é perfeitamente possível produzir energia elétrica na Amazônia dentro dos padrões de emissão de carbono aceitáveis. “Desde que o planejamento seja feito de maneira estratégica”, ressalva Almeida. Pelos cálculos dos pesquisadores, até 80% do potencial de geração previsto para as 351 novas hidrelétricas na Amazônia poderia ser atingido sem ultrapassar o limite determinado pela ONU.

“É uma decisão que cabe à sociedade tomar, sobre qual o impacto máximo desejado. A partir desse ponto ‘ótimo’, não será possível obter mais energia sem acrescentar impacto porque as combinações mais eficientes já terão sido utilizadas”, aponta Almeida.

Imagem de satélite da Usina Hidrelétrica de Belo Monte. Foto: Google Earth.

Geografia brasileira é inadequada

Analisando os cenários mais favoráveis para a instalação de hidrelétricas, o grupo de cientistas concluiu que há um fator determinante para reduzir a pegada de carbono (índice que mede o impacto da atividade humana na natureza) das usinas na bacia amazônica: a altitude.

Eles perceberam que 92% das hidrelétricas previstas para “terras altas” da Amazônia (acima de 500 metros) seriam sustentáveis no longo prazo (em uma cenário de 100 anos), enquanto apenas 36% das usinas em planícies se manteriam dentro do limite máximo de emissão previsto na ONU. Em uma perspectiva de curto prazo (em até 20 anos), quando a poluição decorrente da decomposição da matéria orgânica é maior, um quarto dessas hidrelétricas instaladas nas terras baixas poderia ser ainda mais tóxica que as termelétricas a carvão.

Isso acontece porque os empreendimentos situados em áreas altas da floresta demandam reservatórios menores para gerar a mesma energia dos que estão em regiões planas. Rios de menor tamanho também tendem a ser menos propícios à instalação de usinas poluentes: “Regiões de cabeceira, com declividade maior, resultam em barragens mais encaixadas”, justifica Almeida.

O problema é que ambas as características são raras na Amazônia brasileira, usualmente plana e baixa, e onde ocorrem rios imensos – como o próprio Amazonas. Isso explica porque a maioria das usinas com alta pegada de carbono está na porção brasileira da bacia amazônica. Por outro lado, áreas de floresta no sopé da Cordilheira dos Andes, em países como Bolívia, Peru e Equador, têm alta declividade, o que faz delas bons locais para a instalação de hidrelétricas.

Projetos transnacionais de geração de energia poderiam ser uma opção, mas, segundo Almeida, eles esbarram em várias questões políticas e logísticas. “Seria uma alternativa bastante complicada de se implementar. Talvez o que se precise considerar no Brasil é mesmo o uso de outras fontes energéticas, e não insistir quando não é possível explorar de maneira sustentável”.

Almeida assinala que há outros fatores que influenciam nas emissões de gases de efeito estufa de uma hidrelétrica – é o caso das usinas a fio d’água, aquelas que operam com reservatórios mínimos e geram energia a partir do fluxo natural dos rios, como Belo Monte, no Pará. Mas essa alternativa muitas vezes é descartada porque não seria segura o suficiente do ponto de vista energético. “É um problema complexo”, admite o pesquisador.

Cálculos complexos

A grande inovação da pesquisa da Universidade de Cornell é que ela oferece um quadro amplo da situação; um olhar integrado sobre o conjunto de empreendimentos na Amazônia, abarcando vários países inclusive. Trocando em miúdos, é como se, antes de construir Belo Monte, no Pará, se avaliasse a possibilidade de produzir a mesma energia (10 GW) com diferentes combinações. Poderia ser, por exemplo, em duas hidrelétricas de 5 GW cada, ou ainda propor cinco usinas com capacidade de 2 GW, mesmo que em estados diferentes.

Para encontrar essas alternativas, entrou em campo a equipe de cientistas da computação liderada pela professora Carla Gomes, diretora do Instituto de Sustentabilidade Computacional. O desafio não era nada trivial, porque, para dar conta de todas as combinações possíveis entre as centenas de hidrelétricas existentes e previstas para a região, foi preciso programar mais cálculos do que o número de grãos de areia existentes nas praias de todo o planeta Terra – e multiplicados por cinco!

“É urgente desenvolver técnicas mais éticas para produzir energia com menos emissões de gases de efeito estufa. Nosso modelo contribuiu com essa meta porque foca em múltiplos objetivos de uma única vez, enquanto a pesquisa tradicional olha apenas para um objetivo”, comemora Gomes.

Na verdade, o grupo é integrado por 30 pesquisadores, o que inclui pessoal de universidades, ONGs e organizações governamentais. São especialistas das mais diversas áreas, de pesca a políticas públicas, passando. Todos estão sob a coordenação do professor Alexander Flecker, da área de Ecologia e Evolução.

Por ora, o algoritmo está disponível para que outros pesquisadores, gestores públicos e empreendedores, possam utilizar para seus próprios cálculos e projeções de impacto – e não se aplica apenas a barragens e emissões de gases de efeito estufa. “Pode ser utilizado para calcular outras variáveis, como terras indígenas afetadas”, exemplifica Rafael.

Seu uso tampouco está restrito à região amazônica: “Focamos na Amazônia, mas nossa ferramenta pode ser generalizada para outras regiões que estão sofrendo rápida expansão da hidroeletricidade, como as bacias do Congo, na África, e do Mekong, na Ásia”, conclui o coordenador Flecker.

Banner: Usina Hidrelétrica de Santo Antônio, no Rio Madeira (Rondônia). Foto: VisualHunt/CC BY-NC-SA

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