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Projeto no Acre recompensa comunidades que mantêm a mata em pé

  • Para preservar as florestas que cobrem cerca de 90% de sua área, o Acre implantou um esquema de crédito de carbono que recompensa comunidades locais por iniciativas sustentáveis que resultam em manter a pé.

  • O Sistema de Incentivo aos Serviços Ambientais (SISA) recompensa a coleta sustentável de látex, castanhas e outros produtos florestais, atividades consideradas “trabalho verde”. Em essência, não faz da posse legal da terra um pré-requisito para qualificar um beneficiário a receber os incentivos, que podem incluir subsídios e insumos agrícolas.

  • Um novo estudo, porém, critica o programa por dar às autoridades estaduais o poder de determinar o que conta como “trabalho verde”. O programa já promove práticas agrícolas intensivas e lagoas artificiais, e especialistas alertam que práticas ainda mais prejudiciais podem passar a ser permitidas com o novo mandato do governo estadual.

  • Não há, também, uma comprovação de que o programa contribua para a conservação da floresta amazônica, uma vez que a taxa de desmatamento no Acre vem se mantendo relativamente estável desde que o SISA entrou em vigor.

Um estudo publicado este ano no The Journal of Peasant Studies destaca o programa estadual de crédito de carbono criado pelo Acre para reduzir o desmatamento e gerar benefícios socioeconômicos em comunidades rurais, evitando assim a burocracia que de costume é exigida para assegurar os direitos de posse de terra.

No Acre, quase 90% do seu território ainda está coberto pela floresta amazônica. Uma área de 164 mil quilômetros quadrados que o Sistema de Incentivo aos Serviços Ambientais (SISA) pretende salvaguardar oferecendo recompensas às comunidades que apresentarem iniciativas sustentáveis, remuneradas pelo volume de carbono que permanece armazenado na floresta.

Maron Greenleaf, antropóloga da Dartmouth College, no estado de New Hampshire (EUA), entrevistou moradores, funcionários do governo e órgãos como o Conselho Missionário Indígena (CIMI), a Universidade Federal do Acre e o grupo agroflorestal PESACRE para descobrir como o SISA tem funcionado na prática. No estudo, ela descreve como a falta de direitos formais sobre a terra não exclui a população rural de baixa renda dos benefícios. Mas, também, alerta sobre os riscos inerentes ao programa, como a liberdade que dá às autoridades estaduais de decidir quais atividades receberão os incentivos.

Evidência de extração de madeira mecanizada em Feijó, Acre. Foto: Maron Greenleaf.

Monetizando a captura de carbono

Aprovado pela Assembleia Legislativa do Acre em 2010, o SISA faz parte do REDD+ (Redução das Emissões por Desmatamento e Degradação Florestal), um programa negociado pela Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UNFCC), cujo objetivo é gerar incentivos de mercado para proteger florestas ricas em carbono nos países em desenvolvimento e promover um impacto socioeconômico positivo nas comunidades do entorno.

Frequentemente, “a única maneira de a população ganhar dinheiro com a floresta é por meio do desmatamento, tanto para aproveitamento da madeira quanto para abrir espaço para a agricultura, a pecuária ou outros usos da terra”, disse Greenleaf. Os programas da REDD+ tentam corrigir isso “procurando oferecer um valor monetário pelo ‘serviço’ de sequestro de carbono das florestas, de modo que elas também possuam um valor que reflita – até certo ponto e em termos financeiros – seu valor climático ”, afirmou.

O Banco Alemão de Desenvolvimento KFW comprou até agora 25 milhões de euros (cerca de 115 milhões de reais) em créditos de carbono – atribuindo valor ao dióxido de carbono absorvido pelas florestas acreanas – em troca de uma redução de 16,5% nas emissões de gases de efeito estufa no estado relativas ao período entre 2011 e 2015.

O SISA difere dos modelos mais tradicionais de compensação de emissões de carbono: em vez de se basear na posse legal das terras como base para a distribuição dos incentivos, recompensa indivíduos que trabalharam diretamente no campo de uma maneira que seja classificada como benéfica.

Para o SISA, produtores rurais de culturas sustentáveis e produtos florestais (como leguminosas, castanha do Brasil ou látex), além daqueles que evitam atividades prejudiciais como queima controlada, são considerados “prestadores de serviços ambientais”. A esses, oferece benefícios como subsídios financeiros, insumos agrícolas e gratuidade no acesso a determinados serviços. Além disso, o programa incentiva atividades como pecuária sustentável e piscicultura em terras previamente desmatadas.

Gado ao lado de uma escola em Feijó, Acre. A pecuária é o principal fator de desmatamento no estado e em todo o Brasil. Foto: Maron Greenleaf.

Um programa semelhante ao REDD+ no Amazonas, chamado Bolsa Floresta (PBF), já existe desde 2007. No entanto, o SISA foi o primeiro programa aplicado no nível estadual, em vez de em um número limitado de unidades de conservação. O PBF oferece um pequeno pagamento às comunidades que produzam matérias-primas florestais, como cacau, açaí e pirarucu, cultivem agroflorestas ou pratiquem pesca sustentável nos lagos, em troca do comprometimento com o desmatamento zero e a participação em programas ambientais educacionais.

Greenleaf elogia o que ela chama de “trabalho verde”, por evitar questões complexas ligadas aos direitos de terra, comuns no Brasil rural e em outros países com florestas ricas em carbono, e por compartilhar parte do valor do carbono armazenado nessas florestas com a população que vive nelas ou em seu entorno, ao invés de dividi-lo com latifundiários ou investidores estrangeiros.

Ela lembra que, ao dar um valor de mercado ao carbono absorvido pelas florestas, as iniciativas de compensação correm o risco de promover a apropriação violenta da terra, sustentando a desigualdade e recompensando apenas os mais ricos. Um estudo de 2008, por exemplo, descobriu que as iniciativas do REDD+ no Brasil tendem a aumentar a insegurança dos moradores em relação à posse da terra. Mas, implantadas da maneira correta, diz Greenleaf, medidas de compensação de carbono também podem atuar como uma forma de proporcionar bem-estar social, redistribuindo a riqueza com base em objetivos ambientais.

Entre as pessoas que ela entrevistou estavam 30 moradores da zona rural – incluindo pequenos agricultores, fazendeiros, caçadores e coletores florestais. Historicamente, este é um grupo que muitas vezes não consegue obter direitos formais à terra, mas muitos dizem que foram capazes de se beneficiar da iniciativa do SISA por meio de seu “trabalho verde”.

Uma castanheira permanece de pé em um campo em grande parte desmatado nos arredores de Feijó, no Acre. Foto: Maron Greenleaf.

Complexidades dos direitos fundiários

“O REDD+ e outros programas baseados no comércio de carbono têm potencial para ser um ponto de virada importante no combate ao desmatamento”, diz Tom Martin, especialista em carbono e biodiversidade terrestre da Operation Wallacea, organização internacional de pesquisa em conservação. Em termos globais, no entanto, “as iniciativas do REDD+ […] não decolaram tão rapidamente quanto as pessoas esperavam”, ele ressalva, citando governos desorganizados, mercados de carbono instáveis e sistemas complexos de propriedade da terra.

Em muitos países com densidade florestal significativa, onde iniciativas de compensação de carbono têm maior potencial de benefício, os direitos à terra nas áreas rurais não são claros, se sobrepõem ou são fortemente contestados, entrelaçados com questões complexas de direitos indígenas. Tais complexidades, segundo Martin, podem criar incertezas sobre como um projeto do REDD+ pode ser implantado com sucesso, o que deixa tensos os potenciais investidores e paralisa as iniciativas de crédito de carbono antes mesmo de começarem.

Contornar questões fundiárias a fim de facilitar o acesso aos benefícios provenientes do crédito de carbono tem suas vantagens, mas também pode adiar o difícil processo de obtenção de direitos legais à terra por parte de comunidades rurais e indígenas, que deles poderiam se beneficiar de outras maneiras. Entretanto, historicamente, as tentativas de formalizar a posse de terras tendem a favorecer as elites abastadas. Por exemplo, o Terra Legal, um programa nacional que concede títulos de propriedade a famílias de pequenos agricultores no Amazonas, emitiu menos títulos do que o planejado e tendeu a favorecer o agronegócio já existente. Qualquer tentativa de redistribuir a terra de maneira equitativa seria uma batalha longa e árdua. Em vez disso, iniciativas como o SISA poderiam atuar como uma etapa intermediária, sugere Greenleaf: “Os benefícios do SISA poderiam ser incluídos nessa luta como prova do reconhecimento dos direitos à terra por parte do governo”.

Embora a iniciativa esteja trazendo benefícios claros para as comunidades locais, é mais difícil enxergar seus efeitos no desmatamento. A taxa de desflorestamento no Acre permaneceu relativamente estável de 2010 a 2015 – período durante o qual o plano de crédito do SISA esteve em vigor –, mantendo-se entre 220 e 310 quilômetros quadrados por ano, segundo dados do programa de vigilância PRODES, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE). No entanto, Maron ressalta que muitas das políticas financiadas pelo SISA precederam o programa, o que dificulta determinar seu verdadeiro impacto no desmatamento.

O SISA também foi criticado por capacitar as autoridades estaduais a determinar o que conta como trabalho verde, o que deixa as comunidades rurais à mercê de caprichos políticos. O programa já tomou algumas decisões controversas, como classificar práticas agrícolas intensivas e lagoas artificiais como serviços ambientais. Martin diz que este é um problema comum. “Embora as iniciativas de REDD+ supostamente promovam melhoras sociais e estimulem a biodiversidade”, focar nos mercados de carbono significa que “benefícios ambientais às vezes podem ficar para trás na lista de prioridades dos diretores do projeto”.

Pôr do sol em uma floresta no município de Feijó, no Acre. Foto: Maron Greenleaf.

Greenleaf alerta que a mudança no clima político no Brasil já está afetando o comportamento das pessoas. A taxa estimada de desmatamento na Amazônia aumentou 50% entre agosto e outubro do ano passado, quando as eleições presidenciais estavam se aproximando e a vitória de Jair Bolsonaro parecia cada vez mais provável. Desde sua posse este ano, a derrubada da floresta na Amazônia cresceu de forma alarmante e o Acre não foi uma exceção.

No início deste ano, com a troca de mandato no Acre, novos funcionários foram contratados na gestão estadual, o que poderia significar mudanças na administração do SISA. Os diretores do programa, por exemplo, já apoiam a intensificação agrícola como uma maneira de proteger florestas que ainda estão em pé, o que poderia ser estendido para incluir o agronegócio.

Como programa estadual, a importância dos pagamentos do SISA para as comunidades rurais provavelmente aumentará. “Essas iniciativas estão […] devem se tornar ainda mais importantes em face à política de direita de Bolsonaro e o possível recuo da proteção ambiental por parte do governo federal”, argumenta Martin.

Enquanto outras iniciativas ambientais estão ameaçadas de cortes financeiros, o SISA pode estar a ponto de receber um grande estímulo financeiro. Se os administradores da Califórnia votarem a favor da admissão de créditos de carbono no REDD+, como um memorando de entendimento de 2010, combinado com o alto respeito internacional pelo programa, o Acre pode se tornar um dos fornecedores mais prováveis desses créditos.

Com critérios de inclusão que podem mudar de acordo com o capricho das autoridades estaduais, o SISA pode nem sempre oferecer a segurança que promete aos produtores rurais. No entanto, “o SISA (…) também poderia mostrar a Bolsonaro e outras autoridades que pensam como ele que não apenas as florestas derrubadas têm valor monetário”, conclui Greenleaf.

Legenda da foto no banner: Fruto de guaraná nas mãos de produtor indígena do povo Sateré-Mawé. Foto: Xavier Bartaburu.

Citações:

Greenleaf, M. (2019). The value of the untenured forest: Land rights, green labor, and forest carbon in the Brazilian Amazon. The Journal of Peasant Studies, 1-20. doi:10.1080/03066150.2019.1579197

Sunderlin, W. D., Sassi, C. D., Sills, E. O., Duchelle, A. E., Larson, A. M., Resosudarmo, I. A., . . . Huynh, T. B. (2018). Creating an appropriate tenure foundation for REDD+: The record to date and prospects for the future. World Development, 106, 376-392. doi:10.1016/j.worlddev.2018.01.010</a

Artigo original: https://news.mongabay.com/2019/07/amazon-redd-scheme-side-steps-land-rights-to-reward-small-forest-producers/

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