Motivados pelos incêndios na Amazônia que ocorreram no Brasil e na Bolívia, 230 investidores globais com US$ 16,2 trilhões em ativos publicaram uma declaração fortemente assertiva advertindo centenas de empresas anônimas a cumprir com seus compromissos de desmatamento da cadeia de suprimentos de comodities ou correm o risco de sofrerem consequências econômicas.
A declaração foi publicada pelos Princípios de Investimento Responsável (Principles for Responsible Investment, PRI), uma rede internacional de investidores, e a Ceres, organização sem fins lucrativos dos EUA que trabalha com investidores para promover a sustentabilidade.
Dentre os 230 signatários estão o CaIPERS (o Sistema de Aposentadoria dos Funcionários Públicos da Califórnia [California Public Employees’ Retirement System]), que gerencia o maior fundo de pensão público dos Estados Unidos, e mais algumas empresas inusitadas, como a China Asset Management.
Em outro lugar, a pressão dos consumidores fez com que a VF Corporation, empresa de vestuário e calçados dos EUA detentora das marcas Timberland e The North Face, anunciasse a interrupção da compra de couro brasileiro. Falta saber se um boicote global ao Brasil relacionado ao desmatamento de desenvolverá.
Até o momento, o Presidente Jair Bolsonaro fez o que quis, ignorando as preocupações de governos internacionais e ONGs sobre as políticas ambientais do Brasil. Porém, a população da América Latina, oitava maior economia do mundo, pode ser forçada a levar isso em conta neste momento, com o envolvimento de investidores globais.
Em meados de setembro, foi comunicada uma declaração fortemente assertiva aos investidores, publicada pelos Princípios de Investimento Responsável (PRI), o maior defensor de investimento responsável do mundo, e a Ceres, organização sem fins lucrativos dos EUA que trabalha com investidores para promover a sustentabilidade. O documento, que condena o desmatamento vinculado à cadeia de suprimentos, foi aprovado por um número inédito dos principais investidores, 230 no total, que juntos representam US$ 16,2 trilhões em ativos.
“Visto que os incêndios no Brasil e na Bolívia chegaram às manchetes de todo o mundo, vimos um aumento marcante no desconforto sobre o desmatamento entre investidores institucionais”, disse Julia Nash à Mongabay. Julia é diretora de programa para alimentos e florestas na Ceres.
“É com grande preocupação que acompanhamos a aumento da crise de desmatamento e incêndios florestais no Brasil e na Bolívia”, diz a declaração. E continua descrevendo o insucesso de empresas de commodities para cumprir as promessas de eliminar o desmatamento de suas cadeias de suprimento. “Enquanto centenas de empresas se comprometeram a acabar com o desmatamento causado por commodities até 2020, pesquisas recentes indicam que pouquíssimas empresas estão trabalhando para alcançar esse objetivo”, diz o documento.
Os signatários incluem o CaIPERS (Sistema de Aposentadoria de Funcionários Públicos da Califórnia), que gerencia o maior fundo de pensão público dos Estados Unidos. “O desmatamento é um problema global para investidores de longo prazo como o CalPERS, que enfrenta riscos graves e urgentes impostos pela mudança climática”, disse Anne Simpson, diretora de administração do conselho e estratégia do CalPERS.
“Por muito tempo, a discussão sobre mudanças climáticas se concentrou no setor de energia. Há uma necessidade urgente de maior concentração no gerenciamento efetivo da cadeia de suprimentos agropecuária”, disse Jan Erik Saugestad, CEO da Storebrand Asset Management, a maior gestora de ativos privados da Noruega, e também signatário.
Também há signatários inusitados, incluindo a China Asset Management (um dos maiores grupos de fundos do país), o First State Investments da Austrália, a HSBC Asset Management (gestora de ativos canadense de US$ 1 trilhão), a TD Asset Management, e o Mitsubishi Banking Corporation (conglomerado financeiro e quinto maior banco do mundo).
A participação de investidores brasileiros é baixa. Cinco dos 10 maiores gestores financeiros do Brasil são membros do PRI –Itaú Asset Management, Bradesco, Caixa Econômica Federal, Santander Brasil Asset Management e a BTG Pactual Asset Management. Mas apenas um membro brasileiro (SulAmérica Investimentos) assinou a declaração até então. Não está claro se os membros brasileiros do PRI escolheram não assinar ou simplesmente não conseguem cumprir com os prazos de comunicação da declaração.
O principal vínculo da declaração com as empresas brasileiras é, atualmente, indireto. Um dos signatários, por exemplo, é a Aberdeen, um grupo de gerenciamento de investimentos internacional, que têm ações na BRF, uma das maiores empresas de alimentos do mundo, que detém a Sadia e a Perdigão, sendo ambas grandes produtoras e exportadoras de alimentos do Brasil.
Embora a Amazon Watch — ONG de liderança com sede nos EUA que trabalha para proteger a floresta amazônica e seus povos — apoie a declaração, também tem ressalvas. A diretora de campanha Moira Birss disse à Mongabay: “É decepcionante e problemático não ver dois dos maiores investidores em ações, BlackRock e Vanguard, na lista, sem contar outros grandes credores e investidores dos EUA. Mais uma vez, a liderança sobre problemas ambientais e climáticos está vindo da Europa. As instituições financeiras dos EUA precisam acelerar se não quiserem continuar sendo cúmplices na destruição da Amazônia”.
Promessas não cumpridas
A declaração do investidor se refere ao um relatório intitulado “Situação vulnerável”, publicado em junho de 2019 pela Ceres. Ele mostra que, embora 484 empresas tenham prometido enfrentar o desmatamento em seus negócios como parte de um objetivo global de acabar com o desmatamento até 2020, somente 72 se comprometeram, até então, a eliminar o desmatamento de sua cadeia de suprimentos e, dessas, somente 21 mostraram progresso real e mensurável.
Sem nomear as empresas envolvidas no desmatamento, esse relatório adverte: “Essa lacuna alarmante de comprometimento com a ação expõe empresas e investidores institucionais a riscos financeiros significativos. Investidores institucionais reconhecem cada vez mais que o desmatamento cria riscos materiais ao mercado e à reputação de empresas, e também é fonte de risco sistêmico nos portfólios de investimento considerando sua contribuição às mudanças climáticas”.
Essa declaração é o primeiro sinal forte para as empresas que estão altamente expostas ao desmatamento da Amazônia de que elas devem eliminar essa brecha ou sofrer a ação dos investidores. A carta apela para “divulgar e implementar publicamente uma política sem desmatamento específica para commodities com compromissos mensuráveis e programados que englobem toda a cadeia de suprimentos” e o estabelecimento de “um monitoramento transparente e sistema de verificação para a conformidade do fornecedor”.
Julia diz que investidores institucionais estão em uma posição forte para realizar uma ação efetiva e complementa: “Eles têm interesses alinhados com empresas em que investem e querem que essas empresas prosperem. Elas podem dizer a seus fornecedores que se não tomarem medidas imediatas para eliminar o desmatamento de suas cadeias de suprimento, podem enfrentam um risco significativo na reputação que poderia impactar o preço das ações”.
Repressão ao desmatamento na cadeia de suprimentos
O Greenpeace, defensor consagrado para acabar com o desmatamento da Amazônia, também está profundamente preocupado com a omissão das empresas em entregar o prometido. No início de 2019, enquanto preparava o relatório, Contagem regressiva para a extinção, o Greenpeace pediu a mais de 50 comerciantes, varejistas, produtores e empresas de bens de consumo para demonstrar seu progresso em prol do fim do desmatamento, tornando transparente suas cadeias de suprimentos para produtos da pecuária, cacau, laticínios, óleo de palma, papel e celulose e soja.
O Greenpeace relata que nenhuma empresa cumpriu a solicitação e conclui: “A proliferação de compromissos corporativos não se traduziu em mudança significativa na realidade”.
O ativista do Greenpeace EUA, Daniel Brindis, conversando com a Mongabay, pontuou que: “O importante é que essas empresas não saiam impunes com a manipulação psicológica do público, que é o que eles fazem com essas supostas promessas de eliminar o desmatamento de suas cadeias de suprimentos sem tomar atitudes”.
A Ceres prefere destacar o lado positivo da história, observando que algum progresso está sendo feito por uma pequena minoria de empresas. Em seu relatório “Situação vulnerável”, a Ceres destaca três empresas multinacionais que dizem estar fazendo progresso real:
- a Nestlé, fabricante de alimentos da Suíça, alegou em abril de 2019 que 77% de suas commodities agropecuárias foram verificadas como isentas de desmatamento;
- a Unilever, empresa gigante de bens de consumo, disse em maio de 2018 que 56% de seu óleo de palma era certificado pela Mesa Redonda de Óleo de Palma Sustentável (Roundtable on Sustainable Palm Oil, RSPO); e
- a Wilmar, gigante da produção de óleo de palma, relatou em 2018 que 64% de sua produção e consumo de óleo de palma era certificado pela RSPO.
No entanto, o Greenpeace continua cético com relação à eficácia da certificação por órgãos como a RSPO, dizendo em seu relatório que: “Regulamentos e órgãos de certificação governamentais - incluindo a Mesa Redonda de Soja Sustentável (Roundtable on Responsible Soya, RTRS), a Mesa Redonda de Óleo de Palma Sustentável (RSPO) e o Programa para a Aprovação de Certificação de Florestas (Programme for the Endorsement of Forest Certification, PEFC) – não são um indicador para a auditoria jurídica necessária para garantir que grupos de produtores não estejam se envolvendo em desmatamento ou degradação florestal, destruindo mangues ou violando direitos humanos”.
Alguns analistas apoiam a postura do Greenpeace. Por exemplo, um estudo acadêmico de junho de 2018 observa que “poucas análises quantitativas foram realizadas para avaliar o sucesso da RSPO em fornecer resultados sociais, econômicos e ambientais com o objetivo proposto”. O estudo de produção de óleo de palma em Bornéu, na Indonésia, não descobriu “nenhuma diferença significativa entre as plantações certificadas e não certificadas para nenhuma das medidas de sustentabilidade investigadas”, e concluiu: “Para alcançar os resultados propostos, os princípios e critérios da RSPO precisam de melhoria substancial e aplicação rigorosa”.
O Greenpeace também tem dúvidas sobre as afirmações da Nestlé de que 77% de suas commodities agropecuárias foram verificadas como isentas de desmatamento. A ONG relata que “a gigante do setor alimentar chegou a esse número omitindo o suprimento de algumas de suas commodities, incluindo cacau e toda a soja usada como alimentação animal (que é responsável por cerca de metade de sua pegada de soja total)”.
Ainda mais preocupante para os ativistas contra o desmatamento é que, para eliminar o desmatamento da cadeia de suprimentos, eles precisarão convencer grandes empresas transnacionais, a JBS (maior empresa de processamento de carnes do mundo) e a Cargill, gigante da comercialização de commodities. Essas duas empresas do setor agropecuário estão repetidamente vinculadas ao desmatamento e resistiram, até então, ao que o Greenpeace chama de “engajamento construtivo”.
Tratando o Brasil com boicote às commodities
Embora os investidores se concentrem nas cadeias de suprimentos globais, ativistas ambientais estão apontando diretamente para as políticas draconianas do governo Bolsonaro.
Eles dizem que o desregulamento ambiental de Bolsonaro e seu incentivo ao desmatamento ilegal foram os grandes responsáveis pela onda de incêndios deste ano. De fato, um novo estudo significativo vinculou diretamente os grandes incêndios da Amazônia, que ocorreram no norte do Brasil em agosto, ao desmatamento realizado desde que Bolsonaro assumiu o governo em janeiro.
Maria Luisa Mendonça, com a Rede Social de Justiça e Direitos Humanos, está convocando um boicote do consumidor internacional das exportações brasileiras. “Essa é a única mensagem que Bolsonaro vai ouvir. Ele não acredita em mudanças climáticas”, disse ela.
O ex-ministro do meio ambiente, Rubens Ricupero, concorda. Ele disse ao jornal The Guardian: Somente “o medo das consequências econômicas” – como um boicote aos produtos brasileiros ou o impedimento de um acordo comercial com a UE – podem fazem com que Bolsonaro mude de ideia.
Christopher Garman, diretor executivo das Américas para a consultoria de risco político dos EUA, Eurásia, acredita que as exportações de commodities brasileiras então em jogo: “O risco agora [para o Brasil] é um boicote do consumidor. Esse é um custo direto criado e exacerbado pela retórica de Bolsonaro”, disse ele à Folha de S. Paulo.
Alguns consumidores, particularmente os da Suécia, onde a consciência ambiental é grande, estão exigindo ação. De acordo com a Radio France International, os consumidores suecos postam regularmente mensagens no Facebook convocando os supermercados a parar de estocar produtos brasileiros.
Johannes Cullberg, proprietário da Paradiset, maior cadeia de supermercados de orgânicos da Suécia, está convocando as pessoas “para votar com suas facas e garfos” e lançou um boicote aos produtos brasileiros em suas lojas. Johannes diz que a resposta foi impressionante, principalmente no Brasil, onde um artigo sobre ele no Facebook teve mais de 300 mil compartilhamentos.
Alguns fabricantes também tomaram medidas. A VF Corporation, empresa de vestuário e calçados dos EUA, que detém marcas como Timberland, bolsas Kipling e The North Face, anunciou em agosto que parou de comprar couro brasileiro. A empresa disse que só voltaria a comprar quando tivesse “confiança e garantia de que os materiais usados em nossos produtos não contribuam com o dano ambiental no país”.
Esses primeiros sinais de boicote global deixou os fabricantes de couro no Brasil assustados. “Para uma indústria que exporta mais de 80% do seu couro, trazendo mais de US$ 2 bilhões em um único ano, [a possibilidade de um boicote] é uma notícia devastadora”, disse José Fernando Bello, diretor executivo do Centro das Indústrias de Curtumes do Brasil (CICB).
Outras empresas brasileiras estão preocupadas que o movimento de boicotes possa se espalhar. O Conselho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável (CEBDS), que representa os maiores grupos econômicos do país, expressou “preocupação” e afirma que está pressionando o governo Bolsonaro para mudar as políticas e frear o desmatamento.
Em uma declaração em 23 de agosto, o CEBDS declarou: “Em nome de nossas empresas, que juntas têm um faturamento equivalente a 45% do PIB do país, o CEBDS pede que os sistemas de controle e monitoramento sejam melhorados para erradicar o desmatamento ilegal no curto prazo na Amazônia e em todos os outros biomas e reduzir o desmatamento legal”. Essa declaração permanece em oposição direta aos planos de Bolsonaro de “desenvolver” a “Amazônia improdutiva”.
Risco ao maior acordo comercial do mundo
A longo prazo, o impacto mais grave ao Brasil, decorrente dos incêndios na Amazônia este ano, pode ser o comprometimento à homologação do acordo comercial UE-Mercosul, o maior acordo comercial que a UE já estabeleceu, assinado em junho após 20 anos de negociações.
O presidente da França, Emmanuel Macron, e o primeiro ministro da Irlanda, Leo Varadkar, foram claros de que buscarão bloquear a homologação, a menos que o Brasil mude sua política ambiental.
Em 13 de setembro, o ministro de finanças da Finlândia, Mika Lintilä, disse que a UE deve bloquear as importações da carne brasileira e considera suspender as importações de soja, pressionando o governo brasileiro a conter os incêndios na Amazônia. A posição da Finlândia é particularmente importante agora, pois detém atualmente a presidência rotativa da UE.
Outros grandes parceiros comerciais do Brasil estão pressionando Bolsonaro, com o governo chinês dizendo, em particular, que tem preocupações expressas. José Augusto de Castro, Presidente da Associação de Comércio Internacional do Brasil, está igualmente preocupado. O Brasil já “perdeu a batalha da comunicação”, disse ele. “O que o governo precisa fazer é parar de falar e deixar que os diplomatas do país assumam”.
No momento, há poucos sinais de que o Brasil saia de suas posições ambientais de linha dura. Em 4 de setembro, o porta-voz do presidente, General Otavio Rego Barros, disse à Reuters que o governo não estava esperando um boicote. No dia seguinte, o governo lançou uma campanha publicitária internacional para se defender da crescente onda de críticas. Isso parece ter tido pouco impacto no exterior.
O caminho continua incerto. Apesar de os incêndios terem desaparecido em grande parte das manchetes, a estação seca na Amazônia ainda não chegou ao auge, o que pode muito bem significar mais incêndios. De fato, em setembro ocorreu um incêndio enorme em uma área rural de Santarém, cidade às margens do Rio Amazonas, no Pará. Uma das áreas mais afetadas foi Alter do Chão, estância turística muito apreciada pelos brasileiros ricos.
O presidente não retirou seu ponto de vista antiambiental. Mesmo enquanto os incêndios aconteciam, Bolsonaro, com apoio de sete governadores de estados que fazem parte da Amazônia, se comprometeram a abrir reservas indígenas para mineração e agricultura – atualmente ilegais, de acordo com a Constituição brasileira. Essas políticas, com apoio da administração de Trump, junto com o aumento da violência na Amazônia, podem fazer com que uma comunidade global já irritada tome atitudes.
Na balança: a sobrevivência da Amazônia, a maior e última floresta tropical do mundo.
Imagem do banner: Incêndios assolam uma área rural de Santarém em setembro de 2019. Foto de Eugenio Scanavinno.