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Brasil constrói linha de transmissão na Amazônia, há muito contestada, em terras indígenas

  • Atualmente, 70% da energia consumida no estado brasileiro de Roraima é proveniente da barragem hidrelétrica de Guri, na Venezuela. Mas o caos socioeconômico na Venezuela e a deterioração das relações políticas entre os dois países fizeram com que o Brasil acelerasse a implantação de uma linha de transmissão de 750 quilômetros para substituir a energia importada.

  • O general Otávio Rêgo de Barros, usando uma justificativa de segurança nacional, anunciou que, no final de junho, será iniciada a construção de uma linha de transmissão de energia entre as cidades de Manaus e Boa Vista, conectando Roraima com a rede elétrica brasileira.

  • Os 125 quilômetros da linha de transmissão planejada passarão pela reserva Waimiri Atroari e pelo grupo indígena, que há muito tempo resistem à construção. Os Waimiri Atroari estão preocupados com os impactos negativos sobre o meio ambiente e a vida selvagem, já que a caça é a principal forma das comunidades obterem alimento.

  • O estado de Roraima realizou estudos de viabilidade mostrando que as energias eólica e solar oferecem alternativas mais baratas do que a linha de transmissão. Mas o governo Bolsonaro ignorou essas alternativas. “Os índios serão consultados, mas o interesse nacional deve prevalecer”, disse o general.

Floresta tropical Amazônica na entrada da Reserva Indígena Waimiri Atroari. Imagem de James Martins licenciada sob a licença internacional Creative Commons Attribution 3.0.

O governo Bolsonaro invocou razões de segurança nacional para impulsionar a construção de uma linha de transmissão elétrica de 125 quilômetros, há muito contestada, no coração da Reserva Indígena Waimiri Atroari, nos estados do Amazonas e Roraima.

Durante anos, o povo Waimiri Atroari lutou contra as tentativas do governo de construir uma linha de transmissão de energia em seu território, exigindo compensações e salvaguardas para proteger seu modo de vida e a vida selvagem da qual dependem para alimento. Negociações de direito de passagem com autoridades federais, incluindo a FUNAI, a agência de assuntos indígenas, o IBAMA, a agência de proteção ambiental e o MPF, o Ministério Público Federal, estão há muito em andamento.

Mas no final de fevereiro, o porta-voz do presidente, general Otávio Rêgo de Barros, anunciou que a construção de uma linha de 750 quilômetros para levar energia de Manaus, capital do Amazonas, até Boa Vista, capital de Roraima, o estado mais ao norte do Brasil, começará em 30 de junho, sendo que 125 quilômetros da linha passarão pela reserva indígena.

O general justificou a pressa em construir dizendo que as questões de segurança nacional se sobrepõem aos interesses dos Waimiri Atroari e do meio ambiente. “Os índios serão consultados, mas o interesse nacional deve prevalecer”, explicou.

Outro ministro de Bolsonaro, que preferiu permanecer anônimo, expôs a justificativa da política: “O diálogo do governo com os povos indígenas continua, mas a permissão deles não é mais uma condição para a concessão da licença de construção”.

Os Waimiri Atroari há muito lutam contra a linha de transmissão proposta. Imagem de Twadja Joanico/ISA.

A decisão foi tomada em uma reunião especialmente convocada pelo Conselho de Defesa Nacional em Brasília, no dia 27 de fevereiro. Há um raciocínio por trás da tramitação rápida do projeto: o estado de Roraima depende atualmente da vizinha Venezuela para 70% de suas necessidades de energia elétrica, a energia produzida pela barragem hidrelétrica de Guri. A nova linha de transmissão acabará com essa dependência, conectando o estado à rede elétrica brasileira, evitando possíveis interrupções devido às atuais condições socioeconômicas caóticas na Venezuela.

As relações entre as duas nações ficaram tensas nos últimos meses, quando a Venezuela fechou sua fronteira com o Brasil e o governo direitista de Bolsonaro pediu a derrubada do presidente socialista Nicolás Maduro, enquanto também recebia o autoproclamado presidente venezuelano Juan Guaidó no palácio presidencial.

A construção da linha de transmissão de Manaus a Boa Vista, que passará ao longo da rodovia BR-174, deve demorar três anos. O governo argumenta que, ao instalar a linha de transmissão ao lado de uma estrada existente, terá pouco impacto no território indígena. Mas as centenas de torres gigantes necessárias para transportar os cabos elétricos pesados exigirão um amplo corredor desflorestado sob e ao redor deles, além das estradas de acesso para manutenção, que também serão necessárias.

A BR-174, que atravessa a Reserva Indígena Waimiri Atroari. A linha de transmissão, se construída, será implantada ao longo dela. A construção está prevista para começar em junho, mas pode ser adiada por um processo judicial. Imagem de SallesNeto BR licenciada sob a licença internacional Creative Commons Attribution 3.0.

A comunidade indígena, que depende da floresta local para alimentação, diz que o desmatamento e a interrupção da vida selvagem durante e após a construção são inevitáveis. Os habitantes da reserva também argumentam que sofrerão os impactos do projeto, mas não seus benefícios. Quando terminarem, observam eles, a linha de transmissão transportará eletricidade por cima, mas não fornecerá energia para sua reserva indígena e suas aldeias.

Joênia Wapichana, a primeira congressista indígena do Brasil, eleita em 2018 pelo estado de Roraima, disse: “Existe uma decisão judicial de que os índios devem ser consultados e não colocados sob pressão… Esse direito à consulta é garantido pela Convenção 169 da OIT [Organização Internacional do Trabalho], que é juridicamente vinculante no Brasil”. Ela disse que as consultas entre os Waimiri Atroari e as várias agências governamentais sobre a linha de transmissão de energia proposta já estão em andamento há muito tempo.

Os promotores federais do MPF também expressaram preocupação com a decisão do governo de acelerar o projeto sem mais consultas. Eles observam que a localização da linha de transmissão de energia foi escolhida sem considerar rotas alternativas mais distantes das aldeias existentes.

A polêmica barragem de Balbina e seu gigantesco reservatório, construído na década de 1980, invadiram significativamente as terras ancestrais dos Waimiri Atroari, assim como a mina de estanho a céu aberto de Pitinga, cuja poluição impactou seriamente a pesca dentro da reserva indígena. Os Waimiri Atroari estão exigindo o direito de consulta e compensação para todos os projetos futuros em suas terras remanescentes. Imagem de Seabirds, licenciada sob a licença internacional Creative Commons Attribution 3.0.

O MPF trabalhou com os Waimiri Atroari por muitos anos, primeiro ajuizando a indenização pelas mortes injustificadas de cerca de 2.000 índios que morreram como resultado de um projeto anterior do governo, a construção da rodovia BR-174 ligando Manaus a Boa Vista nas décadas de 1970 e 1980. Na época, a ditadura militar no poder estava ansiosa para abrir a região amazônica através da construção de uma nova rede rodoviária, incluindo a controversa Rodovia Transamazônica. As muitas tribos indígenas bloqueando o caminho da rodovia eram vistas como um problema tipicamente resolvido pela remoção em larga escala do povo para outras terras, contra a vontade deles. Mas no caso dos Waimiri Atroari, a solução foi de extrema violência.

Um sobrevivente lembra: “Helicópteros sobrevoaram as aldeias espalhando veneno e detonando explosivos sobre centenas de índios que se reuniam para celebrar ritos de passagem. Homens brancos uniformizados atacaram aqueles que sobreviveram com armas e facas, cortando suas gargantas. Tratores destruíram plantações, trilhas e lugares sagrados”.

Esses ataques e as doenças transmissíveis que ocorreram após contato forçado com pessoas de fora levaram a uma redução drástica no número de indígenas — em 1986, restaram apenas 374 Waimiri Atroari de uma população estimada de 3.000 habitantes.

O MPF exigiu não só a indenização dos Waimiri Atroari, mas também que o governo garanta que a intervenção militar em seu território não volte a ocorrer e que qualquer novo projeto que envolva suas terras só seja construído com o consentimento deles. Os críticos dizem que o governo de Bolsonaro está usando a instabilidade venezuelana como uma desculpa para proclamar uma justificativa de segurança nacional e apressar a conclusão da linha de transmissão de energia.

Os analistas também observam que a decisão de Bolsonaro sobre a linha de transmissão ignora a possibilidade de utilizar fontes alternativas de energia. O governo de Roraima havia começado a avançar com um plano de energia renovável, com base em estudos realizados pelo Ministério Federal de Minas e Energia. Essa pesquisa constatou que o estado tem um abundante potencial eólico e solar devido à sua proximidade com o Equador. Também possui rios que poderiam fornecer energia hidrelétrica. Reuniões entre representantes das indústrias solar e eólica e o governador do estado já foram realizadas.

Muitos dos Waimiri Atroari veem a decisão do governo de Bolsonaro de ignorar essas opções eficientes de energia alternativa, e optar pela linha de transmissão muito mais cara, como uma declaração de guerra contra eles. A disputa quase certamente acabará indo ao tribunal e, é bem provável, que chegue até ao Supremo Tribunal Federal.

Sidney Possuelo, respeitado ex-diretor da FUNAI, disse à agência de notícias Reuters: “A situação dos povos indígenas do Brasil nunca foi boa. Mas durante 42 anos de trabalho na Amazônia, esse é o momento mais perigoso que já vi”.

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Uma aldeia Waimiri-Atroari. O governo brasileiro não considerou rotas alternativas de linhas de transmissão mais distantes das aldeias. Imagem de Homero Martins/ISA.



Artigo em inglês: https://news-mongabay-com.mongabay.com/2019/03/brazil-to-build-long-resisted-amazon-transmission-line-on-indigenous-land/

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