O novo presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, emitiu um decreto administrativo que transfere a responsabilidade pela demarcação de terras indígenas da FUNAI, o escritório de assuntos indígenas do governo, para o Ministério da Agricultura.
Também como parte do decreto, Bolsonaro transferiu a autoridade sobre a regularização do território quilombola (terra pertencente a descendentes de escravos fugidos), do instituto de reforma agrária do governo, INCRA, para o Ministério da Agricultura.
Os críticos responderam com alarme, vendo o movimento como um conflito direto de interesses. Mas o lobby do agronegócio da bancada ruralista no Congresso há muito exige a reorganização do governo, que, segundo analistas, dará ao agronegócio as alavancas políticas necessárias para invadir e transformar os territórios indígenas e tratar as florestas como um recurso industrial.
As comunidades indígenas do Brasil são conhecidas por serem as melhores administradoras da Amazônia. Mas os movimentos de Bolsonaro poderiam sinalizar o enfraquecimento, ou até mesmo o desmantelamento, do sistema de reserva indígena. O possível resultado do desmatamento por atacado pode ser um desastre para os povos indígenas, para a biodiversidade e até mesmo para o clima regional e global.
No seu primeiro dia no cargo, o Presidente Jair Bolsonaro emitiu uma medida provisória (Medida Provisória 870) tirando a responsabilidade pela demarcação de terras indígenas da agência de assuntos indígenas do governo, a FUNAI, entregando-a ao Ministério da Agricultura.
No mesmo decreto, Bolsonaro transferiu a autoridade sobre a regularização do território quilombola (terra pertencente a descendentes de escravos fugidos) do instituto de reforma agrária do governo, o INCRA, para o Ministério da Agricultura. As medidas enfraquecem muito a FUNAI, tirando suas funções mais importantes, assim como o INCRA, segundo analistas.
Na prática, áreas-chave da política indígena e quilombola estarão agora nas mãos dos defensores do agronegócio industrial, uma demanda de longo prazo do lobby da bancada ruralista do agronegócio no Congresso.
O apoio ruralista ajudou significativamente Bolsonaro a ganhar o cargo, e essas novas medidas já eram esperadas depois que o presidente eleito escolheu a deputada federal Tereza Cristina como ministra da Agricultura. Antes disso, Cristina era presidente da Frente Parlamentar da Agricultura (FPA), o principal lobby ruralista na legislatura federal que apoia a rápida expansão de fazendeiros e pecuaristas em grande escala.
No entanto, poucos pensaram que o presidente agiria tão rapidamente. Bolsonaro parece estar cumprindo uma promessa feita em sua campanha eleitoral. Em agosto de 2018, ele disse: “Se eu for eleito, vou dar um golpe na FUNAI, um golpe no pescoço. Não há outra maneira. Ela não é mais útil”.
Uma resposta crítica intensa
Especialistas indígenas responderam com profunda preocupação às movimentações administrativas de Bolsonaro nessa primeira semana. Leila Sotto-Maior, que se aposentou da FUNAI em 2018 após 20 anos na agência, é uma das maiores especialistas brasileiras em direitos territoriais indígenas. Ela disse à Mongabay que as ações do governo representam um sério conflito de interesses: “Eles parecem ter tido a clara intenção de infringir a Constituição Federal [de 1988] com relação à necessidade de reconhecer os direitos dos povos indígenas como os habitantes originais”, disse. “O que eles querem é usurpar os direitos dos povos indígenas e se apossarem das terras da União (isto é, terras públicas) para promover o agronegócio, causando estragos em nossas florestas e negando qualquer direito de contestar o que estão fazendo”.
As comunidades indígenas estão cambaleando. Sônia Guajajara, presidente da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), um dos principais grupos indígenas do Brasil, tuitou: “O desmoronamento começou… Alguém ainda duvida que ele [Bolsonaro] cumprirá suas promessas eleitorais de nos excluir [ou seja, os povos indígenas de nossos direitos constitucionais]?”
Um líder indígena Guarani, falando com a ONG Survival International, perguntou: “Esse presidente Jair Bolsonaro é um ser humano real? Eu acho que não. A primeira coisa que ele fez foi mexer com os direitos indígenas. Eu pergunto: quem foram os primeiros habitantes deste país?”.
Segmentação de reservas indígenas
Se Bolsonaro continuar cumprindo com suas promessas de campanha, as ações dessa semana podem ser apenas o começo de problemas para as comunidades indígenas. Ao longo das eleições, ele prometeu repetidamente que, uma vez no cargo, reduziria em tamanho, ou até aboliria, as reservas indígenas em particular.
Um alvo favorito de Bolsonaro foi o território indígena Raposa Serra do Sol, no estado de Roraima, no norte do Brasil. É uma das maiores reservas do país, cobrindo 1,7 milhão de hectares e é habitada por cerca de 20 mil indígenas, principalmente Macuxi.
Os agricultores, chegando na parte sul da região na década de 1970 e realizando o cultivo de arroz em larga escala, opunham-se ferozmente a dar aos índios um território tão grande. O conflito gerou considerável violência. Bolsonaro sempre ficou do lado dos agricultores, dizendo em 2016 que: “Em 2019, vamos acabar com a Raposa Serra do Sol. Vamos dar todas as armas aos agricultores”. Especialistas veem a repetida promessa de Bolsonaro de enfraquecer as leis brasileiras sobre armas — permitindo que a população compre armas livremente — como se fosse a adição de gasolina ao fogo do agronegócio da Amazônia/conflitos indígenas.
Outra grande reserva indígena, criticada repetidas vezes por Bolsonaro, é o território Yanomami, que fica na fronteira do Brasil com a Venezuela. A terra foi oficialmente reconhecida pelo governo pouco antes do Brasil sediar a Cúpula da Terra das Nações Unidas no Rio de Janeiro em 1992. Cobrindo 9,4 milhões de hectares, é uma das áreas protegidas mais importantes do planeta, conservando uma enorme biodiversidade. É o lar de cerca de 30.000 índios Yanomami.
De acordo com Sotto-Maior, Bolsonaro nomeou para sua equipe de transição pessoas que querem isolar a população indígena em pequenas ilhas florestais conservadas, tirando seu direito a um território contínuo. Ela disse: “Esse tipo de demarcação liberaria áreas de exploração por capital estrangeiro, seja para hidrelétricas ou mineradoras, sem que as medidas precisassem ser aprovadas pelo Congresso Nacional. Essas atividades ameaçarão terras indígenas tanto na Raposa Serra do Sol quanto no território Yanomami”.
Bolsonaro, enquanto deputado federal, se opôs veementemente à criação do território em 1992. Ele disse em 2017: “Eu lutei com Jarbas Passarinho [o então Ministro da Justiça que assinou o decreto]. Eu lutei com ele por causa do crime de alta traição que ele cometeu na demarcação da reserva Yanomami. Foi um ato criminoso”.
Sotto-Maior teme o futuro: “O que estamos vendo é uma séria inversão [da política indigenista] e o risco de muitos conflitos no campo. Parece-me que há uma falta de compreensão [no governo Bolsonaro] da necessidade de conciliar o conhecimento tradicional e local com a expansão do agronegócio”.
Houve várias críticas nas mídias sociais à ordem executiva de Bolsonaro relacionada à FUNAI/INCRA esta semana. O presidente, apelidado de “Trump dos Trópicos”, respondeu via Twitter: “Mais de 15% do território nacional é demarcado como terra indígena e quilombola. Menos de um milhão de pessoas, exploradas e manipuladas pelas ONGs, vivem nesses lugares isolados. Juntos, integraremos esses cidadãos e daremos valor a todos os brasileiros”.
Uma ameaça ao Brasil, à América do Sul e ao mundo
Ambientalistas internacionais também estão preocupados com o decreto administrativo de Bolsonaro. As comunidades indígenas há muito tempo são reconhecidas como os melhores guardiões da floresta amazônica; o enfraquecimento desses direitos e de territórios da terra poderia levar ao aumento do desmatamento em terras protegidas.
Indo adiante, as consequências das ações de Bolsonaro podem ser drásticas, não apenas para o Brasil, mas para o planeta. A eventual perda de reservas indígenas e grandes áreas da floresta amazônica, conhecidas como “os pulmões do mundo” e vitais para o sequestro de carbono, poderia ter grandes repercussões para a estabilidade climática regional e global.
Trabalhando com um modelo matemático, pesquisadores do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), o órgão que monitora o desmatamento da Amazônia, simularam o que poderia acontecer se o novo presidente cumprisse suas promessas na Amazônia. Eles calcularam que as políticas de Bolsonaro podem levar a um salto no desmatamento dos níveis atuais de 6.900 quilômetros quadrados por ano, para 25.600 quilômetros quadrados por ano até 2020.
Em um editorial publicado na revista Science Advances, dois cientistas de prestígio, Thomas Lovejoy e Carlos Nobre, alertaram, no ano passado, que a floresta amazônica pode estar próxima de “um limite além do qual a floresta tropical da região pode sofrer mudanças irreversíveis que transformam a paisagem em savana degradada com cobertura vegetal esparsa e arbustiva e baixa biodiversidade”.
Tal evento poderia ter consequências catastróficas para todos nós. Estudos recentes já estão mostrando que a floresta amazônica, antes um importante sumidouro de carbono, pode agora estar emitindo mais carbono do que absorve. Se a floresta começar a morrer, grande parte do carbono atualmente armazenado em sua biomassa poderia ser liberado para a atmosfera. Os cientistas calcularam que a Amazônia detém um quinto da biomassa do planeta. Uma mudança para tempos muito mais secos, e para a savana poderia fazer com que as emissões de carbono do Brasil aumentassem exponencialmente — além de ser uma grande ameaça para a economia do país baseada no agronegócio.
As políticas propostas por Bolsonaro para a Amazônia, se realizadas, poderiam ajudar a acabar com as esperanças do mundo de alcançar os objetivos climáticos globais acordados em Paris, um fracasso que poderia levar ao caos climático. Elas também podem levar a um colapso do agronegócio brasileiro — deixando a China, outras nações e a União Europeia sem commodities essenciais, que vão da carne bovina à soja, algodão e milho.
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