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Cerrado: comunidades tradicionais conseguem reaver terras tomadas por uma empresa de agronegócio

  • As comunidades tradicionais, que por séculos habitam terras rurais, embora não tenham escritura delas, estão protegidas pela lei brasileira. No entanto, vários grileiros de elite, desde pecuaristas a grandes empresas do agronegócio, têm usado de intimidação e outros métodos para tomar as terras comunitárias.

  • As comunidades rurais em Formosa do Rio Preto, na Bahia, são um exemplo disso. Elas estão em conflito com a Agronegócio Condomínio Cachoeira do Estrondo, uma empresa de agronegócios que, segundo os moradores, confiscaram ilegalmente suas terras que margeiam o Rio Preto. Recentemente, um tribunal estadual decidiu a favor das comunidades, ordenando a devolução das terras e o pagamento de multas.

  • Porém, as comunidades dizem que a Estrondo, que tem um histórico documentado de grilagem na Bahia, manteve suas táticas de intimidação, escavando recentemente uma trincheira de quase 3 km para impedir a circulação de pessoas e rebanhos locais; além disso, usou uma empresa de segurança privada e a força policial para tomar a torre de telefonia celular da comunidade de Cachoeira.

  • Ainda nessa mesma comunidade, em junho, a polícia local e a segurança privada, supostamente contratada pela Estrondo, entraram na casa de Adão Batista Gomes (líder comunitário cujo nome aparece em primeiro lugar na ação judicial contra a empresa de agronegócios) e o prenderam, libertando-o em seguida. Provavelmente a Estrondo irá recorrer da decisão judicial.

Catarina Lopes Leite mora em uma área rural de Formosa do Rio Preto desde que nasceu, há 59 anos. Ela é um dos geraizeiros que está resistindo à invasão do agronegócio nas terras das comunidades tradicionais. Foto: Flávia Milhorance.

As comunidades tradicionais do oeste da Bahia obtiveram uma grande vitória jurídica, que permitiu a permanência delas em uma área reivindicada pela Agronegócio Condomínio Cachoeira do Estrondo, uma grande empresa de agronegócios.

Como a Mongabay relatou em março, as comunidades rurais do município de Formosa do Rio Preto acusaram a grande fazenda de expandir ilegalmente suas operações nas terras que pertenciam a elas. As comunidades também denunciaram a empresa por empregar homens armados que bloquearam estradas locais com pontos de controle de segurança para intimidar a população local e impedir sua passagem para os mercados da cidade.

No dia 6 de maio, um tribunal de apelações do estado da Bahia confirmou a decisão preliminar, salvaguardando o território das comunidades e aplicando uma multa à empresa de R$ 50.000 por dia, para cada dia em que a decisão judicial não fosse cumprida. A empresa ainda tem o direito de recorrer da decisão.

As terras disputadas fazem parte do Cerrado, bioma ameaçado que é o segundo maior bioma brasileiro depois da Amazônia. Os planaltos do Cerrado, ou chapadas, são preferidos para o cultivo mecanizado porque são planos e podem ser facilmente arados para plantações de soja, algodão e milho. Foto: Flávia Milhorance.

“Essa vitória é extremamente importante para essas comunidades”, disse Maurício Corrêa, membro da Associação de Advogados de Trabalhadores Rurais no Estado da Bahia, que supervisionou o caso. “Estamos todos entusiasmados com ela. A Estrondo é muito influente e se livrou de várias [outras] ações judiciais. As chances de que essa decisão seja revertida são bastante limitadas agora.”

Os pequenos agricultores são conhecidos como geraizeiros e suas comunidades tradicionais ocupam a região por até dois séculos. Os geraizeiros cultivam áreas de lavoura e pastagem, preservando o bioma circundante, o Cerrado, rica savana brasileira. Essas comunidades tradicionais são reconhecidas pelo governo brasileiro por seus meios de vida sustentáveis enraizados em seus territórios e, segundo ele, devem ser protegidas.

Mas a região oeste da Bahia tornou-se recentemente um alvo para a rápida expansão do agronegócio, levando ao desmatamento acelerado e ao aumento dos conflitos agrários. Formosa do Rio Preto, com aproximadamente 22 mil habitantes, é hoje uma das maiores produtoras de soja do Brasil, com 1,4 milhão de toneladas colhidas no ano passado e projeções de crescimento de 23% até 2027, segundo o Ministério da Agricultura – o que significa que os conflitos do agronegócio com as comunidades tradicionais só tende a aumentar.

A Agronegócio Condomínio Cachoeira do Estrondo, uma empresa de agronegócio de grande porte, colocou placas nos limites da propriedade que ela reivindica em áreas rurais de Formosa do Rio Preto, mas as comunidades tradicionais dizem que parte da terra é delas, uma afirmação com a qual um tribunal do estado da Bahia concordou recentemente. Foto: Flávia Milhorance.

Historicamente, as comunidades tradicionais construíram suas casas nas planícies do cerrado, os baixões, deixando que seu gado circulasse livremente nas pastagens naturais das chapadas. No entanto, as chapadas são valorizadas pelo agronegócio mecanizado porque são planas, permitindo o uso de equipamentos agrícolas pesados, e por receberem muita chuva, necessária para as monoculturas de soja, milho e algodão, que consomem muita água.

Como as comunidades tradicionais normalmente não têm escritura dessas terras altas – uma situação comum na zona rural brasileira – o agronegócio industrial de larga escala se apropriou da maior parte do planalto em torno de Formosa do Rio Preto nos últimos anos. Mas as pequenas comunidades ainda resistem nas planícies.

A Agronegócio Condomínio Cachoeira do Estrondo chegou ao oeste da Bahia na década de 1970. Hoje ocupa uma área de 305 mil hectares, quase quatro vezes o tamanho da cidade de Nova York. O empreendimento é de propriedade conjunta de 24 empresas produtoras de soja, milho e algodão. A área reivindicada, e agora reconquistada, pelas 62 famílias em sete comunidades faz parte de um trecho de 55 mil hectares nas planícies ao longo do Rio Preto.

Vala escavada pela Agronegócio Condomínio Cachoeira do Estrondo, com quase 3 km de extensão e aproximadamente 3 m de profundidade, com o excesso de terra empilhado ao lado dela, destinada a impedir a passagem de pessoas e rebanhos das comunidades tradicionais em Formosa do Rio Preto, Bahia. Foto cedida pela ONG 10envolvimento.

Conflito constante

Apesar da decisão judicial, os geraizeiros dizem que continuam sendo intimidados pela Estrondo. Poucas semanas depois da decisão, como uma evidente oposição ao veredicto, a empresa cavou uma trincheira de quase 3 km para impedir a circulação de pessoas e rebanhos locais. “Não podemos mais levar o gado para pastar em algumas áreas, e algumas famílias estão mais isoladas”, diz Jossone Lopes Leite, que mora na comunidade rural de Cachoeira, a 96 km das estradas municipais pavimentadas.

Cachoeira é uma das aldeias de geraizeiros mais bem organizadas ao longo do Rio Negro. Durante a visita da Mongabay, em fevereiro passado, a comunidade ostentou uma pequena torre de telefonia celular que as conectava com o mundo, construída pelas próprias famílias a um custo compartilhado de R$ 10.000.

Em maio, no entanto, membros da comunidade disseram que o destacamento de segurança privada da Estrondo, junto com a polícia local, desmontou a torre, que foi levada para a sede da fazenda. Nenhuma razão foi dada para o roubo.

Por meio de uma ligação pelo WhatsApp feita a 48 km de distância de Cachoeira, Jossone contou à Mongabay: “Hoje, quando preciso conversar com alguém, venho aqui para uma fazenda onde o proprietário me deixa usar a Internet.”

Há dois séculos, as comunidades tradicionais geraizeiras cultivam pequenas lavouras e criam gado em Formosa do Rio Preto, na Bahia. Foto: Flávia Milhorance.

Além disso, em Cachoeira, na noite de 6 de junho, a polícia local e agentes de segurança privada, supostamente empregados da Estrondo, entraram na casa de Adão Batista Gomes, o líder comunitário cujo nome aparece em primeiro lugar na ação judicial contra a empresa de agronegócio.

De acordo com Adão, os homens não tinham um mandado de acusação de porte ilegal de armas e destruição das cabines de segurança da empresa. Em março, a Mongabay informou que os geraizeiros derrubaram cercas e duas cabines erguidas pela Estrondo porque bloqueavam uma estrada que eles usavam para viajar regularmente para a cidade de Formosa do Rio Preto. De acordo com a comunidade, a estrada continua aberta ao tráfego e homens armados não são mais vistos naquela área.

Adão passou a noite na cadeia e conversou com a Mongabay no dia seguinte à sua liberação. Ele negou ter participado da destruição das cabines e das cercas e explicou que tinha uma arma antiga, usada para espantar animais selvagens do seu quintal. “Eu fui solto ao meio-dia, depois de ser ouvido… Acho que isso foi apenas uma desculpa para me incriminar, já que eles [a Estrondo] estão sendo derrotados no tribunal. Eu sei que sou um alvo, mas isso não me intimida.”

A equipe de reportagem da Mongabay visitou as cabines de segurança da Estrondo, destruídas em fevereiro. O líder comunitário Adão Gomes foi acusado pela polícia e pela segurança privada de participar da destruição, mas ele nega a participação. Foto: Flávia Milhorance.

Martin Mayr, da ONG 10envolvimento, diz que esses incidentes recentes foram denunciados ao Ministério Público Estadual (MPE). A ONG registrou uma queixa formal, afirmando que “essas incursões desrespeitam os territórios das comunidades tradicionais geraizeiras no alto Rio Preto e resultarão em sérios danos ambientais”. Maurício Corrêa acrescenta que o tribunal também foi informado sobre os últimos acontecimentos, mas ainda não multou a empresa pelas novas infrações.

A Agronegócio Condomínio Cachoeira do Estrondo foi contatada pela Mongabay e confirmou o recebimento do pedido de comentário, mas não deu mais nenhuma resposta. Em sua proposição, a empresa alegou que “sempre respeitou” as comunidades, mas argumentou que os geraizeiros basearam suas reivindicações em documentos “tendenciosos” e relatos orais que não poderiam “respaldar a delimitação da área acima mencionada”. A Mongabay também contatou a polícia local, mas não conseguiu falar com o delegado; a polícia não respondeu aos vários pedidos de comentários.

A batalha judicial continua

Houve mais dois desdobramentos da batalha judicial – ambos a favor das comunidades tradicionais locais e contra a grande empresa do agronegócio.

No final de maio, um parecer legal emitido pelo MPE apoiou as reivindicações de terras feitas pelos geraizeiros. Há “fortes evidências” de que as famílias são “os verdadeiros donos das terras em questão”, atesta o documento. O parecer também reconhece que há “diversas queixas de bloqueio de passagens” através da área local, o que “impede que [membros da comunidade] realizem suas atividades”.

A ONG 10envolvimento adverte que a vala escavada pela Estrondo está intensificando a erosão do solo e causando impactos ambientais. Foto cedida pela ONG 10envolvimento.

No segundo desdobramento, a Coordenação de Desenvolvimento Agrário (CDA) publicou um relatório contestando os títulos de propriedade da Estrondo. O documento aponta que o comportamento da empresa no passado foi descrito pelo INCRA como um “caso sério de suposta grilagem na Bahia”. A CDA também apoia o parecer da decisão judicial: que os geraizeiros do Rio Preto “se encaixam perfeitamente na definição de povos tradicionais” protegidos pela lei brasileira.

O relatório da CDA foi encaminhado à Procuradoria Geral do Estado (PGE), solicitando que ela “promova a regularização fundiária da área historicamente ocupada (cerca de 55 mil hectares) pelas comunidades geraizeiras do alto Rio Preto”. A PGE foi contatada, mas não respondeu até o momento desta publicação.

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