O Brasil está perdendo apenas para os EUA no uso de pesticidas químicos, e muitos dos produtos químicos pulverizados no Brasil nos cultivos de soja e em outras culturas são proibidos pela União Europeia (UE) e pelos EUA. O envenenamento por pesticidas é um grande problema brasileiro. Em 2016, 4.208 casos de intoxicação por exposição a pesticidas foram registrados em todo o país — o equivalente a 11 por dia (matando 355 pessoas).
A bancada ruralista, o poderoso lobby do agronegócio, está atualmente promovendo uma emenda por meio do Congresso que enfraqueceria significativamente a lei de 1989 sobre agrotóxicos do Brasil. Analistas dizem que a legislação (6.299/2002), apelidada de “PL do Veneno” pelos críticos, tornaria a aprovação de novos pesticidas muito mais fácil.
As regras imprecisas sobre os pesticidas do Brasil não são apenas uma ameaça para os trabalhadores rurais. Muitas toxinas são persistentes no meio ambiente e nos alimentos que ingerimos. Uma análise brasileira de resíduos de pesticidas em alimentos como arroz, maçãs e pimentões constatou que, de 9.680 amostras coletadas entre 2013 e 2015, cerca de 20% continham resíduos de pesticidas que excederam os níveis permitidos ou continham pesticidas não aprovados.
Produtores de pesticidas transnacionais como Syngenta, Bayer e BASF produzem pesticidas na UE que são considerados altamente perigosos — tão perigosos que são proibidos em seus países de origem — mas as empresas também vendem esses pesticidas em grandes quantidades para o Brasil e para outros países em desenvolvimento. Especialistas dizem que as exportações brasileiras de frutas, legumes e café podem estar contaminadas.
Tocantins, Brasil — Em abril, Franciana Rodrigues de Araus, que estava grávida de 5 meses, saiu de casa na motocicleta do irmão. Enquanto se afastava de sua comunidade, cercada por duas grandes fazendas de soja, um avião sobrevoou sobre ela e aspergiu pesticidas em seu corpo exposto. No mesmo instante, suas pernas começaram a doer; ela se sentiu enjoada e com tontura. Quando sua condição piorou, Franciana foi levada para um hospital local, em que exames de sangue revelaram envenenamento por pesticidas.
Transferida às pressas para um segundo hospital a 5 horas de distância de Araguaína, na capital do estado de Tocantins, foi internada por 7 dias. “Eu não conseguia respirar, quase morri”, recordou Franciana. “Ainda estou tomando antibióticos, um mês depois, o que não deveria acontecer, porque estou grávida”, contou à Mongabay em uma entrevista em maio. Na época, seu médico advertiu que ela tinha pressão extremamente alta, sofria de uma infecção nos rins e que seu bebê precisaria de uma cesariana devido à falta de ar de Franciana.
“Se eu não estivesse usando um capacete, teria sido meu fim”, lamentou.
O fazendeiro de soja proprietário da terra em que os pesticidas foram pulverizados visitou Franciana logo depois que ela chegou no hospital. Ele se ofereceu para pagar seus custos médicos e alimentação durante os meses que antecederiam o nascimento do bebê; em troca, ele pediu silêncio, que ela não reportasse o incidente à polícia.
A experiência de Franciana não é incomum. No final de julho, a Human Rights Watch divulgou um relatório de 52 páginas que documenta casos de intoxicação aguda causada por pesticidas carregados pelo vento ao longo de áreas locais rurais do Brasil.
O relatório da Human Rights Watch, intitulado “Você não quer mais respirar pesticidas”, conta como os residentes rurais vivem com medo de denunciar envenenamentos por pesticidas, e ficam em silêncio em vez de advogar por regulamentos protetores que garantam o uso seguro dessas substâncias tóxicas. Eles temem que sejam sujeitos a represálias de grandes proprietários de terra com influência política e econômica significativa.
Franciana, por exemplo, não relatou seu incidente por medo de perder a pequena ajuda financeira que o proprietário lhe ofereceu.
Embora possa parecer que o problema de Franciana seja apenas do Brasil, o fato de que essa nação latino-americana exporta grandes quantidades de frutas, vegetais e café pulverizados, juntamente com carne engordada com soja carregada de pesticidas, deve fazer os consumidores de todo o mundo parar para pensar.
O aumento súbito do uso de pesticidas no Brasil
Há diversas preocupações sociais envolvidas no cultivo nos campos brasileiros, porém, a mais insidiosa, de longe, é a intoxicação por pesticidas. Em 2016, 4.208 casos de intoxicação por exposição a pesticidas foram registrados em todo o país — o equivalente a 11 por dia (matando 355 pessoas). Tocantins é o estado com os níveis mais altos de envenenamento causado pelo uso de agrotóxicos, de acordo com os dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN).
Apesar desse perigo claro e presente, a questão do uso de pesticidas no Brasil é altamente controversa, com o setor agrícola politicamente poderoso de um lado, pressionando por uma maior desregulamentação, e as ONGs ambientais e sociais e acadêmicos do outro lado, exigindo uma abordagem mais rigorosa e preventiva à legislação. Os ativistas muitas vezes deixam de lado seus argumentos apontando para uma longa lista de herbicidas e inseticidas que são legais e de uso liberado no Brasil, mas que foram considerados carcinogênicos ou perigosos para a saúde e proibidos na UE e nos Estados Unidos.
O Brasil é hoje um dos consumidores mais vorazes de pesticidas do mundo, perdendo apenas para os EUA, e é o maior usuário no mundo em desenvolvimento, gastando US$ 9,6 bilhões em toxinas agrícolas anualmente desde 2015.
Atualmente, existem 150 pesticidas autorizados para uso no Brasil apenas na cultura da soja, 35 dos quais são proibidos na Europa, segundo a professora da Universidade de São Paulo (USP), Larissa Bombardi.
Entre os considerados mais perigosos e amplamente utilizados nas fazendas brasileiras estão o acefato, a atrazina, o carbendazime e o lactofen — todas as quatro substâncias são proibidas na Europa.
O acefato pode causar respostas cardíacas negativas, comprometimento do sistema nervoso central, problemas oculares e gastrointestinais e morte por insuficiência respiratória, de acordo com pesquisadores da Universidade de Cornell no estado de Nova York. No ano passado, foi proibido na China.
A atrazina pode ter efeitos prejudiciais sobre os hormônios e sistemas reprodutivos, e acredita-se ser carcinogênica, de acordo com a Pesticide Action Network (PAN), enquanto que o carbendazim também pode ser um carcinógeno, contribuindo para defeitos genéticos e infertilidade.
Silvia Fagnani, diretora executiva do Sindicato Nacional da Indústria de Produtos para Defesa Vegetal (Sindiveg), um poderoso grupo a favor dos pesticidas, defende a disparidade entre as regulamentações da UE e brasileira, dizendo que “os produtos usados aqui [no Brasil] podem não ser necessários em países com inverno rigoroso — frequentemente com neve — que reduz naturalmente as pragas e seus danos”.
Acadêmicos e ambientalistas veem a disparidade de maneira diferente: “O Brasil é mais negligente [do que outros países] porque ainda tem uma democracia muito frágil em comparação com os países europeus”, disse Victor Palaez, professor do Departamento de Economia da Universidade Federal do Paraná e coordenador do Observatório da Indústria Agroquímica. As “instituições do governo estão mais envolvidas com interesses privados do que com interesses públicos”, acrescentou.
Mudando a lei
A discussão sobre segurança e regulamentação de agrotóxicos tem sido travada na legislatura brasileira há décadas, mas agora parece que está chegando ao fim. Uma emenda votada recentemente no Congresso (6.299/2002), apelidada de “PL do Veneno” pelos críticos, mudaria as regras brasileiras de pesticidas de 1989 de várias maneiras importantes e outorgaria concessões pelas quais a indústria de pesticidas fez lobby por anos.
Se o projeto de lei for aceito, a aprovação futura de novos pesticidas não se basearia na sua toxicidade inerente ou no risco de uma determinada substância, mas sim na dose (um modelo rejeitado pela UE em 2011). Além disso, os pesticidas seriam licenciados por um período ilimitado sem revisão para avaliar novas evidências científicas. Os EUA exigem uma revisão a cada 15 anos, enquanto o Reino Unido tem um período de revisão de 10 anos. Além disso, o projeto de lei pede a simplificação do processo de aprovação de pesticidas, colocando a responsabilidade final da tomada de decisões apenas sobre o Ministério da Agricultura, tirando toda a supervisão dos Ministérios de Saúde e Meio Ambiente.
Silvia Fagnani, do Sindiveg, afirma a necessidade de alterar a lei existente para “modernizar” o setor. “É importante esclarecer que essa emenda não exclui o rigor científico e a transparência no processo de registro, que é essencial para a segurança e o desenvolvimento da indústria nacional”, afirmou. “Ela veio da necessidade de modernizar a legislação atual para trazer ainda mais tecnologia para o campo, garantindo mais inovação, eficiência, investimento e progresso nas lavouras do país e mais alimentos na mesa brasileira”.
O chamado PL do Veneno é apoiado pela poderosa bancada política ruralista do agronegócio, cujo principal defensor é o Ministro da Agricultura, Blairo Maggi, outrora conhecido como Rei da Soja, e um descarado defensor do agronegócio industrial e ex-governador do estado do Mato Grosso. Maggi também é o autor da emenda original do projeto de lei de pesticidas de 2002 que o Congresso está impulsionando hoje.
Em 25 de junho, um comitê especial do Congresso composto de 26 deputados — incluindo 20 membros da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) — aprovou o texto do projeto de lei, que agora deve ser votado pela Câmara dos Deputados e pelo Senado e, se aceito, aprovado pelo o presidente.
A ANVISA, Agência Nacional de Vigilância Sanitária, declarou firmemente sua oposição ao projeto de lei, assim como uma longa lista de organizações governamentais, ONGs, acadêmicos e advogados.
O professor Palaez é claro em suas críticas à emenda. Ele concorda que o atual processo de aprovação de novos pesticidas é inaceitavelmente lento, observando que existem 2.500 toxinas químicas aguardando avaliação no momento. No entanto, ele acredita que isso é causado não por incompetência, mas por uma extrema falta de pessoal e financiamento — apoio à implementação nunca dado à lei original de 1989. Enquanto os EUA empregam 650 técnicos para avaliar novos pesticidas, o Brasil tem apenas 67 designados da mesma forma.
Palaez também ressalta que, em muitos países desenvolvidos, o financiamento necessário para testar e aprovar pesticidas é obtido com a imposição de taxas elevadas de registro de produtos às empresas privadas que venderão os produtos. Mas ao contrário dos EUA, as taxas de registro cobradas pelas agências brasileiras não são repassadas para as agências reguladoras, explicou.
“Todos sabemos que neste país os recursos são sistematicamente redirecionados para os gastos emergenciais do governo central”, disse Palaez. “Isso impede a construção de uma política pública coerente e consistente de captação e utilização dos recursos e para as empresas que se beneficiam diretamente de atividades que representam um risco”.
Os perigos dos pesticidas se estendem da fazenda ao prato
Antônio Luís trabalhou em uma fazenda de soja no estado do Maranhão, no norte do Brasil, onde preparou pesticidas para uso. Em 2009, quando sua máscara de proteção parou de funcionar corretamente, ele alertou seu gerente sobre o problema, mas foi instruído a voltar ao trabalho e parar de reclamar.
Três dias depois, Luís desmaiou. Um ano depois, teve um derrame. Seu médico confirmou que Luís havia sofrido intoxicação por pesticidas.
Como é típico, a mistura tóxica que Luís misturava todas as manhãs não consistia de apenas um pesticida, mas de vários; neste caso, uma mistura de Zap, 2,4-D e Cobra. Zap é um nome comercial para o glifosato — o ingrediente ativo do Roundup da Monsanto, o mais usado no mundo, mas um inseticida altamente controverso ligado a problemas de saúde humana e animal e ao declínio da biodiversidade. O glifosato permanece legal na maioria das nações, embora movimentos para proibi-lo ou limitar seu uso estejam em andamento em vários países e comunidades. Entretanto, os resíduos máximos de glifosato permitidos nos alimentos para consumo são drasticamente mais altos no Brasil do que na Europa; 10 vezes maior no café, 20 vezes maior na cana-de-açúcar e 200 vezes maior na soja..
Cobra é uma marca registrada da Lactofen, uma substância proibida da UE usada legalmente em todo o Brasil. Em 2008, após grande pressão aplicada por ONGs e acadêmicos, a ANVISA começou a reavaliar seu uso. Oito anos depois, em 2016, a agência determinou que o Cobra poderia permanecer no mercado sem alterações. Esse veredicto não surpreende os críticos do processo de avaliação de pesticidas no Brasil. De acordo com o último relatório da ANVISA, apenas onze pesticidas foram proibidos no Brasil desde 2006, apesar de dezenas de pesticidas químicos terem sido banidos na UE, nos EUA e em outros países, à medida que surgiram novas evidências científicas de danos.
O perigo que esses pesticidas apresentam não coloca em risco só os trabalhadores agrícolas — muitos pesticidas químicos após a pulverização permanecem extremamente persistentes no ambiente e nos alimentos que ingerimos.
As triagens feitas pelos órgãos reguladores mostram que uma parcela significativa dos alimentos cultivados e vendidos no Brasil viola as regulamentações nacionais sobre resíduos (limites muito mais laxos do que os estabelecidos na UE). A última análise da ANVISA sobre resíduos de pesticidas em alimentos em todo o Brasil revelou que de 9.680 amostras coletadas entre 2013 e 2015 — com testes feitos em culturas que vão de arroz a maçãs e pimentões — que 20% continham resíduos que excederam os níveis permitidos ou continham pesticidas não aprovados — isso é um quinto da comida examinada.
O carbendazim (outro pesticida proibido na UE) ganhou o duvidoso prêmio pelos mais altos níveis de detecção no estudo da ANVISA, aparecendo em 21% das amostras de alimentos analisadas, enquanto o acefato (também banido da UE) ficou em terceiro lugar.
Seguindo a cadeia de fornecimento de pesticidas
Os dez maiores fabricantes de pesticidas vendidos no Brasil alcançaram US$ 7,9 bilhões em vendas no ano passado, com essas empresas ocupando mais de 83% do mercado brasileiro. Muitas delas são corporações transnacionais, que legalmente fabricam pesticidas em países desenvolvidos onde os produtos químicos tóxicos são proibidos para uso, enquanto são exportados para países em desenvolvimento, onde são legais.
Syngenta, Bayer e BASF são três exemplos. Todas são grandes empresas transnacionais baseadas na Europa; todas produzem pesticidas considerados altamente perigosos — tão perigosos que de fato são proibidos em seus países de origem; mas essas empresas também vendem esses produtos químicos em grandes quantidades para o Brasil e para outros países em desenvolvimento.
A Syngenta produz atrazina e paraquat, ambos proibidos pela UE e comercializados no Brasil. Embora a ANVISA tenha considerado que o paraquat represente riscos inaceitáveis à saúde e o proibirá no Brasil a partir de 2020, a Syngenta defende sua venda continuada. “É um herbicida de contato altamente eficaz e ideal para a agricultura sustentável, incluindo a prática de plantio sem aragem da terra, e é um forte aliado dos agricultores no manejo da terra, o que reduz o impacto [ambiental] da agricultura e o uso de máquinas agrícolas”, explicou um porta-voz da Syngenta.
Quando contatada pela Mongabay, a Bayer admitiu que vende carbendazim. A BASF esclareceu que “a BASF no Brasil” não produz atrazina, paraquat, acefato ou carbendazim, mas não confirmou se produz ou não essas substâncias na UE ou em outro lugar e depois as vende no Brasil.
A ameaça à saúde e ao meio ambiente que esses pesticidas representam não se estende apenas aos trabalhadores rurais e consumidores brasileiros. Os cultivos nos quais esses pesticidas são amplamente pulverizados também são exportados para o mundo todo. A soja brasileira, cítricos, uva e café são consumidos em grande escala na UE e nos Estados Unidos, enquanto que a soja brasileira alimenta a pecuária do Brasil e da UE, incluindo as aves britânicas, que são servidas no McDonalds, outros restaurantes e supermercados.
Por esse motivo, os resultados da ANVISA em relação aos resíduos de pesticidas em alimentos levantam sérias preocupações com relação aos produtos brasileiros vendidos e consumidos no exterior. Essa é uma questão em particular que a China talvez queira questionar, já que avalia mudar suas principais compras de soja e carne bovina dos EUA para o Brasil devido à guerra comercial de Trump impulsionada por tarifas. Os produtores brasileiros usam grandes quantidades de pesticidas na produção de soja.
No ano passado, o Comitê de Especialistas do Reino Unido sobre Resíduos de Pesticidas em Alimentos (PRIF – Pesticide Residues in Food), um órgão independente que presta assessoria ao governo do Reino Unido, encontrou níveis (acima do limite legal) do pesticida carbofuran nos limões importados do Brasil. O relatório do PRIF indicou que, se todo o fruto contaminado fosse consumido, “as pessoas poderiam apresentar sinais transitórios de toxicidade colinérgica (por exemplo, dor de cabeça, distúrbios do estômago, salivação e resposta reduzida da pupila)”.
O carbofuran é proibido no Reino Unido desde 2001 e foi proibido nos EUA há quase uma década por apresentar “um risco alimentar inaceitável, especialmente para as crianças, de consumir uma combinação de alimentos e água com resíduos”. Ele só foi proibido no Brasil no segundo semestre do ano passado, daí sua recente aparição nos limões no Reino Unido.
“É um duplo padrão que a União Europeia está satisfeita em importar produtos que são cultivados com pesticidas que foram considerados inseguros para uso na UE, como resultado de preocupações com a saúde humana ou danos ambientais”, disse Nick Mole, diretor de política da Pesticide Action Network do Reino Unido.
Wanderlei Pignatti, especialista acadêmico e líder em agrotóxicos no Brasil, acredita que o governo brasileiro deve atuar com urgência para combater os problemas de saúde e ambientais causados pelos pesticidas. “Precisamos ver uma proibição imediata da pulverização de substâncias por avião, e para que todas as substâncias proibidas na União Europeia sejam proibidas no Brasil”, comentou. Claramente, esta é uma questão importante não apenas para os trabalhadores rurais brasileiros, mas também para os consumidores de frutas, legumes e carne brasileiras em todo o mundo.