De acordo com a Constituição brasileira de 1988, toda propriedade privada deve servir a alguma função social. Portanto, propriedades sem uso e sem função social podem ser ocupadas legalmente e reivindicadas por comunidades sem terra. No entanto, essa lei cria grandes conflitos por terra entre grandes proprietários, que reivindicam a posse de muitas propriedades, e comunidades sem terra que buscam seu espaço.
Um caso notório aconteceu no estado do Tocantins. Em 2007, famílias começaram a ocupar e a morar em terras abandonadas. Quase que imediatamente, dois proprietários reivindicaram a terra e começaram uma disputa judicial por sua posse. Os ocupantes sem terra permaneceram no terreno, com a esperança de que o governo decidisse a seu favor.
Em 2010, segundo testemunhas, um dos proprietários atirou em um dos membros da comunidade, mas a data para o julgamento do crime ainda não foi marcada. Em abril, o suposto assassino convenceu os tribunais quanto a seu direito de propriedade, e os moradores de Gabriel Filho (a comunidade recebeu o nome de um de seus membros, vítima de assassinato) foram desalojados, impedidos de entrar em suas terras e de ter acesso a suas plantações e criações de animais.
As autoridades federais e estaduais responsáveis por resolver o conflito de terra se calaram e não tomaram nenhuma atitude em favor da comunidade. Especialistas afirmam que os movimentos de sem terra no Brasil geralmente recebem pouco apoio dos órgãos governamentais ou do sistema judiciário em suas reivindicações por terra, e que não recebem muita admiração do público em geral.
Essa é a primeira de uma série de reportagens feita pela jornalista Anna Sophie Gross, que viajou para os estados brasileiros do Tocantins e do Maranhão, na Amazônia Legal, em maio, pela Mongabay, para avaliar os impactos do agronegócio no meio ambiente e na população da região.
GABRIEL FILHO: Tocantins, Brasil: em abril deste ano, 19 famílias tiveram que abandonar as casas onde viveram por mais de uma década, e forçadas a deixar para trás suas plantações e criações de animais. Além do sentimento de injustiça que os moradores vivenciaram, o homem que solicitou seu despejo é acusado de ter assassinado um membro da comunidade em 2010.
Pouco depois desse assassinato, as famílias decidiram nomear sua comunidade de “Gabriel Filho”, em homenagem ao falecido, para enaltecer a tragédia que marcou sua identidade coletiva e para servir de lembrança.
Hoje, os cem moradores exilados de Gabriel Filho se encontram em um limbo judicial, e moram em barracas improvisadas – lonas penduradas em postes de madeira. Eles foram impedidos por um tribunal de voltar à comunidade para cuidar de suas terras e de seus animais.
“Não podemos nem voltar para pegar nossas coisas, nem para colher nossas plantações. Se voltarmos, seremos presos”, afirma Eulina de Silva Sousa, uma mãe de 40 anos, retirada a força de sua casa pela polícia no dia 17 de abril. “Acordei de manhã, me senti triste, quieta, e fiquei pensando o que iríamos fazer amanhã. O que vamos improvisar para comer amanhã?”
Eulina planejava frequentar a universidade para se tornar professora. Ela passou no vestibular e plantava mandioca – ela iria usar o dinheiro da venda para pagar pelo curso. Impedida de acessar a plantação, ela interrompeu seus planos de frequentar a faculdade por tempo indefinido.
“Eles tiraram nosso direito de sonhar”, afirma.
Essa história não é incomum no Brasil, mas é símbolo dos conflitos por terra que assolam o país. O problema surge no âmbito da lei, que declara que toda terra privada deve ter uma função social. Mesmo quando reivindicada por alguém, a terra não pode ficar sem uso. A terra que não servir a uma função social pode ser reivindicada legalmente e ocupada por comunidades sem terra que ganham, então, o direito de permanecer nela.
Esse foi o processo pelo qual a comunidade de Gabriel Filho foi fundada em 2007. De acordo com os primeiros ocupantes que chegaram ao local, a terra em que se assentaram estava abandonada há algum tempo. Mas pouco depois de estabelecer sua comunidade, um proprietário de terras e fazendeiro, chamado Paulo de Freitas, declarou que ele era o dono da propriedade. Exibindo uma escritura que mostrava que ele havia comprado a terra alguns anos antes, Paulo exigiu a expulsão da comunidade.
Depois de alguns meses, outro fazendeiro, Pedro Beringel, alegou que ele era o dono legítimo da propriedade, e levou Paulo de Freitas à justiça. Nessa altura, havia três lados na disputa, todos reclamando a propriedade da terra: a comunidade, Paulo de Freitas e Pedro Beringel.
Paulo de Freitas alega que comprou a terra de um dos parentes de Pedro na época em que Pedro estava doente. Pedro Beringel nega esta afirmação e diz que a venda da terra foi ilegal, já que foi feita sem sua autorização.
Enquanto Paulo de Freitas e Pedro Beringel brigam na justiça, os assentados aguardam sua vez, com a esperança de que o governo reconheça seu direito de ocupação dentro da lei. Pedro Beringel disse à comunidade que se ele ganhasse o processo, ele venderia o terreno ao governo para ajudar a proteger a comunidade e torná-la permanente.
Em 2010, no ápice do conflito de terra, um membro da comunidade, chamado Gabriel Filho, de cerca de 40 anos de idade – descrito por seus amigos como leal, com forte senso de comunidade – levou um tiro no peito enquanto se dirigia a uma pequena construção de propriedade de Paulo de Freitas. Testemunhas afirmam que Paulo estava na construção no momento, e que ele foi o responsável pelo disparo.
“Um membro de nossa comunidade foi morto, e Paulo de Freitas era o único suspeito. Então, fomos levados a acreditar que o sistema de justiça nos daria o direito de permanecer na terra”, afirma Maria Socorro Barreira Santos, 58 anos, esposa, mãe e membro da comunidade. “Acreditamos nisso, então ficamos. Continuamos a plantar limão, mandioca. Plantávamos para nossa subsistência”.
A justiça caminha a passos lentos no Brasil, mas parece que empacou no caso Gabriel Filho. Oito anos já se passaram e o acusado de assassinato, Paulo de Freitas, ainda não foi levado a julgamento. “O juiz age como se ele tivesse matado um cachorro, e não um ser humano”, afirma Maria Socorro. “A gente se sente humilhado, como se as pessoas estivessem pisando em cima de nós”.
Sandro Pereira Pinto, o promotor que representa os assentados, relata os fatos ocorridos desde a morte de Gabriel Filho em 2010. As tentativas de desalojar a comunidade cessaram e o processo quanto à propriedade da terra foi suspenso. “O homem que incialmente reivindicou a terra, Paulo de Freitas, abandonou o caso, parou de debatê-lo. Ele já não participa do processo há 5 ou 6 anos”, afirma Sandro.
Durante esse tempo, as famílias melhoraram suas condições de vida. Elas construíram moradias resistentes, plantaram mandioca, feijão e melão, criavam cavalos, galinhas e porcos. Segundo Sandro Pereira Pinto, de acordo com a lei brasileira, essas atividades domésticas deveriam reforçar o direito legítimo dos assentados pela reivindicação para permanecerem na propriedade.
Mas, quando Paulo de Freitas retomou a disputa judicial para expulsar as 30 famílias, em 2015, o juiz decidiu a seu favor e expulsou a comunidade, com base em escrituras apresentadas por Paulo em 2007. Os fatos do processo não foram reavaliados para que o assassinato de Gabriel Filho fosse levado em consideração, nem o período de cinco anos durante o qual a comunidade permaneceu na terra sem que ela fosse reivindicada.
Coincidentemente, o juiz que concedeu a Paulo de Freitas o direito de expulsar as famílias é o mesmo juiz que comanda o caso de assassinato. O juiz, assim como Paulo de Freitas, é um grande proprietário de terras e fazendeiro da região. Alguns membros da comunidade acreditam que o juiz é um bom amigo de Paulo de Freitas. A Mongabay tentou contato com Paulo de Freitas, por meio de seu advogado, mas não obteve resposta.
“Os juízes, no Brasil, não simpatizam com camponeses. Eles têm dificuldades para entender sua perspectiva”, afirma Sandro. “Eles não conseguem entender a ideia de que um grupo de pessoas possa simplesmente chegar a um pedaço de terra, começar a plantar e a viver dessa atividade sem ter uma escritura que comprove a posse dessa terra. A vida deles está inserida em uma lógica diferente”.
No entanto, a lógica da comunidade é apoiada pela lei. De acordo com a Constituição Federal de 1988, comunidades sem terra têm o direito de entrar e ocupar terra que já não desempenha uma função social há algum tempo. Uma vez estabelecidos na terra, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), órgão federal, é obrigado a compensar o dono da propriedade e a conceder a terra abandonada para a comunidade em forma de propriedade legalizada.
Os advogados que trabalham em prol da comunidade passaram 10 anos tentando fazer com que o INCRA investigasse a terra a fim de provar que ela estava abandonada. Mas o INCRA nunca visitou o local. “Outro mal em nosso estado é que o INCRA não funciona”, explica Lorrany Lorenço Neves, advogada que trabalha no caso pela Comissão Pastoral da Terra (CPT).
Questionado por que o órgão ainda não inspecionou a terra, apesar das dezenas de pedidos oficiais para que a inspeção fosse feita, o superintendente do INCRA no Tocantins, Carlos Alberto Costa, declarou que precisaria da autorização de Paulo de Freitas para entrar na terra em disputa, mas as tentativas de contato com Paulo, que começaram em setembro de 2017, não foram bem sucedidas.
Sem essa autorização, Carlos Alberto precisaria de uma ordem judicial que o autorize a entrar com sua equipe para fiscalizar a propriedade. Ao ser questionado se, considerando a gravidade do caso e a recente expulsão dos moradores, ele já havia tentado obter uma ordem judicial, Carlos Alberto declarou à Mongabay que ainda não. Ao invés disso, ele continuará a tentar encontrar as informações de contato corretas de Paulo de Freitas.
Diante do impasse do INCRA, o promotor público Sandro Pinto está tentando levar o caso de homicídio de Gabriel Filho a julgamento. Caso isso não aconteça, afirmou ele, será uma violação dos direitos humanos.
“O juiz não apenas expulsou a comunidade do local, mas um assassinato ocorreu nessas terras e nenhuma investigação adequada aconteceu, o que significa que provas estão sendo perdidas e ninguém é processado”, afirma Sandro Pinto. “Uma pessoa foi morta na comunidade, seus companheiros viram como tudo aconteceu e o responsável não será acusado. Imagine a sensação de injustiça vivenciada pelos membros dessa comunidade”.
Uma coisa que preocupa em especial Sandro Pinto quanto ao caso Gabriel Filho e outros casos de movimentos de sem terra, é a falta de indignação pública, preocupação e bom senso em relação ao assassinato de um membro de uma comunidade e a expulsão das pessoas das casas onde habitam há muito tempo pelo suposto assassino.
“Estamos pedindo justiça, ajuda e amparo para essas pessoas que estão em acampamentos, para as crianças e os idosos”, declara Eulina. “Só queremos um pedaço de terra para criar nossos filhos e trabalhar. Só queremos um pouco de dignidade. Não pedimos muito”.
A colaboradora da Mongabay, Anna Sophie Gross, foi acompanhada em sua viagem por Thomas Bauer, fotógrafo e cinegrafista que documenta e apoia comunidades no Cerrado e na Amazônia há mais de 20 anos. Thomas produziu quase todas as fotografias e vídeos para essa série de reportagens.
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