No início do século XX, seringueiros estabeleceram comunidades tradicionais ao longo do médio curso do rio Xingu, na Amazônia. No final do século XX, essas comunidades, que se identificam como beiradeiras, resistiram às ameaças de madeireiros ilegais e grileiros.
No começo dos anos 2000, as famílias de São Sebastião foram informadas que um grupo de grandes fazendeiros tinha comprado a terra onde se situava sua vila, e que a comunidade seria forçada a desocupar o local. Sob pressão, os pretensos proprietários admitiram o reassentamento da vila para um ponto rio acima, onde se localiza até hoje. Quase na sequência, em 2005, as pessoas foram informadas novamente que teriam de sair para dar lugar ao Parque Nacional da Serra do Pardo.
As pressões do governo brasileiro contribuíram para a expulsão de algumas famílias, mas a vila como um todo resistiu. Os beiradeiros alegam que não foram devidamente informados sobre o processo de criação do parque, e reforçam que tradicionalmente ocupam esse território e que seu modo de vida contribui com a conservação ambiental, ao invés de prejudicá-la.
Os moradores de São Sebastião continuam a negociar com os agentes do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), para permanecer na área. Embora as negociações caminhem devagar, essa comunidade espera que o conflito seja resolvido logo e que sua ocupação tradicional seja respeitada.
“Quem vai tirar vocês é a fome”, alertou um funcionário do ICMBio, o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, às famílias de beiradeiros e de colonos morando ao longo do curso médio do rio Xingu, na região conhecida como Terra do Meio, no Pará.
Esse aviso ameaçador veio em 2011, seis anos após o governo federal ter englobado as comunidades ribeirinhas tradicionais nos limites do recém-criado Parque Nacional da Serra do Pardo – uma decisão tomada sem consultar a população local.
Para as famílias, essas palavras foram entendidas como uma ameaça clara: elas temiam que o ICMBio, o instituto federal que fiscaliza o parque, os privaria de tudo que precisavam para manter um estilo de vida tradicional, de modo a expulsá-los.
“Eles diziam que, se ficássemos, ia ser que nem carrapato, imprensado no canto da unha”, disse um jovem de São Sebastião do Xingu, vila à qual estão ligadas muitas das famílias.
E eles tinham um bom motivo para se preocupar: a concepção brasileira de parques nacionais é baseada no desenho americano, segundo o qual a prioridade máxima é dada à proteção de ecossistemas, em detrimento dos direitos territoriais de eventuais comunidades tradicionais.
No entanto, os moradores de São Sebastião possuem uma profunda conexão com a sua terra e, durante grande parte da segunda metade do século XX, enfrentaram madeireiros e grileiros para mantê-la. Logo, quando surgiu o parque nacional, eles escolheram o caminho da resistência e da persistência.
Hoje, treze anos após a criação do parque, embora muitos avaliem que o ICMBio tenha recuado em algumas de suas posturas coercitivas, as famílias que vivem no interior do parque seguem em compasso de espera, sem uma definição clara sobre seus direitos territoriais, além de enfrentar outros vetores de expropriação, como as dificuldades em acessar direitos básicos de saúde e educação.
O formato do rio
Dona Albertina Lopes da Silva, uma antiga moradora de São Sebastião, toma nas mãos o retrato da canoa que singra o rio. Seu olhar logo se desprende do filho pescador, em primeiro plano, e escrutina as formas que aparecem enevoadas, ao fundo. “Aqui é ao lado da vila velha, com a praia da Gaivota, o morro…” Silêncio, olhos e mãos esquadrinham o horizonte da imagem: “Eu sei pelo formato do rio”.
Dona Albertina, como a maior parte das famílias que vivem no Parque Nacional da Serra do Pardo e seus arredores, descende dos seringueiros e povos indígenas de uma região conhecida como Terra do Meio, uma extensão de floresta cercada pelos rios Xingu e Iriri, situada entre os municípios de Altamira e São Félix do Xingu.
A vila de São Sebastião foi fundada no começo do século XX por um seringalista que veio da capital do estado, Belém. Em seu seringal, como de costume, empregavam-se trabalhadores migrantes, principalmente do Nordeste, para extrair borracha das seringueiras. Antes disso, o médio Xingu constituía território de perambulação de diversos povos indígenas, para quem a empreitada extrativista significou profundos impactos a sua organização social.
São Paulo, Pajaú, Piranheira, Capoeirana, Formiga, Cerrado, Faria – são alguns dos nomes das dezenas de colocações, como se conheciam os locais onde os seringueiros eram alocados durante os meses de produção da borracha, ocupadas por gerações sucessivas até chegar nos atuais moradores da vila de São Sebastião.
“O pessoal que vinha construir uma família, eles vinham de fora”, explica Lucivaldo Vieira da Silva, de 41 anos. Filho de dona Albertina, é nascido e criado em São Sebastião, onde vive até hoje. Seu pai também nasceu no Xingu, filho de migrante paraense, do município de Castanhal, norte do estado.
Em muitas partes da Amazônia – incluindo essa–, os seringueiros, cuja grande maioria era solteira, frequentemente formavam famílias unindo-se a mulheres indígenas, inclusive à sua revelia. A matriz de conhecimento indígena sobre a floresta, porém, foi fundamental para compor o modo de vida diversificado dos beiradeiros. É assim que essas comunidades tradicionais acabaram, ao longo das décadas, por associar a agricultura à coleta de produtos da floresta (incluindo castanhas-do-pará e jaborandi (Pilocarpus jaborandi), uma folha usada pela indústria farmacêutica), ao garimpo em pequena escala e à venda de peles de animais, uma atividade já banida por lei federal.
Madeireiros e grileiros
O comércio da borracha praticamente desaparece do Xingu no final da década de 1980. É por volta desse período que madeireiros começam a se articular para explorar a área, em busca especialmente de mogno e cedro. “Aí era cheio de madeireira. Não era pouca, era muita madeireira”, lembra um beiradeiro. Grupos rivais procuravam aglomerados de árvores valiosas em florestas densas, resultando em disputas pelas áreas de exploração. “Pra uma não pegar as madeiras das outras, botava pistoleiro”, prossegue.
Os madeireiros criaram várias trilhas através da floresta, que eram aproveitadas pelos grileiros para tomar grandes áreas de terra, que eventualmente viravam fazendas de gado. “Era o tempo em que todo mundo achava que era dono”, explica um antigo morador da vila. Nesse mesmo período, em contrapartida, famílias de colonos de outros estados brasileiros começam a migrar para a Terra do Meio. Duas dessas famílias se instalaram nos arredores de São Sebastião, onde ainda moram, passando pelas mesmas dificuldades das outras famílias.
“Teve uma época que quem mandava aqui era o chumbo”, conta um beiradeiro de São Sebastião. Como muitas famílias, a sua foi obrigada a abandonar suas terras sob ameaça de uma arma. Ele descreve seu sentimento de total impotência: “Era com pistolagem, porque a gente não tinha punição. Eu pensei: ‘rapaz, eu não quero saber, não tem mais jeito, eu vou é vazar. Eu não quero é morrer’. Aí hoje estou contando a história”, diz. “Se eu tivesse lá, eu tinha morrido. Por causa de terra.”
No começo dos anos 2000, os beiradeiros foram surpreendidos com a notícia de que um grupo de fazendeiros tinha comprado as terras onde se situava a vila de São Sebastião, e que a comunidade inteira seria forçada a desocupar o local.
“Já pensou?”, indaga uma antiga moradora da vila, “você ter um irmão seu enterrado, uma mãe, uma pessoa assim da gente, e passarem com trator em cima?” Diante de vários protestos, os pretensos proprietários admitiram o reassentamento da vila para outro ponto do rio Xingu, mais acima, onde se localiza até hoje.
A criação do parque
No ano seguinte, a comunidade sofreria outro abalo: a criação do Parque Nacional da Serra do Pardo foi anunciada em fevereiro de 2005. Essa decisão surgiu em meio ao furor causado pelo assassinato da missionária americana, Dorothy Stang, e à medida que o governo brasileiro estabelecia um mosaico de áreas protegidas na Terra do Meio para combater a grilagem de terras e outras atividades predatórias. No plano original do mosaico, todo território ao longo da margem esquerda desse trecho do rio Xingu era para ter se tornado uma reserva extrativista (Resex), um tipo de unidade de conservação voltada para que comunidades possam manter seu modo de vida em territórios tradicionalmente ocupados.
Mas não foi isso que aconteceu. “O governo pegou a gente de surpresa aqui”, relembra Domingos Pereira da Silva. Sem consulta adequada prevista em lei, eles foram informados pelo órgão ambiental que sua comunidade estava agora dentro dos limites do Parque Nacional da Serra do Pardo, uma unidade de conservação bem mais restrita onde as famílias não poderiam ficar. A área do parque é de 445.408 hectares.
Valdenir Bezerra de Moraaes também se lembra: “Eles disseram: ‘Vocês concordam em se tornar uma Resex? Vocês podem continuar fazendo tudo o que já fazem.’ Todos disseram, ‘Sim.’ Mas, um ano depois, eles vieram e disseram: ‘Vocês sabem que agora estão em um Parque Nacional?’ Dissemos: ‘Não’. Assinamos a proposta para nos tornar uma reserva. Não assinamos para nos tornar um parque.” O que os beiradeiros não sabiam é que novos estudos tinham sido realizados, mudando as delimitações do Parque de um modo que terminou por abarcar seu território.
As famílias apontam que houve um lado positivo da intervenção do governo. Pautado por ações do Ministério Público Federal (MPF) de mapeamento e identificação dos padrões de grilagem, o órgão ambiental fez ações de fiscalização que levaram a multas dos desmatadores, como na Operação Boi Pirata, em 2008. “Eu agradeço o governo ter olhado para cá”, conta João Inácio Assunção, antigo morador que deixou a terra no tempo da grilagem.
O Ministério do Ambiente estima que, quando a ação federal foi deflagrada, 10% da área do Parque Nacional da Serra do Pardo já tinha sido desmatada ilegalmente e transformada em pasto. Ao final dos cinco meses da Operação Boi Pirata, 30.000 cabeças de gado foram removidas do parque e de uma unidade de conservação vizinha.
No entanto, embora as autoridades tenham tido uma ação efetiva e conforme a lei no caso da grilagem, elas violaram legislações relativas aos direitos das comunidades ribeirinhas tradicionais. Uma delas é a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, da qual o Brasil é signatário, e que requer que o governo consulte os povos envolvidos “sempre que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-los diretamente”.
Proibição de abertura de roças, de construção de casas ou de visitas de parentes são algumas das denúncias mais frequentes quando os beiradeiros comentam a atuação dos agentes ambientais. “Ninguém podia nos visitar”, disse Maria Neusa Teixeira da Silva. Entre as várias formas de assédio praticadas por servidores do órgão, afirma, essa foi uma das que mais fez crescer sua indignação, levando-a a um limiar entre abandonar de vez seu lugar ou buscar meios de resistir: “Aí eu disse: tudo pode, mas isso não. Viver isolado, sem parente, sem amigo”.
Expulsas por ação e omissão
A falta de definição sobre o futuro das famílias em relação ao reconhecimento de seu direito de permanecer na área vai se somar à omissão de outras instâncias do governo em prover direitos básicos, como saúde, educação, transporte. Esse duplo eixo é que aflige as famílias, sendo responsável pela expulsão de muitas delas.
“Se aqui tivesse estudo”, lamenta Magnos dos Santos Gomes. Quando ele era jovem, sua família deixou seu lugar às margens do Xingu e se mudou para a cidade, para que as crianças pudessem ter acesso a uma escola. Outras famílias fizeram o mesmo.
Reclamações às autoridades municipais sobre a falta de serviços, ao que tudo aponta, não foram ouvidas. Por fim, em 2017, a comunidade de São Sebastião fez uma denúncia formal ao MPF relativa à negligência do município. Foi só então que o governo local reconheceu que tinha obrigações para com a comunidade.
A atual prefeita de São Félix do Xingu, Minervina Maria de Barros Silva, disse a Mongabay que considerava “muito séria” a situação da vila de São Sebastião. “Eles estão saindo por falta de assistência mesmo. Acho que precisa fazer um trabalho ainda mais sério para eles poderem retornar ao lugar de origem deles”.
No entanto, ao ser pressionada a dizer quando ocorreriam os atendimentos móveis de saúde em São Sebastião, ou quando o gerador de energia da vila seria reparado, a resposta da prefeita foi evasiva: “As condições do município nos retraem a fazer esse tipo de mínimo. O que acontece? O município tem 124 mil habitantes, com lugares até a 300 km de distância”.
Longo processo de negociação
As famílias de São Sebastião apontam que houve uma mudança na postura dos servidores locais do ICMBio, hoje menos arbitrária. Desde 2014, o órgão ambiental tem conversado com os moradores do parque para negociar um termo de compromisso, documento previsto na lei para compatibilizar de forma transitória o modo de vida tradicional com os objetivos do parque nacional.
Uma proposta de acordo foi construída em 2015, mas, até agora, não foi assinada. O documento, ao que parece, está retido no alto escalão do instituto. “Já faz mais de 13 anos do parque e não resolve nada. A gente levantou um pouco com esse termo de compromisso, mas não deu em nada até agora”, desabafa um jovem. “A gente fica com medo de plantar e depois perder o serviço”, relata outro beiradeiro.
A assessoria de imprensa do ICMBio admitiu que o processo está demorando muito, mas disse que isso ocorre pois estão tentando “negociar de forma realmente participativa, garantindo efetivo envolvimento das famílias”. Quando perguntado sobre as violações relatadas pelas famílias, o ICMBio respondeu que está passando por um processo de “aprendizagem institucional”.
Apesar da confissão, alguns funcionários do ICMBio ainda falam sobre reassentar as famílias. Tatiana de Noronha Versiani Ribeiro, procuradora do MPF em Redenção, rejeita essa solução: “A proteção do meio ambiente e a criação do espaço territorial especialmente protegido não são incompatíveis com a permanência da comunidade tradicional no local e com o fornecimentos dos serviços públicos que garantam as condições para esta permanência, a exemplo dos serviços de saúde e educação”, diz, acrescentando que o papel do MPF é chegar a uma solução negociada. “Caso haja esgotamento da via consensual, cabe ao MPF o papel de acionar o poder judiciário para obter a solução do conflito”.
Uma comunidade viva celebra
No começo de janeiro de 2018, a igreja da vila de São Sebastião amanhecia em novas cores. Em torno dela, grama aparada, luzes instaladas e fitas decorativas antecipavam mais uma edição do tradicional festejo em homenagem a São Sebastião do Xingu. Padroeiro da vila, é celebrado, portanto, há mais de um século, segundo o cálculo dos beiradeiros mais velhos.
A celebração dura três dias, com comida abundante e muita música, à medida que a comunidade recebe parentes e amigos, de perto e de longe. São dezenas de visitantes, desde os Parakanã, indígenas que vivem na outra margem do rio Xingu, até antigos moradores que chegam a se deslocar 200 km por água para rever os parentes e a terra onde nasceram e se criaram.
No início da década de 2010, houve ameaças do ICMBio de que impediria a realização do festejo, o que foi visto como uma afronta pelos moradores. Talvez como parte do seu “aprendizado institucional”, a proibição do ICMBio nunca foi imposta.
No fim, o encontro anual, que envolve uma rede comunitária bem ampla, renova a fé da vila de São Sebastião em seu santo padroeiro, mas também configura uma poderosa expressão da determinação dos beiradeiros em seguir conectado a seu lugar de vida e memória no Xingu.