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A decisão do Supremo Tribunal Federal protege por agora os direitos à terra dos Quilombola

  • O Supremo Tribunal do Brasil rejeitou fortemente um processo arquivado em 2003 por um partido político de direita que limitaria drasticamente a capacidade dos quilombolas (ex-comunidades escravas) de legitimar as reivindicações das suas terras tradicionais.

  • Hoje em dia existem 2,962 quilombolas no Brasil, mas apenas 219 possuem títulos de terras, enquanto 1.673 perseguem o processo de aquisição legal deste título. Os territórios quilombola titulados incluem 767.596 hectares (1,9 milhões de acres); estas comunidades têm um bom registro de proteção das suas florestas. A população total de quilombolas do Brasil inclui cerca de 16 milhões de pessoas.

  • Apesar dos defensores dos direitos dos quilombolas terem aplaudido a decisão do Supremo Tribunal, sérias ameaças para estas comunidades ainda permanencem: o facto das sucessivas administrações terem reduzido drasticamente o orçamento para a titulação das terras dos quilombolas, e o quase completo bloqueio do processo de demarcação. Além disso, uma emenda constitucional, o PEC 215, está em marcha no Congresso do Brasil.

  • O PEC 215 deslocaria a responsabilidade de entregar os títulos de terra aos quilombolas, reconhecer reivindicações indígenas a terras ancestrais e criar novas áreas protegidas, do Poder Executivo para o Congresso. Com o Congresso dominado pelo caucus ruralista e o agronegócio, o PEC 215 ameaça as florestas brasileiras, bem como as comunidades indígenas e tradicionais.

Crianças dançando numa quilombola. Existem quase 3.000 comunidades quilombolas no Brasil, mas apenas 219 receberam título legal das suas terras pelo governo brasileiro. Foto cedida pelo ISA

Após uma longa consideração, o Supremo Tribunal do Brasil (STF) decidiu, a 8 de fevereiro, por maioria esmagadora, rejeitar uma ação legal iniciada em 2003 por um partido político de direita para declarar inválido um decreto presidencial (Decreto 4.887 / 2003), aprovado pelo presidente Lula no mesmo ano. A ação, se bem sucedida, tornaria muito mais difícil para os quilombolas (comunidades de ex-escravos) obter direitos sobre as suas reivindicações de terras tradicionais e poderia ter levado à desflorestação de territórios quilombolas já criados.

Dez dos onze ministros do STF votaram que o decreto presidencial de Lula era constitucional, o que permitu que as comunidades de Quilombola e os que trabalhavam com elas respirassem de alívio coletivo. A ONG Instituto Socio-Ambiental (ISA) classificou a decisão como “uma derrota importante” do “governo Temer, dos bancos cavernosos (bancada ruralista) e da Confederação Nacional da Indústria [um poderoso lobby empresarial]”.

O caso está no limbo desde 2015. Uma decisão foi programada três vezes no ano passado, mas adiada a cada momento. Em abril de 2017, a administração de Temer suspendeu todas as novas demarcações de terra até que uma decisão fosse tomada, o que foi visto como uma mensagem clara de que o seu governo aprovaria a ação legal.

Os membros da comunidade Quilombola celebram a decisão do Supremo. Foto de Carlos Moura

Demildo Biko Rodrigues, da Coordenação Nacional das Comunidades Rurais Negras (CONAQ), disse à BBC Brasil que “o estado brasileiro deu um passo em frente no processo de reparação de tudo o que aconteceu com o nosso povo”. Ele ficou satisfeito, mas surpreendido com a dimensão da decisão maioritária do STF, “dado os tempos sombrios em que vivemos”.

A Festa da Frente Liberal (PFL), que mudou o seu nome para o Partido Democrata (DEM) em 2007, originalmente arquivou o processo. O partido queria revogar um decreto presidencial, emitido pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva em 2003, que deu ao Executivo a autoridade para estabelecer o procedimento para a criação de territórios quilombolas. Desde então, o INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), um órgão federal independente, foi responsável por dar títulos a quilombos e demarcar os seus limites.

Se tivesse sido bem sucedido, o processo do DEM teria transferido esse poder para o Congresso, onde o grupo rural de direita é muito forte. Rodrigo Oliveira, um conselheiro do Ministério Público Federal (MPF), um órgão independente de promotores federais, disse a Mongabay que, se a decisão do STF tivesse ido para o outro lado, “mesmo as terras dos quilombolas que já haviam sido intituladas correriam risco”. Simplificando, se o STF tivesse favorecido o processo, os títulos de terras já recebidos por 219 territórios quilombolas do INCRA poderiam ter sido cancelados, privando 17 mil famílias brasileiras das suas terras, e tornando-os vulneráveis a despejos por ladrões de terras.

A floresta brasileira também teria sofrido. Ricardo Folhes, da Universidade Federal do Pará, disse: “Os territórios quilombolas são uma das terras mais bem preservadas do país, como território indígena e áreas protegidas. Se o julgamento tivesse sido contra eles, poderia ter significado outros 800,00 hectares de floresta em risco”.

De acordo com uma variedade de fontes, incluindo o INCRA, o Repórter Brasil e a Comissão Pro-Índio, o número de comunidades de quilombolas no Brasil hoje é de quase 3.000, mas apenas 219 têm títulos de terra, enquanto 1.673 estão em processo de aquisição de títulos. A população quilombola em terras tituladas e não tituladas totaliza cerca de 16 milhões de brasileiros.

O pintor francês Jean-Baptiste Debret (1768-1848) foi um dos poucos artistas a retratar a cruel realidade da escravidão no Brasil. Essa realidade causou escravos fugitivos para esconder-se em florestas remotas e evitar qualquer associação com o governo. Imagem cortesia de Wikipedia

Quando é um quilombola um quilombola

O Supremo Tribunal, embora confirmando a constitucionalidade do decreto, também teve o poder de introduzir mudanças significativas nesse sentido. Aqui havia mais desacordo entre os ministros.

Em particular, os quilombolas temiam que o tribunal introduzisse uma definição legal muito mais difícil e mais limitada de uma comunidade quilombola. Tais comunidades foram tipicamente definidos como sendo “criados por escravos fugitivos”, mas nas últimas décadas, seguindo a Constituição de 1988 e os conselhos da Associação Brasileira de Antropologia (ABA), as autoridades adotaram uma definição mais ampla, caracterizando os quilombolas como comunidades negras “que desenvolveram práticas de resistência para a manutenção e reprodução de seu modo de vida característico”.

A ação legal do DEM de 2003, se tivesse sido aprovada, provavelmente teria acabado com a “auto-identificação”, pelo qual uma comunidade pode decidir se é ou não uma quilombola. Argumentando que este processo permitiu fraude generalizada, o DEM e o grupo rural sustentaram que a comunidade só se poderia chamar quilombola se tivesse o apoio de documentos históricos, provando a sua fundação por escravos fugitivos.

Antropologistas apontam que uma definição tão estrita exclui muitos quilombolas legítimos. O Brasil apenas encerrou a escravidão em 1888, altura em que cerca de quatro milhões de escravos foram transportados de África. Muitos fugitivos, temendo recaptura, viviam em áreas remotas, por isso não descobriram que a escravidão havia sido abolida até muitos anos após a emancipação. Eles também estavam extremamente relutantes em ter qualquer contato com o governo, o que significa que as suas comunidades não possuíam registros oficiais.

Os quilombolas – comunidades de descendentes de escravos fugitivos – orgulham-se ferozmente de sua cultura e tradição africanas. Foto de Antônio Cruz / Agencia Brasil

A família de Josefa Bezerra de Matos, presidente da Associação de Quilombolas e seus Descendentes no Mundo Novo, uma aldeia no interior do estado de Pernambuco, é um exemplo disso. Ela disse: “o meu pai e o meu avô não queriam documentos, porque os assustava. Como crianças, fomos criados para ter medo de pessoas brancas. O meu pai só recebeu um bilhete de identidade [obrigatório no Brasil] no final da sua vida”.

Josefa tem apenas uma pequena foto do seu avô, que nasceu escravo e fugiu para ganhar sua liberdade. Josefa mantém esta foto, tirada quando o seu avô tinha mais de 100 anos de idade, numa caixa de fósforos que ela leva consigo para todo o lado. “Tenho a certeza de que ele nos protege e cuida de nós”, disse ela. “E ele nos ajuda quando temos que conversar com as autoridades”.

No final, o Supremo Tribunal decidiu por uma confortável maioria que a “auto-identificação” dos quilombolas é permitida.

Habitantes tradicionais no Quilombola de Paracatu, no estado de Minas Gerais. Habitantes dessas comunidades escravas antigas são conhecidos por preservar florestas nas suas terras reivindicadas. Foto cedida pela Wikipedia

Ameaças aos quilombolas ainda permanencem

Por seu lado, o DEM também procurou impor um marco temporal, um período de tempo para que os que reivindicassem títulos poderem provar que estavam a ocupar a terra quando a nova constituição do Brasil foi aprovada, em 1988, a menos que pudessem demonstrar que tinham sido expulsos das suas terras por “atos ilícitos”.

Edson Fachin, um ministro do STF, disse que muitas comunidades teriam dificuldade em provar a ocupação anterior a 1988, dado que “os quilombolas eram absolutamente invisíveis até muito recentemente”. Esta foi a posição assumida pela maioria dos seus colegas, embora vários tenham votado contra.

Os tempos mudaram desde 2003, quando o DEM lançou este processo. Os quilombolas tornaram-se muito mais visíveis e políticos, e desfrutam de um considerável apoio popular. A aprovação das ações judiciais do DEM poderia ter provocado amplos protestos públicos. Muitos no grupo rural entenderam esta mudança na opinião pública e achavam que tal justificava uma mudança de tática. O atual presidente da DEM, José Agripino Maia, disse à BBC Brasil que a festa havia mudado de ideia em relação ao processo de 2003 e acreditava que ele era “um erro” para o lançamento. No entanto, como o caso já estava em processo, não foi possível retirá-lo.

Embora claramente satisfeito pela decisão do STF, Demildo Biko Rodriges vê a decisão como apenas “um primeiro passo” para proteger as antigas comunidades escravas, já que “ainda há um longo caminho antes de alcançar todos os nossos direitos”. Apesar do sucesso da semana passada, Os analistas concordam que o futuro dos quilombolas parece perigoso.

O orçamento do INCRA foi reduzido nos últimos anos, com financiamento para que os títulos de terras quilombolas caíssem de R $ 64 milhões (US $ 19,4 milhões) em 2010 para R $ 4 milhões (US $ 1,2 milhão) em 2017. Demildo Biko Rodigues disse que o maior desafio das comunidades é “dialogar com a [Administração Temer] para que mais recursos possam ser encontrados para acelerar o processo de demarcação”.

Lúcia M.M.Andrade, coordenadora executiva da Comissão Pro-Índio, em São Paulo, que trabalha com as comunidades de quilombolas há quase 30 anos, disse que a falta de recursos é um grande problema. “Isto significa que o INCRA não poderá avançar com mais de 1.500 pedidos de títulos de terra”, disse ela. “Destes, o INCRA ainda não realizou a primeira fase – a identificação do relatório do território (RTID) – em 84% deles. Portanto, há poucas chances da situação atual mudar, em que apenas 9% têm títulos das suas terras “.

Um outro perigo aparece. Durante 17 anos, o lobby rural pressionou para a aprovação de uma ampla emenda constitucional – o PEC 215. Se aprovado, mudaria do Poder Executivo para o Congresso a autoridade para a concessão de títulos de terra aos quilombolas, para o reconhecimento das terras indígenas e a criação de novas áreas protegidas. Dado o poder exercido no Congresso pelas elites, e o agronegócio rural com fome de terra, a aprovação da emenda provavelmente seria um enorme golpe aos ambientalistas, movimentos sociais e ONGs – para não mencionar à biodiversidade e às florestas do Brasil.

De acordo com muitos especialistas, o risco de passagem do PEC 215 pelo Congresso cresce a cada dia.

O futuro destas crianças e outras que vivem em comunidades quilombolas em todo o Brasil pode depender se o Congresso brasileiro passa ou não o PEC 2015. Se aprovado, a alteração passaria do Poder Executivo para o Congresso, a autoridade para a entrega de títulos de terra para quilombolas, para o reconhecimento de terras indígenas e a criação de áreas protegidas. Foto de Carol Gayao sob a licença Creative Commons Attribution-Share Alike 3.0 Unported
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