Um novo estudo identificou 142 barragens em funcionamento ou em construção nas nascentes dos rios andinos da Amazônia, duas vezes o número estimado anteriormente. Outras 160 estão em fase de planejamento.
Caso os projetos propostos para novas barragens avancem, o transporte de sedimentos para as várzeas da Amazônia poderia cessar, bloqueando as rotas migratórias de peixes de água doce, interferindo nos regimes de vazão e inundação e ameaçando a segurança alimentar das comunidades a jusante, atingindo até 30 milhões de pessoas.
A maioria das barragens existentes estão localizadas nas redes de afluentes, que deságuam nos rios principais dos Andes. Porém, novas barragens estão previstas para cinco dos oito rios principais presentes na Amazônia andina, provocando reduções de mais de 50 por cento na conectividade dos rios Marañón, Ucayali e Beni e de mais de 35 por cento nos rios Madre de Dios e Mamoré
Os pesquisadores concluíram que deveria ser exigida, para as barragens propostas, uma avaliação dos efeitos cumulativos no âmbito de toda a bacia, contabilizando impactos sinérgicos de barragens já existentes e utilizando a Convenção sobre os Cursos de Água da ONU como base legal para uma cooperação internacional para o manejo sustentável da água entre os países amazônicos.
A escala do desenvolvimento hidrelétrico na Amazônia andina é bem mais ampla do que se pensava, com numerosas barragens nas nascentes dos rios, fragmentando habitats fluviais, prejudicando sistemas naturais e afetando as vidas e o sustento de 30 milhões de pessoas que vivem a jusante da Bacia Amazônica, de acordo com um novo estudo publicado na revista Science Advances.
Caso os projetos propostos para novas barragens avancem, o transporte de sedimentos dos Andes para as várzeas da Amazônia poderá cessar e as rotas migratórias dos peixes de água doce serão bloqueadas, ameaçando a segurança alimentar das comunidades a jusante.
Um grupo internacional de pesquisadores liderados por Elizabeth Anderson, uma ecóloga especialista em sistemas de água doce da Universidade Internacional da Flórida, em Miami, utilizou imagens de satélite para conferir a localização de barragens existentes nos Andes amazônicos da Colômbia, do Equador, do Peru e da Bolívia e para quantificar o impacto dessas barragens na conectividade fluvial.
Os pesquisadores identificaram 142 barragens em funcionamento ou em construção — duas vezes o número estimado anteriormente. Esse estudo representa “a contagem mais minuciosa de barragens da região andina”, diz Kirk Winemiller, um ecólogo especialista em sistemas aquáticos da Texas A&M University, que não participou do estudo. No modelo, o grupo também incluiu o impacto das barragens em fase de planejamento — um número adicional de 160 projetos — e constatou que a conectividade de cinco dos oito rios andinos mais importantes que correm para a Bacia Amazônica seria ainda mais reduzida, sendo os rios Napo, Marañón, Ucayali, Beni e Mamoré os mais afetados.
O último estudo em larga escala sobre os empreendimentos hidrelétricos da Amazônia andina foi publicado em 2012, mas esse setor tem progredido no local desde então. Além disso, relatórios globais e regionais frequentemente desconsideram projetos de usinas hidrelétricas pequenas — as quais estima-se que ultrapassem o número de usinas maiores por 11 a 1, de acordo com outro estudo publicado no mês passado —, o que significa que outras pesquisas, que usaram dados publicados no passado, subestimaram seriamente o número e o impacto de barragens na região.
Elizabeth Anderson e colaboradores analisaram rios e afluentes em sete bacias da Amazônia andina. Eles combinaram imagens de satélite com os planos do governo e os registros das agências de energia elétrica e calcularam os impactos causados pelas barragens usando o Índice de Conectividade Dendrítica (DCI, na sigla em inglês) — uma medida do quanto os peixes podem transitar entre cada trecho do rio. Eles constataram que as redes de afluentes que abastecem, no Peru, os rios Marañón e Ucayali (importantes afluentes do Rio Amazonas) já perderam 20 por cento da conectividade original.
Os Andes representam apenas uma minúscula fração da Bacia Amazônica, mas exercem um efeito desproporcional nos processos ecológicos a jusante — influenciando a migração de peixes e transportando sedimentos ricos em nutrientes até as vastas várzeas brasileiras e o estuário do Rio Amazonas.
O problema surge porque a maioria das hidrelétricas da Amazônia andina armazena ou desvia água para a geração futura de energia em vez de permitir que o rio flua normalmente para a geração contínua de energia. Como resultado, barragens em nascentes de rios retêm 100 por cento dos sedimentos que eram anteriormente transportados pelas correntes, explica Elizabeth.
Outro problema: as barragens interrompem o ciclo sazonal de inundações na Bacia Amazônica, reduzindo ou impedindo a inundação da floresta e influenciando a migração, os padrões de acasalamento e alimentação e os comportamentos sociais de animais, tanto terrestres como aquáticos. A fragmentação das nascentes dos Andes tem “sérias consequências, não apenas para os rios da região andina da Amazônia, mas também para a ecologia de toda a Bacia Amazônica”, diz Kirk Winemiller.
A maior parte dos empreendimentos hidrelétricos até o momento tem afetado as redes de afluentes que deságuam nos rios principais da Amazônia andina, mas isso pode estar prestes a mudar. Novas barragens estão projetadas para cinco dos oito rios principais existentes na região. O grupo de Elizabeth alerta que esses projetos poderiam resultar em reduções de mais de 50 por cento na conectividade dos rios Marañón, Ucayali e Beni e de mais de 30 por cento nos rios Madre de Dios e Mamoré.
Essa perda de conectividade hidrológica poderia gerar um grande impacto na biodiversidade dos peixes da Amazônia. Comparando os dados obtidos de conectividade fluvial com uma lista de espécies de peixes de água doce compiladas da literatura pelo projeto Amazon Fish, o grupo constatou que, na Amazônia andina, áreas localizadas em altitudes superiores a 500 metros acima do nível do mar são o lar de 671 espécies de peixes de água doce — a primeira estimativa publicada para as nascentes andinas.
Das quatro ecorregiões de água doce definidas para a Amazônia andina, os Altos Andes do Amazonas — que abrangem Bolívia, Peru, Colômbia e Equador —, é a que apresenta maior desenvolvimento hidrelétrico até o momento. Além disso, esse é o local com o maior número de barragens propostas. Essa região também é, entretanto, o lar de centenas de espécies de peixes, das quais se estima que quase 40 por cento são exclusivas da região.
Essas espécies são especialmente adaptadas para corredeiras de montanhas íngremes, sendo os Altos Andes do Amazonas o refúgio de conjuntos únicos de peixes em diferentes altitudes. “Não é incomum que uma espécie de peixe seja encontrada somente em uma pequena parte de uma bacia e em nenhum outro lugar”, afirma Elizabeth.
Outras migram milhares de quilômetros para desovar ou se alimentar. A dourada (Brachyplatystoma sp.), por exemplo, faz a mais longa migração em água doce do mundo, percorrendo quase toda a extensão do Rio Amazonas. As barragens propostas para rios principais e afluentes poderiam bloquear as rotas migratórias de inúmeros peixes da Amazônia, além de alterar estímulos ambientais como pulsos hidrológicos, que são utilizados por esses animais como sinais para começar a migração.
As barragens atingiriam mais do que somente peixes: “os ritmos de vida de muitas populações humanas em toda a Amazônia são vinculados ao fluxo dos rios”, diz Elizabeth. Com a redução da conectividade, atividades como agricultura, pesca e transporte de mercadorias serão prejudicadas.
Segundo Elizabeth, uma cooperação internacional para a gestão dos recursos hídricos será crucial para a proteção das comunidades naturais e humanas que dependem fortemente do fluxo dos rios dos Andes e da Bacia Amazônica. O novo estudo defende análises transnacionais dos impactos físicos, químicos e biológicos causados pelas barragens andinas na região amazônica, refletindo preocupações de pesquisadores e ambientalistas em relação aos empreendimentos hidrelétricos em âmbito mundial.
Elizabeth defende que “deveriam ser exigidas, para as barragens propostas, análises dos efeitos cumulativos no âmbito de toda a bacia”, levando-se em conta os efeitos sinérgicos de barragens já existentes. Caso ratificada pelos países amazônicos, adiciona ela, a Convenção sobre os Cursos de Água da ONU poderia fornecer uma base legal para estimular o manejo mais sustentável da água de modo transnacional.
O estudo recentemente publicado “demonstra que é possível avaliar impactos ambientais em larga escala”, segundo Kirk, e ajuda a preparar o caminho para que análises similares sejam incorporadas no planejamento em larga escala, em âmbito transnacional, do manejo da água na América do Sul.
Entretanto, para atingir esse objetivo amplo, diz Elizabeth, o governo precisará entender que os rios de curso livre são vitais e que vale a pena protegê-los. Segundo a ecóloga, “o futuro da conectividade da Amazônia andina depende de uma mudança de mentalidade em direção ao reconhecimento dos rios de curso livre como objetos de conservação e, a partir daí, à garantia de proteção adequada”.
A maré política pode já estar mudando. Em 2014, a Colômbia anunciou planos para a proteção integral do Rio Bita, um afluente do Rio Orinoco e o primeiro rio protegido do país. E, apesar da onda de iniciativas de desregulamentação ambiental que promovem empreendimentos na Amazônia, o presidente do Brasil, Michel Temer, recentemente anunciou o fim da política de construção de megabarragens.
“Eu tenho esperança de que logo veremos outros países da Amazônia andina concebendo os rios como uma nova fronteira para a conservação dos ecossistemas”, diz Elizabeth.
Citações:
Anderson, E. P., Jenkins, C. N.; Heilpern, S., Maldonado-Ocampo, J.A, et al, (2018), Fragmentation of Andes-to-Amazon connectivity by hydropower dams, Science Advances, Vol 4, no. 1 easo1642; DOI: 10.1126/sciadv.aao1642
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