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Temer afrouxa legislação brasileira sobre trabalho escravo, para satisfação da elite rural

  • Aproximadamente 155.000 pessoas trabalham em condições análogas à escravidão no Brasil, sendo que muitas delas trabalham para empresários ruralistas que enriqueceram através do crime ambiental. O trabalho escravo, por exemplo, é utilizado com frequência na Amazônia para ocultar e manter o desmatamento ilegal e o agronegócio ilícito à margem da lei.

  • O presidente Michel Temer emitiu uma portaria restringindo a definição de escravidão. Manter pessoas em servidão econômica, em condições análogas à escravidão, deixou de ser ilegal. Agora os escravos devem ser mantidos contra a sua vontade e duas autoridades públicas devem flagrar o empregador no ato.

  • Especialistas dizem que o afrouxamento da lei sobre trabalho escravo foi a forma que Temer encontrou de recompensar a bancada ruralista, que inclui cerca de 40% do Congresso e continua apoiando o presidente, rejeitando diversas denúncias de corrupção contra ele.

  • A indignação com o afrouxamento da lei sobre trabalho escravo se espalhou pelo Brasil e pelo mundo. NOTA: esta matéria foi atualizada em 25/10/2017 informando que o Supremo Tribunal Federal (STF) suspendeu temporariamente a implementação do decreto sobre trabalho escravo do presidente Temer até que o caso seja julgado pelo Supremo.

Uma abastada família brasileira no Rio de Janeiro, em casa com seus escravos, retratada em 1839. O grave abismo econômico entre empresários ruralistas e os escravos com os quais lucram persiste até hoje, dizem os especialistas. Quadro de Jean-Baptiste Debret de domínio público

Ao longo do último ano o governo do presidente Michel Temer cometeu diversos retrocessos em políticas ambientais, indígenas e agrárias, conquistadas ao longo de três décadas, para agradar a bancada ruralista do Congresso, da qual depende para sua sobrevivência política. Entretanto, nenhum desses retrocessos significativos provocou o furor desencadeado pela recente decisão de Temer de alterar a legislação que trata do trabalho escravo.

No dia 16 de outubro, o Ministério do Trabalho emitiu a Portaria N° 1129/2017, que alterou a forma como o trabalho escravo é definido e processado no Brasil. De acordo com as novas regras, não basta que os trabalhadores trabalhem por diversas horas em condições degradantes ou desumanas ou recebam somente comida como pagamento. A partir de agora, para que seja considerado que os trabalhadores estão trabalhando em “condições análogas à escravidão”, os empregadores devem negar-lhes o direito de ir e vir.

Além disso, para que o empregador seja considerado culpado pelo crime de trabalho escravo, um policial, acompanhado de um representante do Ministério do Trabalho, deve flagrá-lo negando essa liberdade aos trabalhadores — algo praticamente impossível administrativamente em áreas remotas como a Amazônia, onde grande parte da escravidão ocorre para ocultar crimes ambientais.

“Esse é um absurdo jurídico, uma monstruosidade”, exclamou Luiz Eduardo Bojart, procurador-geral do Ministério Público do Trabalho (MPT), órgão independente do governo que lida exclusivamente com questões trabalhistas. “Voltamos à situação de dois séculos atrás, quando o trabalho escravo exigia restrição à liberdade de locomoção, ou seja, tem que ter senzala, tronco, grilhões, chicote”, disse ele.

Desde meados dos anos de 1990 o Brasil tem sido elogiado internacionalmente por sua política de combate ao trabalho escravo através da denúncia dos infratores. Representantes do Ministério do Trabalho realizaram vistorias de surpresa, libertando 50.000 pessoas mantidas em regime de escravidão entre 1996 e 2013. Embora poucos empregadores tenham sido condenados à prisão, a colocação deles em uma “lista negra”, tornando praticamente impossível a obtenção de empréstimos bancários, provou-se efetiva.

Entretanto, ao longo do último ano, sob a administração Temer, a implementação dessa estratégia altamente eficaz ficou praticamente paralisada, devido à falta de verbas. Críticos dizem que agora a nova legislação permitirá que os ruralistas aumentem o uso do trabalho escravo para cortar e ocultar custos em suas operações madeireiras, criações de gado, plantações de soja e outras atividades, especialmente em áreas remotas como a Amazônia.

Representante do Ministério do Trabalho brasileiro investigando um caso de trabalho escravo. A portaria sobre trabalho escravo do presidente Temer, que restringe drasticamente a definição de escravidão, dificultará ainda mais o processamento de casos de escravidão. Foto concedida pelo Ministério do Trabalho

O afrouxamento das leis sobre trabalho escravo pelo presidente Temer é extremamente indigesto para muitos brasileiros, principalmente porque o problema ainda é bastante grave. De acordo com números divulgados pela Walk Free Foundation, aproximadamente 155.000 pessoas trabalham em condições análogas à escravidão no Brasil. Em março, a Mongabay e a ONG Repórter Brasil relataram como empresas norte-americanas, como Walmart e Lowe’s, adquiriam madeira de comerciantes brasileiros que obtinham produtos florestais de serrarias da Amazônia, onde os trabalhadores trabalhavam em regime de escravidão.

Às vezes o arcaico e o moderno andam lado a lado nas práticas comerciais brasileiras. Algumas empresas utilizam métodos de ponta em partes de sua cadeia de produção enquanto empregam trabalho escravo para desempenhar tarefas não qualificadas e desagradáveis. Um exemplo: um abastado grileiro na Amazônia utilizava tecnologia sofisticada para descobrir o tamanho da área de floresta que ele poderia desmatar sem ser detectado por satélites de monitoramento ao mesmo tempo em que utilizava trabalho escravo para cortar as árvores.

A resposta à portaria sobre trabalho escravo de Temer foi rápida. No dia 18 de outubro, entidades que representam juízes do trabalho, procuradores do trabalho, inspetores do trabalho e advogados trabalhistas emitiram um comunicado à imprensa considerando a portaria “ilegal”. Esses especialistas pediram a revogação imediata da portaria, indicando que ela “viola diretamente” as convenções internacionais das quais o Brasil é signatário. Dentre as pessoas que assinaram o comunicado à imprensa estavam Guilherme Guimarães Feliciano, da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (ANAMATRA), e Angelo Fabiano Farias da Costa, da Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho (ANPT).

Esses especialistas também alertaram que o Brasil poderia sofrer “sanções internacionais”. De fato, Heidi Hautala, membro finlandês do Parlamento Europeu, contou ao jornal Folha de S. Paulo que ela e seus colegas não poderiam “aceitar a importação de produtos feitos sob condições de escravidão” pela União Europeia.

Acredita-se que a maior parte dos 155.000 trabalhadores brasileiros estimados aceita condições de trabalho terríveis, análogas à escravidão, não porque não podem abandonar o trabalho, mas porque não conseguem encontrar trabalho melhor. Portanto, a nova definição de escravidão do presidente Temer reduzirá drasticamente, em uma canetada, as estatísticas oficiais relacionadas a escravidão. De fato, o MPT contou à Reuters que a portaria significaria que 506 dos 706 casos de suposto trabalho escravo investigados atualmente seriam suspensos.

Foto de índios da Amazônia escravizados durante a expansão da borracha no início dos anos 1900. Essa foto, apesar de ter sido tirada na Amazônia peruana, proporciona um retrato preciso das atrocidades cometidas no Brasil durante esse período. Foto de Walter Hardenberg de domínio público

Apesar dos protestos, alguns setores aplaudiram a mudança. A Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), porta-voz da bancada ruralista no Congresso, demonstrou apoio à portaria. Em um comunicado à imprensa, a FPA disse que a nova legislação traria clareza, pois neste momento “a falta de conceituação específica para trabalhos forçados, jornada exaustiva e condições degradantes de trabalho permite compreensões distintas por parte dos fiscais responsáveis pela autuação, causando insegurança jurídica para o setor”.

O ministro da Agricultura Blairo Maggi também comemorou a nova portaria dizendo que ela ajudaria a corrigir “a atual confusão sobre o que é e o que não é trabalho escravo”.

O senador Cidinho Santos, do Partido da República, pequeno partido de direita, disse que a nova medida impediria empregadores de serem punidos injustamente. “Por vezes, a empresa coloca para o trabalhador um banheiro químico e o cidadão faz [suas necessidades fisiológicas] no mato. Ou se tem refeitório, mas o trabalhador prefere comer com o prato nas mãos, sob a lona.”

Os ruralistas têm exigido uma mudança na definição legal de trabalho escravo há anos, sendo que alguns deles estão na “lista negra”, publicada a cada seis meses pelo Ministério do Trabalho e Emprego e pela Secretaria Especial de Direitos Humanos.

Alguns nomes da “lista negra” são doadores importantes de partidos políticos brasileiros. Um estudo realizado pela Repórter Brasil descobriu que, dos 490 nomes que constavam na “lista negra” entre 2002 e 2012, 77 haviam feito doações a partidos políticos. Os principais beneficiários foram o PTB (Partido Trabalhista Brasileiro) e o PMDB (Partido do Movimento Democrático Brasileiro), o maior partido do Brasil, ao qual o presidente Temer pertence.

Antes o Ministério do Trabalho e Emprego utilizava critérios técnicos para compor a lista. A partir de agora é o Ministro do Trabalho quem decide quando — ou se — a lista será publicada.

Capataz batendo em um escravo. Embora o Brasil tenha abolido a escravidão em 1888, estima-se que 155.000 pessoas sejam mantidas em “condições análogas à escravidão” hoje, muitas delas em regiões remotas como a Amazônia, onde as dificuldades econômicas forçam os trabalhadores a aceitar trabalho com baixa remuneração em condições extremamente perigosas e insalubres. Quadro de Jean-Baptiste Debret de domínio público

Xavier Plassat, coordenador da Campanha da Comissão Pastoral da Terra Contra o Trabalho Escravo, contou à Mongabay que o motivo de o governo ter anunciado a nova medida quando o fez estava bastante claro: “Essa portaria beneficia o interesse particular de grupos para os quais a escravidão moderna é uma fonte de lucro e de cujo apoio o governo precisa, especialmente neste momento, em que novos processos legais contra o presidente [relacionados a denúncias de corrupção] têm de ser aprovados ou rejeitados na Câmara dos Deputados”. De acordo com Xavier Plassat, a medida é altamente inconsistente. Por exemplo, ele diz: “De acordo com a portaria, não há nada de errado em um trabalhador dormir com animais e beber água suja contanto que ele não esteja sendo supervisionado por guardas armados”.

O deputado federal Alessandro Molon, do partido Rede Sustentabilidade, tentará fazer com que a portaria seja derrubada pelo Congresso. Ele contou ao jornal Folha de S. Paulo: “Temer parece desconhecer qualquer limite. Sepultar o combate ao trabalho escravo em troca de salvação na Câmara é escandaloso, além de brutal com milhares de brasileiros”.

A portaria também dificultará ainda mais a proteção ao meio ambiente. O desmatamento ilegal de florestas e a extração ilegal de madeira dependem do trabalho escravo, uma vez que são realizados no mercado negro. Em muitos casos, somente era possível interromper essas atividades prendendo aqueles que utilizavam trabalho escravo para cortar as árvores — um crime que pode ser mais rapidamente demonstrado e não exige longos processos legais.

Com a medida de Temer, esses criminosos ambientais terão ainda mais carta branca para continuar realizando suas atividades destrutivas.

Analistas brasileiros têm dito repetidamente que Temer foi longe demais e que agora ele certamente será barrado. Neste caso, apesar de a situação ainda ser incerta, a força da reação pública parece estar rendendo frutos. Temer contou ao site Poder360 no dia 20 de outubro que ele provavelmente introduziria mudanças na portaria sugeridas pela Procuradora-Geral Raquel Dodge. Porém, ainda não se sabe se essas alterações dissiparão a indignação dos juízes e inspetores do trabalho.

ATUALIZAÇÃO EM 25/10/2017: Rosa Weber, ministra do STF, emitiu uma decisão liminar no dia 24 de outubro suspendendo temporariamente a portaria do Ministério do Trabalho que estabelecia critérios novos e mais restritivos para o trabalho escravo. A ministra do STF respondeu a um pedido do Rede Sustentabilidade, pequeno partido político formado pela ex-ministra do meio ambiente Marina Silva. A suspensão do Supremo significa que o Ministério do Trabalho não conseguirá implementar a portaria até que uma decisão definitiva a respeito de sua legalidade seja tomada

A decisão veio após uma enxurrada de protestos contra a nova portaria, incluindo recomendações feitas tanto pelo Ministério Público Federal (MPF) quanto pelo MPT de que a portaria deveria ser revogada. Na decisão, a ministra do STF disse que os “critérios demasiadamente restritivos não estão de acordo com a ordem jurídica brasileira nem com os acordos internacionais que o país assinou”.

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