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Transformance: Encontrando consenso na Amazônia (comentário)

  • O Fórum Bem Viver se reuniu no início deste mês com líderes indígenas, policiais militares, juízes federais, atores de televisão, músicos, jornalistas, cientistas e ativistas de oito países e 14 estados brasileiros.

  • O evento foi organizado pela Rios de Encontro, uma organização eco-cultural e sem fins lucrativos. Com o intuito de encontrar soluções sustentáveis na Amazônia, o evento contou com apresentações artísticas e rodas que objetivavam buscar consenso entre os participantes.

  • O evento foi realizado em Marabá, Pará, o município mais próximo de Carajás, a maior mina de minério de ferro do mundo. A cidade fica às margens do Rio Tocantins, onde a construção de uma hidrelétrica é proposta em um trecho próximo, a montante do mesmo rio.

  • Os participantes buscaram soluções para transformar Marabá em um “exemplo de desenvolvimento sustentável para a Amazônia, para as Américas e para o mundo”. Esta publicação é um comentário. As opiniões expressas são (exclusivamente) do autor, e não necessariamente representam as da Mongabay.

Abraão Santana Nascimento da polícia militar de Salvador, Bahia, Brasil numa roda de capoeira com um aluno como parte do Fórum Bem Viver, realizado em uma escola local entre 31 de agosto e 5 de setembro em Marabá, Pará. Foto de Gus Greenstein

Um encontro de ativistas, policiais militares e outros colaboradores incomuns no início deste mês apontaram um novo caminho a ser seguido para alcançar o desenvolvimento sustentável em Marabá, Pará, Brasil, um centro de extração desse tipo de recursos.

O Fórum Bem Viver, realizado entre 31 de agosto e 5 de setembro e organizado pela Rios de Encontro, projeto de educação eco-cultural, aconteceu num momento oportuno.

O presidente Michel Temer tem dados claros sinais de estar determinado a negociar o bem-estar da Amazônia em troca da expansão corporativa. Com sua popularidade pairando próximo de cinco por cento, o presidente tem se inclinado ao lobby agroindustrial ruralista, praticamente sua única fonte de apoio. Isso incluiu a recente emissão de um decreto para abrir a Reserva Nacional do Cobre e Associados (Renca) para a mineração (um trecho de reserva florestal quase do tamanho da Dinamarca), atitude que um senador brasileiro classificou como “o maior ataque à Amazônia nos últimos 50 anos”.

Atos de violência relacionados a extração de recursos naturais também aumentou rapidamente em toda a área rural brasileira. Cinquenta e duas pessoas morreram nos primeiros sete meses deste ano em disputas relacionadas a direitos territoriais e outros conflitos ambientais.

Marabá: Um microcosmo de desafios de desenvolvimento

Os participantes do fórum eram compostos de um líder indígena, policiais militares, um juiz federal, atores de televisão, artistas, antropólogos, jornalistas, cientistas, enfermeiros e ativistas que representavam 14 estados do Brasil, além de outros oito países.

Os participantes se envolveram em uma série de sessões destinadas a apresentar e debater idéias, focando no objetivo central de como transformar Marabá em um “exemplo de desenvolvimento sustentável para a Amazônia, para as Américas, e para o mundo”.

Essa é uma tarefa desafiadora.

Desde a colonização pelos portugueses em 1500, Marabá foi um paraíso de exploração de recursos naturais. É um dos municípios mais próximos de Carajás, centro da maior mineração de ferro do mundo, que fica localizada às margens do Rio Tocantins. Existem planos de construção de uma represa hidrelétrica a montante da cidade, cujo reservatório de armazenamento inundaria a cidade vizinha, São João do Araguaia, deslocando 14 mil pessoas de suas casas.

A Mina de Carajás, a maior mina de ferro do mundo, fica a aproximadamente 200 quilômetros de Marabá. Foto de Gus Greenstein.

Obras desse tipo, tradicionalmente implicam na chegada de famílias que procuram oportunidades de emprego geradas pela demanda de mão de obra. Em Marabá não foi diferente, e o influxo de pessoas trouxe consigo desafios sociais significativos. Em 2013, a taxa de assassinato de Marabá era mais de quatro vezes a média nacional. O abuso de drogas é amplamente visível em áreas públicas.

“A cidade se transformou em um território ingovernável”, disse Franklin Roosevelt, comandante da polícia militar local.

Várias das sessões do fórum foram sediadas em São João do Araguaia, a mesma cidade que será inundada na construção da barragem. Em uma das noites, jovens do projeto Rios de Encontro – que já se apresentaram em quatro continentes – se associaram a artistas convidados em um show na praça da cidade.

Milena Santana, membro da polícia militar de Salvador, Bahia, realiza uma dança na praça da cidade de São João do Araguaia, que será submersa se a barragem planejada na região for construída. Foto de Gus Greenstein.

Colaboração radical e “Transformance”

Em um ato, seis representantes da polícia militar de Salvador, Bahia, realizaram uma dança afro-brasileira, simbolizando o que foi inovador sobre o fórum e suas implicações para o desenvolvimento sustentável. Colocados no contexto amazônico, as danças foram radicalmente colaborativas. Além disso, eles abraçaram a “transformance” ou a prática de transformação pessoal – um passo importante para enfrentar o conflito – através de performances.

“A polícia militar no Brasil tem uma associação perpétua com a ditadura “, explicou o coordenador da Rios de Encontro, Dan Baron Cohen, um conhecido arte educador gales. “A percepção comum entre as pessoas de Marabá é que a polícia militar espanca e mata jovens”.

Alguns também veem traços de um elemento racial no relacionamento. Grande parte da população de Marabá é afro-indígena. Um estudo de 2017 descobriu que os negros são 23 por cento mais propensos a serem assassinados do que pessoas de outras etnias, mesmo considerando idade, sexo, nível de escolaridade, estado civil e bairro de residência.

Ativistas condenaram a polícia militar por assassinatos relacionados a conflitos ambientais, afirmando que a instituição tem sua parcela de culpa nos assassinatos: seja como o próprio agente executor dos mesmos, ou seja fazendo “vista grossa” aos assassinos, que saem impunes de seus crimes. No massacre de Eldorado dos Carajás de 1996, a polícia militar matou 19 trabalhadores sem-terra enquanto estes aguardavam por um transporte para levá-los a negociações sobre a legalidade de uma ocupação.

“Então, quando você coloca a polícia militar junto com a juventude do Cabelo Seco – o primeiro assentamento de Marabá – em uma performance cuja principal motivação é a proteção da Amazônia, o que isso significa?”, pergunta Baron Cohen.

A idéia de Baron Cohen de fazer isso se baseia em seus 30 anos de história usando artes cênicas para transformar conflitos violentos em novas relações sociais. Após estudar na Universidade de Oxford, e da oportunidade de estar durante cinco anos lado a lado com o dramaturgo Edward Bond, Baron Cohen foi convidado pelo partido republicano irlandês Sinn Fein “para desenvolver uma cultura de paz com justiça”.

“Vim para passar duas semanas e fiquei por sete anos”, disse ele.

Baron Cohen posteriormente passou por diversos municípios sul-africanos, trabalhando junto a ativistas culturais para “desenvolver um país democrático inclusivo pós-apartheid”. Em 1998, Baron Cohen chegou ao Brasil para uma colaboração teatral e, eventualmente, começou a trabalhar com o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra. Ele e sua parceira Manoela Souza, educadora de artes de Santa Catarina, Brasil, mudaram para Marabá em 2006.

Alessandra Korap Munduruku dos povos indígenas de Mundruku em Itaituba, Pará, discute suas experiências de campanha contra as hidrelétricas no Rio Tapajos com pescadores perto de São João do Araguaia. Ao fundo, o coordenador de Rios de Encontro, Dan Baron Cohen. Foto de Gus Greenstein.

Embora Marabá permaneça uma cidade pouco conhecida fora do Brasil, Baron Cohen e Souza acreditam que uma “pedagogia da transformance” é tão urgente lá quanto em qualquer lugar do mundo.

“A cidade fica no maior depósito de ferro do mundo e um dos maiores suprimentos de água potável, no meio da floresta amazônica”, diz Baron Cohen. “O que acontece aqui vai influenciar o futuro do mundo”. Ele considera a alfabetização cultural como essencial para enfrentar uma “trágica cumplicidade amazônica” em relação aos desafios ambientais.

Dr. José Maria Quadros de Alencar, juiz retirado da Suprema Corte do Pará, atribui isso à história extrativista da cidade e à resultante fragmentação sociocultural. Campanhas de marketing recentes da Vale, a principal empresa que opera a mina de Carajás, sugerem que os efeitos socioculturais dos esforços de exploração de recursos experimentados hoje são intencionais.

Segundo Baron Cohen, a empresa publicou seu logotipo em espaços públicos; financiou o programa cultural municipal, um teatro e uma universidade federal; e realizou visitas contínuas para inspirar “responsabilidade ecológica” nas escolas locais. “Foi uma demarcação explícita do território”, disse ele.

Em 2012, uma cerimônia anual convocada pela Berne Declaration e a Greenpeace Suíça distinguiram a Vale como a empresa que exibe o maior “desprezo pelo meio ambiente e direitos humanos” no mundo.

Tudo isso, disse Baron Cohen, culminou com a atitude resignada dos moradores locais em relação à proteção ambiental, apesar de muitos entenderem as consequências das atividades em andamento. “Pensando não, mas dizendo sim”, disse ele. “Esse é o reflexo popular da Amazônia”.

Baron Cohen e Souza realizam seminários em escolas locais, além de dirigir sua própria companhia de dança.

No auge de uma das performances do grupo, “Life-Source on Fire”, Camylla Alves, de 21 anos, se encolhe no chão, coberta de lama, ofegando por ar. É uma referência ao rescaldo do colapso da Serra Samarco de 2015 em, Minas Gerais, que desencadeou uma inundação de produtos químicos tóxicos nas comunidades mais próximas, matando 19 pessoas. Quando o celular dela toca, ela volta abruptamente ao presente e começa a perceber os legados tóxicos do passado explorado de seus povos. Mas sua jornada permitiu com que ela aprendesse com essa dor, e se transformasse em um símbolo da autonomia amazônica.

Camylla fez a performance em três continentes. Antes de se juntar ao projeto ela não se identificava como afro-indígena e nem sabia que morava na Amazônia.

“Nosso objetivo não é fazer com que a juventude pense como nós”, diz Souza, “mas sim ajudá-los a construir a confiança para questionar, pensar por si mesmos e se expressarem livremente”.

Camylla Alves, que agora coordena educação artística para jovens no projeto Rios de Encontro, executa a performance de “Life Source on Fire”. Ela já fez a mesma performance em três continentes. Foto de Gus Greenstein.

Uma visão diferente

As reflexões dos participantes demonstram o potencial de novas formas de colaboração e métodos de transformance para reverberar além da juventude de Marabá, ou mesmo da Amazônia como um todo.

“Para mim, tudo foi renovador”, disse Alessandra Korap Munduruku, líder dos indígenas Munduruku em Itaituba, no Pará. “Nós podemos usar a dança para tirar nossos jovens da rua e ajudá-los a desenvolver uma visão diferente”.

“A arte transforma vidas”, comentou Elton Santana da Silva, capitão da polícia militar de Salvador, Bahia. Durante 19 anos, o grupo de teatro da polícia militar da Bahia usou arte “como um canal de comunicação com as comunidades [na qual eles] trabalham”. Mas ele disse que a convergência mudou seu entendimento sobre o poder das performances.

“O fórum mostrou-me que as performances são necessárias para estimular os jovens e mostrar-lhes que são capazes de se organizarem politicamente. O impacto em potencial desse empoderamento é imensurável “.

Os participantes do fórum fazem uma reflexão final. Da esquerda para a direita: Marcelo de Almeida Magalhães (polícia militar de Salvador, Bahia), Alessandra Korap Munduruku (indígena Munduruku de Itaituba, Pará), Daniela Soares de Silva (Movimento Xingu Vivo Para Sempre), Célio Turino e Silvana Bragatto (Instituto Casa Comum), Djalma Lourenço Amorim Santos (polícia militar de Salvador, Bahia) e José Viana (Associação Fotoativa). Foto de Gus Greenstein.

Olhando pra trás para olhar pra frente

Baron Cohen disse que, enquanto coordenava a construção do monumento nacional para o Outros 500 Anos na Bahia, em abril de 2000, a polícia militar local destruiu o monumento e ele foi forçado a se esconder por seis meses. Ele e Souza já trabalharam com a polícia militar da Bahia e do Pará em uma série de treinamentos sobre segurança comunitária.

Depois de vários seminários, fica claro que a maioria dos membros do departamento de polícia de Marabá é contra a barragem proposta, de acordo com Franklin Roosevelt, comandante principal. Muitos citam medo da violência que acompanhou a construção da barragem de Belo Monte em Altamira – atualmente a cidade mais violenta do Brasil.

“Tradicionalmente, a esquerda não aceita trabalhar com a polícia militar”, disse Baron Cohen. “No entanto, ao mesmo tempo, são eles que tomam a decisão entre a vida e a morte”.

“Para mim, Mandela sempre foi uma referência importante – quando fui preso no Norte da Irlanda e ainda agora. Mandela ensinou que para transformar seus carcereiros, você deve restaurar a humanidade deles “.

Gus Greenstein é jornalista freelance especializado em questões ambientais e de desenvolvimento. Desde a fevereiro, atua como consultor voluntário da Redes Globais para Rios de Encontro, o organizador do Fórum Bem Diver. Siga-o no Twitter via @GusGreenstein.

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